Amanhã, voto NÃO

Quem me dá a honra de acompanhar este blog sabe que sou uma pessoa argumentativa. Gosto de discutir os prós e os contras de várias questões que me afetam ou interessam. Chego a ser até chato nas minhas firulas argumentativas. Muito cedo (durante o Ensino Médio, antigamente chamado de Clássico, na modalidade que cursei) me apaixonei pela filosofia e pela lógica. Sempre tive um certo desprezo pela retórica. Pareceu-me, desde sempre, que a retórica (a velha ou a nova) só é chamada quando a lógica não encontra argumentos convincentes… Por isso, resolvi ficar com o que realmente importa.

Por que digo isso? Porque vou apresentar, adiante, meus argumentos para votar NÃO amanhã, 23 de outubro, no referendo inventado por políticos que não têm o que fazer e ficam procurando jeito de interferir com os direitos da gente, a duras penas conquistados.

Antes de entrar nos meus argumentos, porém, devo confessar que desenvolvi algo que os americanos chamam de “rule of thumb” (literalmente, “regra de polegar” ou “regra de bolso” – uma regra prática) que me permite firmar um posicionamento inicial, sempre provisório, é verdade, acerca de questões sobre as quais não estou tão bem informado como desejaria. Conforme a questão, depois me informo melhor e tomo uma posição mais bem fundada em fatos e argumentos. Mas para um posicionamento inicial provisório a “regra de bolso” em questão é quase infalível. Ei-la: “Se um desses, Marilena Chaui, Emir Sader, ou Rubem César Fernandes, for a favor, eu me inclino a ser contra. Se os três forem a favor, não tenho dúvida nenhuma de que, levantados os fatos e analisados os argumentos, serei contra”. Como disse, essa regra me tem sido quase infalível. (Poderia tentar explicar por quê, mas isso me levaria muito longe do tópico deste artigo).

Na questão objeto do plebiscito, os três são unânimes: vão votar sim. Logo, eu, mesmo antes de estudar a questão com maior profundidade, tinha certeza de que iria votar NÃO. O estudo da questão apenas confirmou essa “intuição original”.

Diferentemente do Reynaldo Azevedo, editor da revista Primeira Leitura, que, no último número da revista, escreveu magistral artigo sobre o assunto, justificando o seu voto NÃO, e disse que iria votar assim apesar de ter muitos amigos cuja opinião ele respeitava que iriam votar sim, eu praticamente não tenho amigos cuja opinião eu realmente respeite que vão votar sim. Encontrei, isto sim, várias pessoas cuja opinião eu não respeito que vão votar NÃO – o que significa que várias pessoas vão fazer a coisa certa pelas razões erradas…

Vou iniciar com meus argumentos mais fracos – progredindo para os mais fortes.

Primeiro, ressalto a forma meio sem-vergonha, malandra (ou então totalmente inapta) com que foi formulada a pergunta do referendo. “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?" A pergunta correta teria sido algo assim: “A aquisição de armas de fogo e munição para a defesa pessoal, para a caça, e para o lazer deve continuar a ser um direito individual no Brasil?” Ninguém teria dúvidas ou faria confusão com essa pergunta – como tem e faz com aquela.

É verdade que os defensores do NÃO exploraram bem a redação ruim (ou mal intencionada) da pergunta do referendo. Imagino que os defensores da proibição tenham imaginado que o povo diria mais facilmente sim do que NÃO. Acabaram por enganar-se redondamente. Os defensores do NÃO convenceram o povo de que o governo estava querendo enganá-lo, para roubar-lhe mais um direito. Capitalizaram no clima anti-governo que os escândalos no Congresso vem gerando: o NÃO soa como um não ao governo e à corrupção que grassa no governo e no PT, partido que lhe dá sustentação. Aproveitaram para deixar claro que a segurança pública é a função número um do governo e que este não vem dando a mínima atenção a essa questão – preferindo prender espalhafatosamente a dona da Daslu e os Malufes que, com certeza, nunca deram um tiro em ninguém durante toda sua vida. Mostraram que a proibição do comércio de armas de fogo e munição não iria desarmar os bandidos, que obtêm suas armas no mercado negro (inclusive roubando ou comprando do Exército e da polícia).

Com isso, a frente do NÃO, com programas de TV e rádio muito bem feitos pela equipe de Chico Santa Rita, pode criar anúncios rápidos bem eficazes, como este, no rádio: “Sinceramente, você acha que esse governo está investindo o suficiente em segurança pública? NÃO!!! Você acha que a polícia tem condições de proteger a população? NÃO!!!! Você acha que os bandidos vão ser desarmados? NÃO!!! Então dia 23 diga: NÃO!!!”. Habilidade marqueteira, é verdade – mas muito eficaz, e que só foi possível porque alguém tentou formular a pergunta do referendo de forma meio malandra.

