Termos entram em voga e saem de voga. Certamente os termos "inclusão" e "exclusão estão em plena voga. Fala-se a toda hora e em todo lugar de inclusão e exclusão, incluídos e excluídos.
A categoria mais ampla de inclusão / exclusão parece ser a social: os socialmente excluídos seriam os pobres, os que sem educação formal, os sem poder (ou "desempoderados", outro termo da moda, junto com o seu correlato "empoderados" — os substantivos sendo empoderamento e desempoderamento, que traduzem mal o Inglês "empowerment" e "disempowerment"). Os socialmente incluídos seriam os outros: os que têm dinheiro e educação e, assim, participam do "jogo do poder" (são "empoderados").
Outra categoria, menor, é a da inclusão / exclusão digital: os digitalmente excluídos seriam os que não têm acesso ao mundo digital ou, tendo acesso, não sabem o que fazer com esse acesso para melhorar a qualidade de sua vida. Os digitalmente incluídos seriam os outros: nós, os que temos acesso a esse maravilhoso mundo digital e conseguimos até ganhar a vida explorando-o (no bom sentido). Há os que alegam que, hoje, a inclusão digital é chave para a inclusão social — sem aquela, esta seria virtualmente impossível. Talvez seja.
Mas eu quero falar aqui é de inclusão / exclusão de outro tipo. Talvez essa seja a área em que os dois termos originalmente apareceram. Falo da área dos deficientes em geral — daqueles que a consciência das pessoas politicamente corretas resolveu chamar denominar de "pessoas com necessidades especiais". Os mais exagerados em seu corretismo político os chamam de "differently abled" — pessoas com habilidades diferentes, ou diferenciadas. Tudo eufemismo para descrever o triste fato de que algumas pessoas, por falha da natureza, ou por acidente de percurso, carecem de recursos (de algum tipo ou de outro) que as demais pessoas (as "normais" — termo, hoje, quase de opróbrio, têm): ou não vêem, ou não ouvem, ou não têm algum membro, ou têm alguma outra disfunção física, ou, por fim, ficam significativamente abaixo da média em capacidade mental — ou "inteligência" (outro termo, hoje, problemático).
Os defensores da inclusão (no sentido aqui contemplado) têm lutado, com unhas e dentes, contra o preconceito para com os deficientes e para que todos nós, os não-deficientes, nos coloquemos no lugar dos que não têm tanta sorte quanto nós e têm diversos tipos de problemas para fazer as coisas corriqueiras da vida: andar de cadeira de rodas em ruas ou edifícios sem rampas, para os que usam cadeira de rodas, ou a estudar, para os cegos e surdos, etc. Nisso estão absolutamente corretos. Nada do que vou dizer no que segue pretende questionar isso.
Também não quero nem de longe duvidar do fato de que pessoas, por exemplo, com deficiência mental podem ter até mesmo um superávit de outras características humanas extremamente positivas.
O que quero questionar é a tese, apaixonadamente defendida por alguns proponentes da inclusão dos deficientes, de que estes não são, afinal de contas, deficientes — ou, alternativamente, de que, tendo em vista o (suposto) fato de que todos nós somos deficientes em algum aspecto, os chamados deficientes não são realmente deficientes: simplesmente são diferentes, ou possuem habilidades diferentes ou diferenciadas ("differently abled").
Estou convicto de que os que assim agem prestam um desserviço à causa dos deficientes — e vou tentar explicar por quê.
Não resta dúvida de que existem grandes diferenças individuais entre os seres humanos. Uns são muito altos, outros muito baixos, a maioria fica entre os dois extremos; uns são mais claros, outros mais escuros; uns são mais robustos ou gordos, outros mais franzinos ou magros; etc. Também não tenho dúvida de que a mesma diversidade que existe nas características físicas prevalece nas características mentais. Não acredito que nossa mente seja uma "tabula rasa" e que todas as diferenças mentais se devam ao ambiente. Estou convicto de que, da mesma forma que uns são mais altos, claros, fortes e outros mais baixos, escuros e franzinos (em todas as combinações possíveis), alguns são mais bem dotados do que outros em características como inteligência, motivação, ambição, capacidade de relacionamento interpessoal, etc.
Reconhecer o fato da diversidade física e mental do ser humano, entretanto, não nos obriga a aceitar a tese de que a normalidade inexiste. É verdade que, em determinadas áreas, o conceito de normalidade é um conceito estatístico, e, portanto, tem limites (contornos demarcatórios) fluidos, porosos, e, por causa disso, flexíveis. Dizer de alguém que ele tem inteligência normal é afirmar que sua inteligência, como medida por testes de inteligência, recai dentro de certos limites intermediários. Exclui-se, nesse caso, tanto a possibilidade de que ele seja "retardado" (abaixo da linha demarcatória da normalidade) como a possibilidade de que seja um "gênio" (acima da linha demarcatória da normalidade). É verdade que há problemas com esse discurso: questiona-se se os chamados testes de inteligência realmente medem inteligência; há discussões homéricas sobre quanto da inteligência, assim medida, seria devido a fatores genéticos e quanto a fatores ambientais; há toda uma discussão relacionada sobre a questão da "educabilidade da inteligência", ou seja, da possibilidade de melhorar a inteligência das pessoas através da educação, etc.
