Muito interessante a matéria de Carlos Eduardo Lins da Silva, Ombudsman da Folha, na Folha de S. Paulo de hoje (Domingo, 14/02/2010). Transcrevo o texto abaixo (ao final) para os que gostarem desta introdução.
Lins da Silva começa lidando com uma situação concreta – mas generaliza a questão de modo a tratar de um problema filosófico instigante, ao qual, confesso, nunca havia dedicado a devida atenção.
A situação concreta é esta. Uma moça, que participou de um precursor dos “reality shows”, já faz cerca de nove anos, foi entrevistada, junto de outros participantes, e, pelo jeito, disse alguma besteira da grossa da qual hoje se arrepende. A Folha, na época, publicou o que ela disse. Isso, em si, não parece ter nada de mais. Ninguém se lembra, hoje, do que a Folha publicou há uma semana, não é verdade? Quem vai lembrar do que ela publicou há nove anos? Ou não? O problema está em que o texto do jornal está digitalizado, e quem pesquisa no Google o nome da dita cuja vê a tal entrevista em segundo lugar nas páginas exibidas. E isso a tem prejudicado terrivelmente. Potenciais empregadores, e até mesmo os relacionamentos, em geral, que as pessoas têm, pesquisam o Google, ou equivalente, em procura de passos falsos daqueles que cogitam empregar ou com os quais pretendem se relacionar mais duradouramente. Besteiras ditas ou feitas lá atrás podem reaparecer e assombrar a vida da pessoa, como fantasminhas não tão camaradas…
A moça pediu ao Ombudsman da Folha que intercedesse junto à Redação para remover da versão digital do jornal aquilo que ela disse. A Redação se negou, afirmando (com plausibilidade) que remover da versão eletrônica aquilo que apareceu na versão impressa é reescrever e, por conseguinte, falsificar a história – é pior, mesmo, do que simplesmente dar uma falsa impressão.
O Ombudsman (pelo que ele afirma) argumentou com sua Redação que retirar do arquivo eletrônico, a pedido dos interessados, declarações de cidadãos comuns, ou relatos sobre eles, quando eles não são figuras públicas, declarações e relatos que hoje os prejudicam, talvez fosse um pecadilho venial perto do prejuízo pessoal que a declaração ou o relato, agora preservado para sempre, lhes causa… Qual o prejuízo informativo para a sociedade e para história, para a posteridade, enfim, se some para sempre da Internet o que a moça disse ou o que algum outro, hoje um feliz anônimo, fez? Mas a Redação foi inflexível.
Estes os fatos – o “Sitz im Leben” (“Lugar na Vida”) da questão maior, filosófica.
Eis a problematização da questão em uma passagem lapidar pela sua precisão e pela sua economia de palavras, retirada do artigo que transcreverei abaixo:
“A Internet tem criado vários problemas para a sociedade e para o jornalismo, que precisam ser enfrentados com decisão e presteza em nome do bem comum. Um deles é o dessa memória coletiva inapagável. Um livro recente de Viktor Mayer-Schönberger, da Universidade Nacional de Cingapura, trata do assunto. Mostra como a humanidade passou em poucos anos de uma situação milenar em que o esquecimento era a regra e recordar era o desafio (e para superá-lo criaram-se instrumentos como cantos, poemas, livros, jornais) para a [situação] atual, em que lembrar de quase tudo se tornou o padrão e esquecer é quase impossível.” [Ênfases acrescentadas por mim].
Interessante a questão, não?
Mas o mais interessante vem a seguir.
Outra citação. Continua o ombudsman da Folha:
“Ireneo Funes, o personagem do genial conto abaixo indicado [de Jorge Luis Borges], escrito em 1942, não se esquecia de nada. Por isso, diz o autor, era incapaz de pensar. ‘Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos’, como também na memória implantada nos ‘replicantes’, os androides do filme recomendado abaixo, e também na Internet.”
Comento eu agora um tema que é de minha especial predileção. Reter informação demais prejudica a nossa capacidade de pensar… Pensar implica generalizar – e generalizar implica abstrair, deixar fora do quadro os detalhes (ainda que verdadeiros), para chegar à essência das coisas… O conceito de “mesa” não pode fazer referência à cor, ou ao material, ou ao número de pernas de mesas concretas – pois pode haver mesa de todas as cores, de vários tipos de material, de quantidade variada de pernas… Se eu começar a me preocupar com a cor, ou o material, ou o número de pernas de todas as mesas que eu já vi, ou de todas as mesas possíveis, eu não consigo pensar sobre a mesa, em sua essencialidade… Não consigo formular, enfim, o conceito de mesa, porque conceitos são entidades gerais, genéricas mesmo. .
E nós pensamos, não em termos de perceitos (que são as imagens mentais de coisas físicas que são percebidas), mas em termos de conceitos (que são entidades lógicas concebidas por nós, criadas pela mente humana, em geral a partir dos perceitos).