Em segundo lugar, não gosto de ver a Rede Globo usando seu poder de fogo (desculpem o trocadilho) e seus artistas globais – que andam todos com seguranças armados – para defender o sim. Lembrei-me da reação do povo quando a Globo tentou fazer de conta que a campanha das Diretas Já não existia: “O povo não é bobo, fora a Rede Globo!” Os próprios coordenadores da campanha do sim perceberam que não foi uma boa botar todos os artistas globais falando a favor do sim. Caiu mal. O povo não é trouxa… E a frente do NÃO explorou bem a brecha: “Nosso artista é o povo…”

Em terceiro lugar, a frente do sim e a Rede Globo procuraram, desde o início, caracterizar a questão enfocada no referendo como sendo o desarmamento – até que a Justiça os proibiu de fazer isso. Sabidamente, a questão não é o desarmamento, e os defensores do sim sabem disso. Mas tentaram enganar a população. Foram em parte impedidos de fazê-lo – mas ainda assim a frente parlamentar continuou a se denominar “Frente Brasil Sem Armas”. Deveria ter sido impedida de fazer isso. Mas mesmo assim, o povo, que não é trouxa, não se deixou enganar.

Em quarto lugar, os programas da frente do sim mentiram deslavadamente – tanto que a Justiça Eleitoral os proibir de dizer certas coisas com a maior cara lavada. Diziam, por exemplo, como se fosse evidente, que habitantes de áreas isoladas não seriam proibidos de comprar armas e munição. Isso sabidamente não é verdade. O que o Estatuto do Desarmamento diz é que habitantes de áreas isoladas, que provem que precisam de armas para sua sobrevivência (que vivam da caça, portanto), podem ser autorizados a adquiri-las.

Em quinto lugar, os programas da frente do sim exploraram o sentimentalismo, os casos de gente que foi morta por disparos acidentais, ou em assaltos, ou em balas perdidas… Tentaram dar a impressão que, eliminando essas mortes pela proibição da comercialização de armas de fogo e munições, o problema da violência estaria eliminado e o da segurança pública resolvido…

Em sexto lugar, achei de uma baixeza sem igual a tentativa da frente do sim de caracterizar os que pretendiam votar NÃO como sendo fascitóides, ou gente que estava a mando da indústria de armamentos, ou, então, de patetas. Aquela atitude petista de que só nós somos bons, o resto é picareta ou corrupto, não pega mais. O problema, durante toda a campanha, foi colocado como se fosse simplesmente uma questão de lucro vs vida. A questão da liberdade e do direito à legítima defesa foram sumariamente ignoradas. Deu-se a impressão, em alguns programas da frente do sim, que a maioria dos assassinatos no Brasil se dá com armas de fogo usadas descuidadamente, ou com armas de fogo usadas numa situação passional, ou, então, com armas de fogo roubadas por bandidos de quem tentou se defender de um assalto no trânsito. Nem o Márcio Thomaz Bastos, soi-disant ministro da Justiça do governo, acredita nisso.

Em sétimo lugar, o referendo está previsto no Estatuto do Desarmamento – mas a data do referendo, não. O referendo poderia ter esperado um pouco, mas não: o governo e sua base no Congresso e na sociedade tentaram, a todo custo, aprovar uma data ainda este ano. As razões foram, no fundo, duas: (a) aproveitar o que parecia ser um clima favorável à aprovação da posição favorecida pelo governo, o sim; (b) colocar uma outra questão na pauta dos jornais e das conversas de botequim em substituição à corrupção no governo e à ladroagem do PT. Quem tem pressa, come cru.

Passo agora aos argumentos mais fortes. Os apresentados até aqui são corroborativos. São os argumentos que apresentarei daqui para a frente que dão sustentação à minha posição.

Primeiro argumento: Não é segredo para ninguém que sou um liberal radical, “laissez faire”, daqueles à moda antiga. Para mim, a única função do governo garantir os direitos da população, zelando pela sua segurança, mantendo a ordem pública. Para o bom funcionamento da sociedade, os cidadãos delegam ao governo o monopólio na iniciação do uso da força. Reservam para si, entretanto, o direito de defesa, caso alguém use, ou tencione usar, a força contra eles, numa situação em que não seja possível ou viável chamar a polícia. De nada adiante, porém, ter o direito de defesa se me são proibidos obter os meios de me defender. A proibição do comércio de armas de fogo e de munições é, portanto, um atentado ao meu direito de defesa contra a agressão alheia. Este o meu primeiro argumento principal.

