[Transcrevo aqui esta crônica, que escrevi originalmente em 24/6/2003 — motivado pela sensação generalizada de prostituição que oferece o nosso mundo político brasileiro, cheio de histórias de gente que se vende]
Rebeca, de Daphne du Maurier, começa com uma frase mais ou menos assim (cito de memória): "Na noite passada sonhei que estava novamente em Manderley…"
Não foi na noite passada, foi uma noite dessas, quando estava na praia, que sonhei. Não que estivesse na bela Manderley, mas, sim, que estava discutindo com um grupo de alunos meus. Querem coisa melhor?
A questão discutida era (desculpem-me o mau gosto!) a prostituição (especialmente feminina, a mais comum até hoje). A tese de algumas feministas no meu sonho era de que a prostituição, nada mais sendo do que (mais) uma forma de opressão da mulher pelo homem, deveria ser (como o é, em muitas partes do mundo) declarada ilegal, proibida e coibida. Ninguém, segundo essa tese, teria o direito de alugar (muito menos de vender para sempre) o uso do próprio corpo.
Argumentei eu (no sonho) que, numa sociedade liberal, o comércio do próprio corpo é, como o comércio de qualquer coisa que lhe pertença, um direito de qualquer um, homem ou mulher (exceção feita a crianças que ainda não alcançaram a chamada "idade da razão" e a incapazes, que nunca a alcançarão — observem, por favor, meu uso de vírgulas neste parêntese… Até em sonhos faço questão de vírgulas bem colocadas!).
Muitos já tentaram defender a legalização da prostituição com base em argumentos de cunho social e utilitário: quem procura uma prostituta, afirma-se, tem menos probabilidade de vir a estuprar alguém, pois tem um remédio fácil e de pequeno risco (ainda que em troca de um dinheirinho) para o mal que o aflige. (É interessante que dificilmente esse argumento se aplicaria, tal e qual, à defesa da prostituição masculina: são raros os casos de homens que são estuprados por mulheres, até porque para que se consume o ato sexual o homem tem de ter uma participação mais do que passiva, cuja presença torna difícil alegar total vitimização).
Minha defesa da prostituição não se baseia em argumentos de cunho social e utilitarista: baseia-se no direito que tem o indivíduo, homem ou mulher, de, querendo, comercializar o próprio corpo e, naturalmente, a mente que o habita. O liberal acredita que a primeira propriedade que temos é a propriedade de nosso próprio corpo e de nossa própria mente. Sendo o seu corpo e a sua mente propriedades suas, qualquer indivíduo tem o direito de dispor deles como desejar:
* guardando tudo para si e tentando não compartilhar corpo ou alma com terceiros (algo que beira o impossível);
* cedendo a terceiros o seu uso, temporária ou permanentemente, de maneira gratuita;
* ou cobrando de terceiros por esse uso.
Se é legítimo (e na tese liberal não há dúvida de que seja) que alguém venda (literalmente) o uso completo do próprio corpo, tornando-se, de livre e espontânea vontade, um escravo, tanto mais legítimo é "alugar" seu uso por alguns momentos fugazes — que é o que acontece na prostituição.
Deixando de lado, por um momento, o meu sonho, os que me conhecem da EduTec sabem que tenho uma certa fascinação pela temática da qual pouco a pouco me aproximo. Se podemos acreditar em relatos encontrados na literatura ou produzidos por pesquisas, prostitutas parecem fazer uma clara distinção entre a cessão do uso do corpo e o que poderíamos chamar, de forma meio "mal adroite", de "a penetração da alma"… Ao mesmo tempo em que permitem aos seus clientes toda forma (ou quase toda) de liberdade como seu corpo, as prostitutas parecem reservar para si próprias, e para aqueles a quem se dispõem a livremente conceder acesso a esse "sanctum sanctorum", a sua alma (que prefiro chamar de sua mente, ou seu universo mental). Muitas se negam a conversar com seus clientes. Outras se negam a permitir-lhes que as beijem na boca. É curioso: a boca, sendo o órgão da fala, parece ser vista como a porta de acesso ao universo interior, à alma, que só se revela ou desvela pela linguagem… A conversa íntima, o beijo na boca, só são permitidos para aqueles que são objeto real de afeição (não de uma emoção simulada…).
