David Hume, Novamente

No dia 25 de Janeiro deste ano, quando estava em Seoul, coloquei aqui neste blog um artigo sobre David Hume, o filósofo escocês sobre o qual escrevi minha tese de doutoramento em 1971-1972 (defendida junto ao Department of Philosophy of the College of Arts and Sciences of the University of Pittsburgh em 8 de Agosto de 1972). Volto à carga.

Hume nasceu em 26 de Abril de 1711 e morreu em 25 de Agosto de 1776, com sessenta e cinco anos e quatro meses, pouco depois da proclamação da independência das até então colônias inglesas na América.

Estou lendo, no avião que me leva de Chicago para Seattle, uma breve Autobiografia que Hume escreveu pouco antes de morrer (e que foi publicada em Março de 1777, com o título The Life of David Hume, Esq. Written by Himself. Nela ele diz:

“In the spring 1775, I was struck with a disorder in my bowels, which at first gave me no alarm, but has since, as I apprehend it, become mortal and incurable. I now reckon upon a speedy dissolution. I have suffered very little pain from my disorder; and what is more strange, have, notwithstanding the great decline of my person, never suffered a moment’s abatement of my spirits; insomuch, that were I to name the period of my life, which I should most choose to pass over again, I might be tempted to point to this later period. I possess the same ardour as ever in study, and the same gaiety in company. I consider, besides, that a man of sixty-five, by dying, cuts off only a few years of infirmities; and though I see many symptoms of my literary reputation’s breaking out at last with additional lustre, I knew that I could have but few years to enjoy it. It is difficult to be more detached from life than I am at present.”

Traduzo para o Português para os que têm dificuldade com o Inglês — em especial o Inglês britânico do século XVIII:

“Na primavera de 1775 sofri uma desordem nos meus intestinos que, inicialmente, não me deixou alarmado, mas que, desde então, fiquei sabendo que é mortal e incurável. Estou contando com um rápido desenlace. Tenho sofrido muito pouco com a doença; e, o que é mais estranho, visto que meu corpo tem entrado num processo de rápido declínio, nunca fiquei abatido em meu espírito, nem por um só momento. Tanto isso é verdade que, se tivesse de escolher um período de minha vida para viver de novo, ficaria tentado a escolher este período atual. Continuo a ter, em relação aos meus estudos, a mesma dedicação de sempre, e, em relação aos meus amigos, a mesma alegria de conviver com eles. Considero, além disso, que um homem que morre aos sessenta e cinco anos de idade perde apenas uns poucos anos de enfermidades. E apesar de eu notar que, recentemente, minha reputação literária tenha melhorado bastante, sei que teria apenas uns poucos anos para goza-la. É difícil ser mais desligado da vida do que sou atualmente”.

Hume de fato morreu logo depois, com sessenta e cinco anos — a idade que vou completar em três meses menos dois dias. Espero que, quando chegar a minha hora, tenha a mesma calma e o mesmo senso de finalidade que ele demonstrou. Adam Smith, seu melhor amigo, o autor de A Riqueza das Nações, escreveu em 9 de Novembro de 1776, uma carta para o editor de Hume, William Strahan, em que narrou os dias finais do filósofo e concluiu com a seguinte avaliação da pessoa:

