Taiwan: engraxates, tocos de cigarro no chão, maus espíritos e outras amenidades

No domingo, quando visitei Taroko State Park, as trilhas estavam bem molhadas. Havia chuvido até por volta de 9h da manhã, e, além disso, as pedras da montanha vertem água por muito tempo, depois que chove. Assim, inevitavelmente sujei os meus sapatos.

Quando chegamos de volta à estação ferroviária, perguntei ao meu guia se haveria algum engraxate na estação para me limpar os sapatos. "Xi, ele disse… vai ser difícil. Mas vou procurar". Não encontrou. E me explicou a razão — mas, no fundo, eu já pressentia qual era a explicação.

Limpar os sapatos dos outros em locais públicos é uma daquelas atividades que não pode custar muito caro — porque, se custar, as pessoas em geral não recorrem a ela. O preço razoável, em quase todo lugar desenvolvido ou semi-desenvolvido, fica entre três e cinco dólares americanos ou euros. Algo que custa no máximo cerca de seis ou sete reais. É razoável pagar isso. Mas dificilmente alguém estaria disposto a pagar, digamos, vinte dólares, ou quarenta reais, por um "shoe shine". O teto do preço que pode ser cobrado, portanto, determina que apenas pessoas bastante pobres se dispõem a entrar nessa ocupação, ainda que temporariamente. Em sociedades desenvolvidas, ou em elevado processo de desenvolvimento, as pessoas, ainda que com pouca qualificação profissional, conseguem um emprego que pague melhor e/ou tenha um status social mais alto em alguma outra atividade. Assim, somem os engraxates. Como aqui.

Isso explica porque não há mendigos e pedintes nas ruas. Antes de pedir, eles seriam encaminhados para o exercício da profissão de engraxate… É mais digno, na cultura local, ganhar uns trocados limpando sapatos do que pedindo esmola. Mas, como não há mendigos e pedintes, não há engraxates.

Algumas sociedades desenvolvidas recorrem a imigrantes para esses serviços: nos Estados Unidos, latinos dos países mais pobres (os negros pobres em geral são orgulhosos e se recusam a exercer a profissão — ou o fazem de forma inadequada: um minuto e meio uma engraxada de três dólares, pela qual eles esperam guardar os dois dólares de troco); na Suiça, portugueses; na Alemanha, turcos. E assim por diante.

Esses países tradicionalmente desenvolvidos têm políticas de imigração que gerenciam o fluxo de imigrantes, em especial nos períodos de maior demanda (alta temporada turística, no caso da Suiça, época da colheita, no Sul dos Estados Unidos). Taiwan parece não ter essas políticas até agora (que eu saiba). Vai precisar ter, mas não sentiu a necessidade ainda. É complicado entrar no país. Para brasileiros, por exemplo, exige-se, para a obtenção de visto de entrada, mesmo como turista, cópia da declaração de Imposto de Renda, comprovação de emprego, três últimos holleriths, carta convite, passagem de volta, etc. Tudo para garantir que você não permanecerá aqui depois de expirado o período de permanência autorizado. E se dá o visto para apenas uma entrada, a menos que você consiga provar que precisa de mais de uma. 

Por isso, não há engraxates em Taiwan. Eles ainda não deixam entrar os imigrantes mais pobres que estariam disposto a fazer o trabalho por aquilo que seria razoável cobrar.

Sinal de desenvolvimento econômico.

Mas vi, aqui, também, sinais de desenvolvimento cultural.

O formulário de solicitação de visto explicita, em letras muito bem visíveis, que o crime de porte de droga em Taiwan é punível com a morte. Simples. Alguém se arriscaria a entrar num país desses com drogas na mala ou na bolsa? Um ou outro doido de vez em quando arrisca — mas acaba sendo preso, condenado e executado. Os inimigos da pena de morte que me desculpem, mas é muito difícil achar usuários de drogas aqui — e muito mais difícil ainda achar os traficantes.

Mas não é preciso ir tão longe.

Crimes (sic) como jogar papel de bala, chicletes ou qualquer outra sujeira na rua têm penalidades altas — e, por vezes, incorrem na penalidade adicional de perda do emprego (fato que tem um estigma social muito forte). Passar a mão numa moça ou encostar-se nela dentro do metrô, também é crime sério.

Desenvolvimento cultural.

Mas a lei já fez o seu trabalho e esses costumes saíram da tradição cultural. Sábado, cedo, quando eu esperava o guia na porta do hotel, vi um senhor, de uns 70 anos, bem vestido e digno, vindo pela rua. Ele viu um toco de cigarro, abaixo-se e pegou-o. Mas à frente, havia outro. Fez a mesma coisa. Carregou os dois tocos de cigarro consigo até encontrar uma lixeira, quando se livrou deles. Alguém havia violado a lei, jogando os tocos de cigarro no chão, provavelmente durante a noite. O ilustre cidadão assumiu a responsabilidade de deixar a rua limpa como ela deveria ter permanecido.

Desenvolvimento cultural ainda mais sofisticado do que o mero cumprimento de uma lei que pune severamente.

Ontem, antes de eu sair para Tainan, percebi uma estranha movimentação na frente do hotel em Taipei (The Tango). Funcionários de todos os escalões, até da cozinha, estavam reunidos na calçada, havia uma mesa com comidas, bebidas, incenso, bandeirolas, bem como um latão em que algo pegava fogo. Perguntei à recepcionista que havia ficado no balcão o que era aquilo. Ela deu um sorrizinho meio sem graça e disse que ontem era o dia de afugentar os maus espíritos na tradição chinesa. Eles usam incenso, porque os maus espíritos não gostam do cheiro bom do incenso. Eles disponibilizam comida e bebida para os espíritos maus, porque estes, apesar de maus, gostam de comer e beber bem. E a lata com coisas queimando, perguntei? Ali se queimava um dinheiro falso: era um jeito de dar uma graninha aos maus espíritos para eles ficarem longe até o ano seguinte. Se os maus espíritos não vierem pegar a comida e a bebida, perguntei, o que vocês fazem com ela?  Daí a gente come, ela me disse com um sorrisinho malandro…

Fiquei pensando com os meus botões… Se a gente conseguisse afugentar os maus espíritos da política brasileira com incenso e dinheiro falso seria uma beleza, não? Mas os espíritos maus brasileiros gostam de cheiros bons (especialmente no corpo de uma mulher) e de dinheiro verdadeiro, do bom, de preferência de origem estrangeira — e tudo por baixo do pano, nada aberto assim na calçada… Se a gente conseguisse exorcizar esses maus espíritos, quem sabe a gente conseguiria também, com o tempo, o desenvolvimento cultural e o conseqüente desenvolvimento econômico de nosso estuprado país?  

 Em Taipei, 28 de Agosto de 2007

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