Enfim: reter informação demais prejudica a nossa capacidade de formular conceitos, de pensar…
Qual a implicação disso para a Internet?
Mais importante: qual a implicação disso para a educação — uma educação que gosta tanto de detalhes, na grafia, nos plurais e nos gêneros das palavras, na sintaxe, na concordância dos termos, na regência dos verbos; uma educação que, na história, dá tanto valor a lugares e datas, e, na geografia, à altura das montanhas, à extensão e à vazão dos rios, e outras tantas bestagens?
Lembro-me de que o Rubem Alves, em um de seus artigos, não me lembro qual, disse que quem retém informação demais em sua mente não fica inteligente: fica apenas mentalmente obeso. E ele vai adiante, na direção do que se disse atrás sobre Funes: o mentalmente obeso não consegue pensar, porque sua mente está tão pesada de informações que ele não tem a agilidade mental requerida para pensar… Fica obcecado com detalhes.
A única vantagem que o memorioso (o que retém muita coisa na memória, o que tem uma cabeça cheia) tem sobre o pensoso (o que sabe pensar bem, o que tem a cabeça bem feita) é que o memorioso pode se sair melhor em um jogo de trívia…
Talvez a única falha do artigo do Ombudsman está em sua sugestão que, ao abstrair, devemos “esquecer diferenças”. Talvez a falha tenha origem em Borges. Mas ela me parece ser dupla.
Em primeiro lugar, o verbo esquecer é, no meu entender, forte demais. Talvez o verbo mais indicado seja ignorar, ou não atentar para, ou não levar em consideração.
Em segundo lugar, não é toda diferença que deve ser ignorada no processo de abstração, generalização e conceituação: são apenas as diferenças não essenciais, as diferenças que os antigos chamavam de acessórias…
Explico.
Não resta dúvida que nós, seres humanos, somos diferentes uns dos outros (no sexo, na altura, no peso, na cor, na inteligência, na beleza, etc.). Algumas dessas diferenças comportam inúmeras possibilidades, como as diferenças de altura e de peso; outras, nem tanto; no caso do sexo, há apenas duas possibilidades. Ao tratar uns aos outros, devemos ignorar, não atentar para, não levar em consideração essas diferenças: somos todos humanos e todo ser humano merece ser tratado com dignidade e respeito, apesar das diferenças individuais.
Mas não podemos ignorar, não atentar para, não considerar as diferenças que nos tornam únicos como espécie, e que nos distiguem, não uns dos outros, mas todos nós, como espécie, de outras espécies animais… Ou da espécie angélica. Ou da espécie divina (que, segundo os que crêem, é um conjunto de um só). Quem sabe não é exatamente a consideração dessas diferenças que nos obriga a ignorar aquelas? Ou que nos sugere que, sendo humanos, e portanto animais, e não anjos ou deuses, estamos “salvos da perfeição” e não devemos pretender ser perfeitos? (A busca da perfeição, no plano individual [físico e mental, neste segundo caso envolvendo as dimensões intelectual, emocional, espiritual, imaginativo, criativo, etc.] ou no plano social [representada pelas utopias] já causou muito sofrimento ao ser humano).
É isso… Leiam o texto inteiro do Ombudsman. Vale a pena.
—–Início da transcrição—–
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ombudsma/om1402201001.htm
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ombudsman@uol.com.br
Quem cai na rede nunca mais sai
A internet criou problemas para a sociedade e o jornalismo que têm de ser enfrentados em nome do bem comum
UMA LEITORA, cujo nome não é revelado por razões que ficarão claras, escreveu ao ombudsman para pedir que encaminhasse ao jornal um pedido: a retirada do arquivo eletrônico de uma declaração que lhe foi atribuída em texto publicado quase nove anos atrás sobre um programa de TV.
A moça tinha 18 anos e foi entrevistada com outros participantes de um precursor dos “reality shows”. Na carta ao ombudsman, alega que suas palavras “foram completamente deturpadas”, o que é impossível determinar. Além disso, ela diz não ter autorizado que sua declaração fosse para a internet e, o mais importante, que o fato de estar lá atualmente lhe traz muitos problemas e constrangimentos. Quem pesquisa seu nome no Google, por exemplo, vê a tal reportagem em segundo lugar entre as páginas mostradas.
É cada vez mais comum em processos de seleção profissional os responsáveis pela escolha dos candidatos procurarem saber sobre eles nos mecanismos de busca da internet. Muitas pessoas em início de uma relação sentimental ou de amizade fazem o mesmo.
Encaminhei o pedido à Secretaria de Redação, que respondeu: “A Folha não pode retirar de seu arquivo eletrônico reportagens que foram publicadas na edição impressa”.
Perguntei, então: “por que o jornal não retira declarações de, ou referências a, cidadãos comuns, não pessoas públicas, que façam essa solicitação alegando que a manutenção desse material na internet as prejudica de diversas maneiras, quando tal retirada não acarretar nenhum prejuízo histórico ou informativo para a sociedade?”