“Thus died our most excellent, and never to be forgotten friend; concerning whose philosophical opinions men will, no doubt, judge variously, every one approving, or condemning them, according as they happen to coincide or disagree with his own; but concerning whose character and conduct there can scarce be a difference of opinion. His temper, indeed, seemed to be more happily balanced, if I may be allowed such an expression, than that perhaps of any other man I have ever known. Even in  the lowest state of his fortune, his great and necessary frugality never hindered him from exercising, upon proper occasions, acts both of charity and generosity. It was a frugality founded, not upon avarice, but upon the love of independency. The extreme gentleness of his nature never weakened either the firmness of his mind, or the steadiness of his resolutions. His constant pleasantry was the genuine effusion of good-nature and good-humour, tempered with delicacy and modesty, and without even the slightest tincture of malignity, so frequently the disagreeable source of what is called wit in other men. It never was the meaning of his raillery to mortify; and therefore, far from offending, it seldom failed to please and delight, even those who were the objects of it. To his friends, who were frequently the objects of it, there was not perhaps any one of all his great and amiable qualities, which contributed more to endear his conversation. And that gaiety of temper, so agreeable in society, but which is so often accompanied with frivolous and superficial qualities, was in him certainly attended with the most severe application, the most extensive learning, the greatest depth of thought, and a capacity in every respect the most comprehensive. Upon the whole, I have always considered him, both in his lifetime and since his death, as approaching as nearly to the idea of a perfectly wise and virtuous man, as perhaps the nature of human frailty will permit.” Novamente, traduzo: “Assim morreu nosso amigo, de todos o mais excelente. Nunca será esquecido. Acerca de seus pontos de vista filosóficos os homens vão, sem dúvida, fazer julgamentos diversos, conforme concordem com eles ou deles discordem. Mas sobre o seu caráter e sua conduta dificilmente haverá divergência de opinião. Seu temperamento, na verdade, apresentava um equilíbrio mais perfeito, se é que posso usar essa expressão, do que o de qualquer outro homem que eu conheci. Mesmo quando ele atravessava períodos da pior sorte [financeira], sua grande e necessária frugalidade nunca o impediu, quando a ocasião aparecia, de atos de caridade e generosidade. A sua era uma frugalidade que se baseava não na avareza, mas no amor à sua independência. Sua natureza extremamente gentil nunca permitiu que enfraquecesse seja a força de sua mente, seja a firmeza de suas resoluções. Sua alegria constante era a mais genuína efusão de boa disposição e bom humor, sempre temperados com delicadeza e modéstia, nunca jamais demonstrando sequer uma leve tintura de maldade — maldade que, em geral, em outros homens, é a fonte desagradável daquilo que se chama humor e ironia. Suas brincadeiras nunca tiveram a intenção de mortificar; e, portanto, longe de ofender, raramente deixavam de agradar e divertir, mesmo aqueles que eram objeto delas. Para com seus amigos, que freqüentemente eram o foco dessas brincadeiras, elas eram, talvez, de todas as suas grandes e valiosas qualidades, aquela que mais contribuía para o clima agradável da conversação. E aquele temperamento alegre, tão agradável quando se está em companhia, mas que frequentemente é acompanhado de qualidades frívolas e superficiais, no seu caso era acompanhado de uma aplicação severa, de uma cultura extensa, da maior profundidade de ideias, e de uma capacidade de lidar com as questões mais abrangentes. No todo, sempre o considerei, durante sua vida e, agora, depois de sua morte, o exemplo mais próximo de um homem perfeitamente sábio e virtuoso que, talvez, a natureza humana nos permita alcançar”.

Hume era ateu e não acreditava numa vida futura. E ainda assim, sabendo que o fim era o fim mesmo, não se deixou abater, tornando-se um exemplo para todos os que tentam encarar a vida com uma certa dignidade filosófica.

Entre Chicago e Seattle, 9 de Junho de 2008.

David Hume, Filósofo

Escrevi minha tese de doutoramento, nos idos dos anos 1970-72 (já lá vão mais de 35 anos que a defendi, na University of Pittsburgh), sobre David Hume, filósofo escocês do século XVIII (1711-1776).

Quando a concluí, em 1972, eu tinha a mesma idade dele quando publicou A Treatise of Human Nature, sua primeira obra — e seu opus magnum.

Um dia desses um colega indagou, cético, se Hume poderia entender algo de natureza humana nessa idade. Não tenho dúvida alguma de que a resposta é claramente afirmativa. Basta ler esse monumental trabalho para verificar isso. O Tratado veio a ser considerado por muitos críticos a maior obra de filosofia jamais escrita em língua inglesa. Grande em conteúdo e grande em forma.