Isso posto, parece-me indiscutível que, apesar das questões abertas que permanecem, e apesar de não haver consenso sobre onde estão os limites, a tese de que "todos somos deficientes intelectuais" é um absurdo. A tese representada pela expressão entre aspas é defendida em um artigo de Fábio Adiron que vem circulando pela Internet. Vide:
http://insanadiron.blogspot.com/2008/03/somos-todos-deficientes-intelectuais.html
Fábio Adiron é professor de teologia sistemática (protestante) e pai de um menino com Síndrome de Down — chamado Samuel. Diz ele (Fábio):
"Desde que o Samuel nasceu tentam me provar (ainda não me convenceram e, à medida que ele cresce, me convenço menos ainda) que existem algumas áreas do raciocínio que são problemáticas nas pessoas com deficiência intelectual: percepção, memória, abstração e capacidade de interpretação. Lendo e escrevendo eu descobri que não são as pessoas com deficiência que tem essa dificuldade. Somos todos nós.
Temos sérios problemas de percepção. Poucas vezes conseguimos notar que algo diferente está acontendo ao nosso redor. Quando percebemos o fato, não conseguimos ler suas entrelinhas, quando lemos as entrelinhas distorcemos tudo.
Dizem que o brasileiro é um povo sem memória. Tenho a impressão que essa não é uma exclusividade nacional. Com a desculpa da nostalgia voltamos a cometer os mesmos erros do passado. De um lado valorizamos a forma de viver do "nosso tempo" (nesse caso sempre algo da nossa infância e juventude) como se esse tempo não fosse o agora. Ressucitamos anacronismos e ainda
achamos bonito. Do outro lado, esquecemos totalmente a história , geralmente naquilo que ela teve de pior, até que seja tarde demais e o estrago já tenha sido feito…de novo.Também descobri que o uso de metáforas, analogias, metonímias e outras figuras de linguagem são inviáveis. Ironia, então, nem pensar. Não sabemos ou não queremos exercitar nossa abstração. Isso dá trabalho e exige que se pare para pensar. Só conseguimos conviver com o que é concreto, visível, palpável ou compreensível de forma direta. Precisamos personificar conceitos, ou melhor, só personificar sem conceituar nada. Deve ser por isso que os reality-shows façam tanto sucesso, uma vez que não exigem nenhum esforço intelectual."
Não há a menor dúvida de que a capacidade de percepção, mémória, abstração, raciocínio, etc. difere de um ser humano para outro e admite, dentro da curva da normalidade, grande diferenciação. Também não há a menor dúvida de que, mesmo alguém que representa um sério caso de Síndrome de Down pode, com estimulação (i.e., educação) adequada fazer progressos significativos no seu desempenho intelectual, psico-motor e interpessoal. Tudo isso é concedido. Mas, para que possamos dar a esses deficientes o melhor atendimento possível, é preciso reconhecer que eles estão fora da curva da normalidade, e, portanto, possuem "necessidades especiais" que dificilmente serão contempladas se fizermos de conta que eles são normais, ou que todos nós somos anormais (ou, no caso, "deficientes intelectuais"). Pode ser que, em algumas atividades, o deficiente (no caso, o portador da Síndrome de Down) seja beneficiado pela "inclusão" — ou seja, pelo fato de receber o mesmo tratamento que os demais. Mas é possível (talvez mais do que isso, provável) que em outros casos ele se beneficie de uma "educação especial", dedicada especificamente às "necessidades especiais" que eles têm e os demais não têm — e, por conseguinte, "exclusiva".
Para não me estender demais, as dificuldades conceituais na definição da normalidade na área mental, em especial na que envolve a inteligência, absolutamente inexiste na área da integridade física. Se alguém tem ou não tem os dois braços, ou as duas pernas, não é uma questão estatística.
Pode-se tentar contra-argumentar com a questão da percepção sensorial: se alguém é cego ou surdo, ou não, seria uma questão estatística? Eu, por exemplo, uso óculos desde os oito anos de idade (e, provavelmente, deveria ter começado a usá-los bem antes, só não o fazendo por causa da teimosia de meu pai que achava que eu reclamava de que não enxergava a lousa na escola porque achava charmoso usar óculos…). Agora, que estou mais velho, há sons que não escuto facilmente (entre eles o do despertador de meu relógio de pulso). Mas essas minhas "deficiências" são, em parte, corrigíveis: a miopia pelo uso de óculos, por exemplo. A dificuldade para ouvir o alarme de meu relógio não prejudica em nada o meu desempenho nas tarefas que realizo — só me obriga a não depender de meu relógio para ser acordado de manhã. Além, disso, o fato de que alguns de nós não enxergamos ou ouvimos tão bem quanto a maioria não elimina o fato, nem reduz sua importância, de que algumas pessoas simplesmente não enxergam ou não ouvem absolutamente nada. É ridículo pretender que, porque eu tenho de usar óculos, ou minha mãe tem de usar aparelho de audição, a cegueira ou a surdez não sejam deficiências sérias que estão a exigir atenção especial e formas de educação muito especiais (e, por conseguinte, "exclusivas"). O braille e a linguagem de sinais certamente são linguagens — mas não são totalmente equivalentes às linguagens naturais. Pretender doutra forma é tentar mascarar a realidade.
Por fim, acho que a tentativa de ser politicamente correto, com seus eufemismos bobos, é uma bestagem terrível. As coisas devem ser chamadas pelo nome certo: ser cego, ou ser surdo, é uma deficiência, sim; ser portador de Sïndrome de Down é ser portador de uma deficiência, sim. Ninguém sai ganhando se a gente pretender que a realidade é diferente só porque a gente a rotula com outros termos. Da mesma forma que uma rosa continuaria a cheirar bem, mesmo que fosse chamada de uma forma diferente, uma deficiência continua a ser uma deficiência, ainda que a gente a chame de outra coisa.
Em Bellevue, 12 de março de 2008