A resposta do jornal foi: “A Folha, de fato, não altera seu arquivo digital por considerar que isso seria reescrever sua história mesmo quando o assunto em questão envolver cidadãos comuns. Mas está “linkando” todos os erramos aos textos correspondentes desde 2008. E há um projeto em curso de indexar todo o acervo desde que a seção “Erramos” foi criada”.
É um progresso que as correções estejam sendo anexadas aos textos originais. Mas muitos erros não são reconhecidos e registrados. E há situações em que não há erro: simplesmente a pessoa não quer mais que aquela referência a ela continue circulando na rede.
Claro que é um perigo o jornal permitir que sejam alteradas as matérias como foram publicadas. Mas há situações em que extrair alguma coisa do arquivo eletrônico, às vezes até por razão humanitária, é inócuo do ponto de vista da história ou do interesse público e pode fazer diferença enorme para a vida do cidadão envolvido.
A internet tem criado vários problemas para a sociedade e para o jornalismo, que precisam ser enfrentados com decisão e presteza em nome do bem comum. Um deles é o dessa memória coletiva inapagável. Um livro recente de Viktor Mayer-Schönberger, da Universidade Nacional de Cingapura, trata do assunto. Mostra como a humanidade passou em poucos anos de uma situação milenar em que o esquecimento era a regra e recordar era o desafio (e para superá-lo criaram-se instrumentos como cantos, poemas, livros, jornais) para a atual, em que lembrar de quase tudo se tornou o padrão e esquecer é quase impossível.
Ireneo Funes, o personagem do genial conto abaixo indicado, escrito em 1942, não se esquecia de nada. Por isso, diz o autor, era incapaz de pensar. “Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo entulhado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos”, como também na memória implantada nos “replicantes”, os androides do filme recomendado abaixo, e também na internet.
Mais grave, como registra a professora Sylvia Moretzsohn, da Universidade Federal Fluminense, em diálogo com o ombudsman, é que na memória de Funes, todas as lembranças eram de fatos reais, eram “verdades”, enquanto na internet pululam mentiras, invencionices sobre qualquer pessoa, cuja veracidade não se pode comprovar e, às vezes, nem desmentir.
Cada cidadão, o jornal e a sociedade precisam todos pensar com mais seriedade a respeito dessa questão, que já tem sido capaz de provocar pequenas e grandes desgraças individuais e ainda tem o potencial de gerar enormes dificuldades coletivas.
PARA LER
“Funes, o Memorioso”, in “Ficções”, de Jorge Luis Borges, tradução de Davi Arrigucci Jr., Companhia das Letras, 2007 (a partir de R$ 28,84)
PARA VER
“Blade Runner, o Caçador de Androides”, de Ridley Scott, 1982 (a partir de R$ 24,90)
—–Fim da transcrição—–
Em Salto, 14 de Fevereiro de 2010. (Domingo de Carnaval). Pequenas revisões feitas, também em Salto, em 3 de Junho de 2021. (Quinta-feira de Corpus Christi, para compensar o Domingo de Carnaval de há onze anos e pouco).
*** Nota acrescentada hoje, em 2021: Pelo que parece, a expressão “fake news” não havia ainda sido criada no início de 2010…
*** Nota acrescentada hoje, em 3.6.2021: Confira também os seguintes artigos meus, sobre o mesmo tema:
Pode uma decisão judicial mudar o passado? [Published on Feb 25, 2011 at 7:35 AM]
Tem alguém o direito de pleitear que seu “passado digital” seja re-escrito (ou apagado)? [Published on May 16, 2010 at 8:51 AM]
Sobre o direito de que se esqueça o que dissemos e fizemos [Published on Apr 5, 2010 at 8:35 AM]
Ainda sobre o memorioso… [Published on Feb 20, 2010 at 11:33 PM]
Interessantíssima a problemática levantada pelo publicador, Eduardo Chaves. Essa dualidade ‘internet=riqueza(de informações)=bom’ versus ‘internet=excesso=ruim’ é muito atual e creio que, cada vez mais, se fará presente por ser extremamente necessária e oportuna.
Especificamente ao conceito do mentalmente obeso apresentado por Chaves, citando Rubem Alves, penso que uma frase de Einstein – a qual faço a citação a seguir – já nos alertava sobre o fato, mesmo antes do advento da internet.
— Início da citação —
“A leitura, após certa idade, distrai excessivamente o espírito humano de suas reflexões criadoras. Todo homem que lê demais e usa o cérebro de menos, adquire a preguiça de pensar”. Albert Einstein
— Fim da citação —
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Obrigado pelo comentário. Interessante a citação de Einstein. Acho que, no fundo, ele está certo. Muitas vezes ficamos buscando informações na Internet, lendo, lendo, como uma forma de evitar a necessidade de pensar, refletir, de primeira mão.
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