Segundo argumento: Se o argumento anterior já faz sentido em uma sociedade em que o governo cumpre com a sua função de garantir os direitos dos cidadãos, zelando pela sua segurança e mantendo a ordem pública, faz muito mais sentido em uma sociedade, como a nossa, em que o governo é totalmente omisso na questão da segurança pública, em que a polícia (e mesmo o Exército) do governo têm medo de subir nos territórios (especialmente morros) controlados por bandidos profissionais. Nossa sociedade não corresponde ao estado da natureza de Locke, em que não há governo mas há ordem, em respeito a uma lei natural: ela corresponde ao estado da natureza de Hobbes, em que todos estão em guerra contra todos. Nessa guerra, o governo, para dar a impressão de que está finalmente fazendo alguma coisa, e já que não consegue desarmar os bandidos, quer desarmar a gente de bem. As armas dos bandidos não vão ser afetadas mesmo que o sim ganhe. Eles não compram armas e munição em lojas autorizadas. Eles não carregam porte de arma. Eles compram suas armas no contrabando ou as roubam (ou compram!) da polícia e do Exército. Ainda que o sim viesse a ganhar (o que parece improvável no momento, a levar a sério as pesquisas do Ibope e do Datafolha), os bandidos continuariam a ter acesso a armas e munições – só nós, os cidadãos de bem, é que seríamos impedidos de adquiri-las, para nos defender deles. Na verdade, se o sim ganhar, e viermos a obter uma arma no mercado paralelo, provavelmente seremos considerados pelas autoridades como mais bandidos do que os próprios bandidos. Este o meu segundo argumento principal.

Terceiro argumento: Muita gente não tem arma em casa hoje. E muita gente não quer nunca ter. Mas os bandidos não sabem quem tem e quem não tem. Essa dúvida os faz pensar duas vezes antes de invadir a casa de alguém. Se o sim vier a ser aprovado, essa dúvida dos bandidos estará eliminada: eles saberão que virtualmente ninguém terá armas em casa. O voto sim lhes dará um tranqüilo “salvo conduto” para entrar na minha e na sua casa, sabendo que não teremos com que reagir. Isso explica porque, em todos virtualmente os países em que houve uma proibição de comércio de armas e munições, como o que agora se pretende aqui, os crimes (especialmente os roubos) envolvendo violência contra a pessoa aumentaram. Este o meu terceiro argumento principal.

Quarto argumento: Mas não serão só os crimes de violência contra a pessoa que aumentarão. O contrabando e o mercado paralelo também aumentará, porque agora não serão apenas os bandidos que terão de recorrer a eles (como, de resto, já fazem), mas, sim, toda a população que não concordar com à restrição ao seu direito de defesa que a eventual vitória do voto sim lhe imporá. O governo não consegue controlar o contrabando e o mercado paralelo de nada no Brasil – controlaria o de armas e munições? Este o meu quarto argumento principal.

Quinto argumento: Matar ou tentar matar uma pessoa, sem que seja em legítima defesa, já é crime no Brasil (como em qualquer outra nação do mundo). A aquisição de uma arma de fogo, em si, nada tem de criminoso. A arma pode ser usada para caçar, para lazer (tiro ao alvo) e, naturalmente, para a legítima defesa – todas atividades perfeitamente legítimas e não criminosas. Se o governo não consegue impedir que se cometam inúmeros crimes de assassinato ou tentativa de assassinato, algo que já é claramente proibido por lei, por que proibir o comércio de armas de fogo, que têm usos legítimos, a não ser que seja para criar uma cortina de fumaça que impeça a população de ver o seu fracasso na tarefa de garantir nosso direito à vida e à integridade pessoal, zelando por nossa segurança e mantendo a ordem pública? O governo quer nos fazer crer que essa criminalidade toda que está por aí decorre do fato de alguns babacas insistem em comprar armas de fogo para se defender, só conseguindo, assim, segundo diz, aumentar o estoque de armas que os bandidos vão roubar… Este o meu quinto argumento principal.

Sexto argumento: O Estatuto do Desarmamento já é uma lei extremamente severa no controle de quem pode legalmente adquirir e portar armas. Faz pouco tempo que ele entrou em vigor. Na realidade, não foi nem testado ainda. Por que proibir, adicionalmente, e com tanta pressa, o comércio em si de armas e munições?

Poderia acrescentar alguns outros argumentos. Mas estes já são suficientes para justificar, no domingo, o meu voto NÃO.

Em Campinas, 22 de outubro de 2005

Uma resposta

  1. Oi professor!Vc demorou demais a me dar a resposta se poderia linkar o seu blog… Vou passar pra pelo menos um amigo ok?BjosLyana

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