Muitos homens — e aqui os homens são os principais envolvidos — tentam justificar suas aventuras extra-maritais dizendo que foram apenas sexo (só o corpo), não envolveram afeição (a mente, a alma)… Segundo eles, pensando nesse aspecto da mesma forma que as prostitutas, a mera troca de fluidos corporais não tem maior significado, pois não afeta a dimensão anterior…
Os que assim pensam são, diria eu, mentalistas, almistas, espiritualistas ou idealistas: divorciam o corpo da mente, da alma, do espírito, das idéias e dos valores. Ayn Rand, numa frase que reputo genial, afirma que as prostitutas e esses homens malandros estão no mesmo nível que os defensores do amor platônico: ambos dissociam corpo e mente. Para ela, o amor platônico (amor sem desejo físico) é uma aberração tão grande quanto o sexo sem amor… Concordo com ela — embora reconheça que nem sempre seja possível ou desejável traduzir o desejo físico em ações concretas que o consumam.
A dissociação do corpo e da mente seria, nesse ponto de vista, o maior erro…
Voltando ao sonho, dentro da lógica anti-prostituinte de meus opositores, eles em geral não condenam a venda ou mesmo o aluguel da própria mente (em si) — algo como uma escravidão ou uma prostituição voluntária da mente. Há tantos casos de pessoas que as praticam, sem que o fato chame a atenção de ninguém, que, acredito, ninguém se opõe firmemente a essa comercialização da mente. Opõem-se, tão somente, à prostituição do corpo…
Há instituições, como a Igreja e a maior parte dos partidos políticos [especialmente os mais radicais, que têm uma linha doutrinária rígida e inflexível], que tentam comprar a sua mente: se você aderir a essas instituições elas passam a pensar por você, isto é, a determinar o que você deve ou pode pensar. A Igreja Católica, o PT e o Partido Comunista são bons exemplos dessa ortodoxia partidária. Podem até não ser bem sucedidos, mas tentam. A Igreja proibiu Boff de falar… Não é sintomático? Se quiser falar, tem de se "desvender", sair da instituição.
O Liberalismo nunca teve essa ortodoxia. Enfatizando a liberdade, o Liberalismo admite que você se junte a outros em uma causa comum, mas requer que você continue dono pleno de seu nariz (e do que está atrás dele, mais acima um pouquinho…).
Num tema paralelo, há muitos que pensam que estão se mantendo fiéis se o corpo não cometeu adultério… Nesse aspecto, fariam bem em atentar às palavras de Jesus, quando ele adverte contra o adultério cometido "na mente"… Jimmy Carter uma vez foi quase "apedrejado" por ter admitido à Playboy que, embora nunca tivesse cometido adul
tério com o corpo, já o havia cometido com a mente… Os tribunais já estão reconhecendo o adultério virtual, aquele em que, embora não tenha havido "conjunção carnal", houve uma "conjunção espiritual"…
Alguns dos leitores podem imaginar que me esqueci de meu sonho, me perdi nos meandros da argumentação e não sei como terminar esta mensagem-crônica. Vou tentar desmenti-los.
Eu, evidentemente, como liberal convicto, acredito que o indivíduo seja proprietário de seu corpo e de sua mente — e que tem o direito de ceder, gratuitamente ou não, o uso tanto de um como do outro. Pessoalmente (o que quer dizer: como questão de fôro íntimo) acho que a dissociação do corpo e da mente acaba nos cobrando no devido tempo o seu preço — mas essa é uma outra questão. No plano dos direitos, reconheço o direito de cada indivíduo de ceder, sem ou com remuneração, o uso tanto de seu corpo como de sua mente.
Isso quer dizer que considero até a escravidão ou prostituição voluntária da mente um direito individual inalienável.
A ênfase, aí, está na palavra "voluntária". Qualquer indivíduo pode, voluntariamente, dar-se ou vender-se como escravo, de corpo e mente, temporária ou permanentemente. Conheço várias pessoas que voluntariamente venderam sua mente à Igreja, ao Partido Comunista, ou a Marx, ou à TFP, ou seja lá a que outra organização ou pessoa. É um direito seu. Posso lastimar seu julgamento, mas não questiono seu direito.