Não é comum ver filósofos precoces — mas Hume era um gênio.

No entanto, o sucesso do Tratado demorou por vir. A qualidade de uma obra é uma coisa, o seu reconhecimento pelo público é outra. O próprio Hume admitiu, em seus anos mais maduros, que o Tratado foi, inicialmente, um fracasso de público — “nasceu morto”, disse ele. Para tentar melhorar a recepção do livro, o jovem autor escreveu anonimamente uma resenha, mas não adiantou nada. Hume entrou em depressão — e ficou doente durante mais de dois anos.

Convenceu-se, depois dessa crise, que o problema com o livro era de forma, não de conteúdo, e que o culpado era ele mesmo, por ter publicado o livro prematuramente. Decidiu, então, re-escrevê-lo em estilo mais popular. O resultado foi An Inquiry Concerning Human Understanding, publicado em, com o acréscimo de dois ensaios: um sobre milagres e o outro sobre a imortalidade da alma. Esse livro foi um sucesso de público, e levou Hume a publicar um segundo, An Inquiry Concerning the Principles of Morals (em 1752), e, depois, um terceiro, Political Essays. Mais tarde ainda publicou Of the Standard of Taste and Other Essays. Nesses quatro livros Hume encontrou seu estilo vivo, witty, que lhe trouxe enorme sucesso não só como filósofo mas como pensador e ensaísta, e, depois, como historiador (seu History of England, em seis volumes, foi usado como texto padrão de História da Inglaterra durante bem mais de um século e meio). Entrementes escreveu ainda os geniais Dialogues Concerning Natural Religion and A Natural History of Religion – publicando este em 1751 e deixando Dialogues para ser publicado apenas postumamente, dada a sua “explosividade”. O livro foi publicado por seu sobrinho em 1779.

Hume, que nasceu em 1711, morreu em 1776, ano da independência americana — e da publicação de The Wealth of the Nations por seu melhor amigo, o também escocês Adam Smith.

Hume era folgazão, amigo da boa mesa, grande jogador de gamão. Depois de escrever uma de suas passagens mais céticas, em que afirmava não nos ser possível saber se existe um mundo real fora de nossa mente, admitiu, francamente, ao voltar à mesa de trabalho depois de um belo jantar e de algumas rodadas de gamão, que, ao reler o que havia escrito, achava um absurdo que alguém pudesse fazer uma afirmação daquelas — mas que havia revisto as premissas e os argumentos, e não tinha encontrado nenhuma falha… Agradecia antecipadamente aos leitores, entretanto, se algum deles pudesse lhe mostrar onde havia errado, se é que erro havia ali…

Solteirão inveterado, Hume, ao descobrir que seu irmão pretendia se casar, lhe enviou uma carta, tentando dissuadi-lo. A carta é uma obra prima de wit humeano. Casar é fria, advertiu ele, “because women are the only heavenly bodies whose behaviour Newton’s science was unable to predict“… (cito de memória — as palavras exatas podem não ser exatamente essas, mas a ideia é).

Não sou um cético, como era Hume (ele, um “cético mitigado”, para usar suas próprias palavras). Discordo, portanto, e enfaticamente, do “só sei que nada sei” de Sócrates. Acho que sabemos um monte de coisas (como o próprio Hume, em seus momentos não filosóficos sabia). Felizmente. Mas o ceticismo à la Hume sempre foi um freio aos dogmatismos.

Hume tem duas outras frases que considero memoráveis.

A primeira é que devemos reconhecer que, antes de sermos filósofos, devemos procurar ser homens, ser gente.

A segunda é que nunca devemos, no combate ao dogmatismo e ao fanatismo, incorrer nesses mesmos pecados.

Mais uma vez, cito de memória. Mas citados com exatidão ou não, estes são sobering thoughts, dos quais procurei nunca me esquecer.

Em Seoul, 25 de Janeiro de 2008