Prestei atenção à forma em que os meios de comunicação — em especial a Rede Globo — se referiram à morte de Dorival Caymmi.
Em vários momentos a emissora noticiou que havia morrido o compositor e cantor Dorival Caymmi. Quanto a isso não parece ter havido dúvida: quem morreu foi Dorival Caymmi — a pessoa, o compositor e cantor. No entanto, a emissora anunciava em seguida que seu corpo seria enterrado no dia tal, a tais horas, em tal lugar.
Ou seja: morreu a pessoa — mas o que vai ser enterrado é apenas o seu corpo.
E o resto da pessoa, se resto há? O que acontece com ele?
Não tenho dúvida de que uma pessoa é composta, em algum sentido válido dos termos, de pelo menos duas partes: corpo e mente. Há os que acreditam que a pessoa tenha mais do que simplesmente corpo e mente: além do corpo, ela teria alma e espírito — não ficando claro onde ficaria a mente nesse complexo de partes que, em sua totalidade, comporiam a pessoa.
Também não tenho dúvida de que a mente, embora claramente distinta do corpo, morre com ele. Assim, não tenho problema nenhum em dizer "Morreu ontem no Rio de Janeiro o compositor e cantor Dorival Caymmi e ele [o Dorival Caymmi, morto, não apenas o seu corpo] será enterrado amanhã".
Quem acredita na existência da alma e/ou do espírito, em geral acredita que um deles seja imortal ou, pelo menos, capaz de sobreviver à morte da pessoa. Quem sabe, ambos. Na realidade, dentro dessa visão, é apenas o corpo que morre. A Rede Globo parece compartilhar dessa visão. Por isso afirma que é o corpo que é enterrado, não fazendo nenhuma tentativa de explicar onde é que o resto fica enquanto o corpo baixa à sepultura.
Não acredito que a pessoa humana tenha tantas partes, nem muito menos que algumas sejam de tal forma independentes do corpo que possam sobreviver à morte deste (porque quanto ao fato de que o corpo morre ninguém duvida — embora haja quem acredite que um dia será ressuscitado [de que jeito??? as partes de mim que já se decompuseram, depois de minha morte, e passaram a fazer parte de outros organismos, serão reconstituídas???]).
Quem acredita que almas ou espíritos permaneçam, depois da morte do corpo, desencarnados em algum lugar (almas ou espíritos desencarnados precisam de um lugar?), em geral não tem maiores dificuldades em acreditar que outros seres desencarnados (espíritos bons e espíritos maus) existam por aí, em algum lugar (?), e sejam capazes de nos influenciar de maneiras diversas.
Acho muito difícil acreditar nisso. Mas creio que até estaria disposto a acreditar se conseguisse acreditar que um deus incorpóreo e imaterial, totalmente espírito, não só imortal como eterno, sem princípio e sem fim, existe, criou o universo, criou a Terra, o Sol, a Lua, criou o que chamam de "nossos primeiros pais", continua não só a macro-gerir o universo, mas também a micro-gerir as nossas vidas, não deixando que sequer um fio de cabelo de nossa cabeça caia sem que ele o queira, imiscuindo-se nas pequenas coisas de nossa vida, interferindo com o que pensamos, sentimos, desejamos, queremos, fazemos, mesmo nos planos mais íntimos e pessoais, ouvindo preces, atendendo algumas, deixando de atender outras, à sua escolha…
Se conseguisse aceitar que esse tipo de ser existe, não teria maiores problemas em aceitar a existência de uma alma ou um espírito imortal — ou de espíritos, bons e maus, que ficam por aí tentando nos ajudar ou tentando azucrinar nossas vidas. Quem aceita o mais, não tem dificuldade em aceitar o menos.
Morreu Dorival Caymmi. E já foi enterrado. Exceto pela sua obra, e pelas lembrança que dele temos, Dorival Caymmi não existe mais. O mesmo se dará com todos nós.
Em Campinas, 18 de Agosto de 2008