Escravizam-se, voluntariamente, os que vendem não só o seu corpo, mas a sua alma a terceiros… Os que deixam a igreja, o partido, ou o equivalente, determinar o que pensam, o que desejam, aquilo pelo que lutam…
Uns, de mente mais fraca, conseguem, no devido tempo, vir a pensar, desejar e agir da forma que a igreja, o partido, ou o equivalente determinam.
Outros, de mente mais forte mas de moral mais fraca, prostituem sua mente defendem a linha oficial da igreja, do partido, ou do equivalente, SEM ACREDITAR NELA…
Outros, de mente e de moral fortes, se recusam a se curvar. Ainda que os acredite errados, não posso deixar de admirá-los. Admiro a Heloísa Helena, por exemplo. Como protestante que é (segundo me disse o Rubem Alves), ela não quer ser forçada a se prostituir mentalmente. Fica lá como Lutero — "Hier steh’ ich: ich kann nichts ander’s" — correndo o risco da excomunhão pelo pecado de não desejar prostituir a sua mente. Admiro sua coragem e sua fortitude, embora acho que suas idéias sejam uma lástima — e não ache a menor graça na pessoa.
Esclareço para os incautos, que eu, pessoalmente, não me envolvo nesse comércio, seja do corpo, seja da mente. Embora ache que quem o pratica tem o direito de fazê-lo, admiro os que livremente se recusam a vender ou alugar a própria mente.
Meu argumento concluía (no sonho) com um floreio.
Há muitos (de orientação marxista) que criticam, hoje em dia, a mercantilização da educação — a transformação da educação em "commodity", como gostam de dizer. Segundo esses, na impossibilidade de haver um monopólio estatal da educação (algo cada vez mais difícil, especialmente hoje em dia em que, além de ter lugar na escola, se é que ela ali se dá, a educação acontece no lar, na comunidade, no local de trabalho, nos locais de lazer, pelos meios de comunicação de massa, etc.), abrir uma escola que tenha como objetivo vender serviços de educação ainda seria admissível mas apenas se essa venda se desse "sem lucro" (palavra para eles maldita)… Pergunto: por quê? Se eu tenho algo (competências, habilidades, conhecimentos, informações, etc.) que alguém deseja comprar, porque posso vender, mas "sem lucro"???
Na verdade, detecto (continuava eu no sonho) uma incoerência no argumento dos críticos da escola particular com fins lucrativos. Esses críticos, em geral defensores instransigentes da escola pública, são, ao mesmo tempo, defensores do direito de os professores das escolas públicas serem pagos salários dignos. Um salário digno, imagino, é um salário que vai "além do custo", isto é, que vai além da cobertura dos gastos indispensáveis para a pessoa continuar vivendo e exercendo a sua função de professor… Ora, o que sobra, quando se abatem os custos, é lucro… Logo, os defensores da escola pública e de melhor remuneração para os professores dessas escolas defendem o lucro dos professores na venda, aos alunos, de suas (dos professores) competências, habilidades, conhecimentos e informações. Mas lucro só existe quando há venda, isto é, quando a educação é reconhecida como um serviço comercializado no mercado.
Ser professor não implica vender ou alugar a própria mente. Mas implica vender o produto de nossa mente. As competências, habilidades, conhecimentos, e informações que adquirimos ao longo da vida acabam tendo um valor de e no mercado. Podemos optar por compartilhá-las com quem delas precisar sem cobrar nada — simplesmente em troca do prazer de ajudar os outros (e até porque o nosso "capital" mental cresce quando o compartilhamos). Mas no momento em que recebemos um salário, ou algum honorário, para fazê-lo, ainda que de uma instituição pública, tornamos aquilo que compartilhamos com outrem uma "commodity".
São assim meus sonhos. Complexos, cheios de argumentos… Talvez até com algumas tensões que beiram a contradições.
Tive um outro sonho, na noite passada, sobre exclusão social. Exclusão real, como aquela de que foram vítimas os judeus durante a Segunda Guerra e muitos cidadãos da União Soviética durante toda a vigência do comunismo naquele conglomerado de países. Exclusão social real é extermínio. O Comunismo a praticou mais ainda do que o Nazismo. Comunismo que alguns, hoje, querem negar que tenha sido socialismo… Mas esse sonho fica pra outra ocasião. Ele está mais pra pesadelo.
Escrito em Campinas, 24 de Junho de 2003
Transcrito aqui em 21 de Junho de 2005
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