Meu post “A visão religiosa do mundo” gerou em dois dias alguns comentários interessantes, que outros posts não geram em muito mais tempo… Não posso deixar de comentá-los.
Um comentário veio de Emília Eiko (emilia-livro.spaces.live.com); o outro, de Wanderley Navarro (wynavarro.spaces.live.com).
A Emília acha que a religião é um mal necessário. Há alguns liberais que acham o estado um mal necessário. Não acho que o estado, quando configurado corretamente, seja um mal — e o considero necessário. Quanto a religião, não a acho necessária — mas a considero um mal.
Sobre os aspectos supostamente positivos da religião, que, acredito, a tornem necessária, em seu ponto de vista, diz a Emília: “Quando tudo parece perdido, quando o fundo do poço está próximo, é na religião que conseguimos encontrar conforto. Uma prece, uma conversa com Deus, e o coração se aquieta.” Longe de mim negar que há horas em que tudo parece perdido e em que o fundo do poço parece próximo. Talvez a gênese, o “Sitz im Leben”, da religião esteja nesses momentos de “medo e esperança”, “fear and hope”, como o dizia David Hume. Nem que, nesses momentos, sentindo a nossa finitude e impotência, confortamo-nos imaginando que não estamos sós, que há alguém, infinito, todo-poderoso, maxi-benevolente, disposto a nos ouvir em prece e que pode nos ajudar… Não há a menor dúvida de que uma crença dessas nos conforta o coração.
Quanto ao fato de que a religião produz conforto, estou perfeitamente de acordo com a Emília. A questão é: que base evidencial existe para acreditar que a crença em Deus, admitidamente confortante, é verdadeira?
Uma vez assisti a uma entrevista de Billy Graham para Larry King, na CNN. Ao final da entrevista, os papéis se inverteram e o velho (e reconhecidamente simpático) Billy Graham (que tive o privilégio de conhecer em São Paulo no início da década de 60, quando eu era um menino de menos de vinte anos) perguntou ao entrevistador como estava o relacionamento dele com Deus (vindo de Billy Graham, sempre com D). Larry King deu uma resposta que considero exemplar. Disse ele mais ou menos o seguinte (cito de memória): “Gostaria de acreditar em Deus e acredito que as questões com que a religião lida, e que tenta responder, são extremamente importantes. O problema é que não consigo encontrar nenhuma evidência de que Deus existe e de que as respostas dadas pelas diversas religiões às questões que tentam responder sejam verdadeiras”. I couldn’t have said it better myself.
Embora a Emília não traga à baila o assunto da imortalidade da alma, e/ou da ressurreição do corpo, não tenho a menor dúvida de que a crença de que a nossa morte não é o fim, de que há vida depois dela, seja porque a nossa alma é imortal, seja porque nossos corpos um dia serão ressuscitados, seja através de uma combinação dessas duas crenças (como acontece nas versões mais populares do cristianismo) — repetindo, não tenho a menor dúvida de que a crença de que a nossa morte não é o fim nos traz conforto, aquieta o nosso coração, reduz o nosso medo, e nos traz, em vez de medo, esperança… O doído da morte é saber que ela é o fim, que depois dela não há nada por vir, que, quando ela chegar, não veremos mais aqueles a quem amamos, não poderemos mais dar-lhes, ou deles receber, carinho e afeto, que não haverá mais como olhar-lhes nos olhos e nos deliciarmos com seu sorriso… O doído da morte é saber que ela é o fim, que, quando ela chegar, não teremos mais os abraços e os beijos dos filhos e dos netos… O doído da morte é saber que ela é o fim, que depois dela não poderemos mais assistir a belos filmes, ou ler belos livros, ou apreciar pinturas como as de Vermeer, ou ouvir músicas como a Sinfonia em Ré Menor, de Cesar Franck, ou Finlandia, de Sibelius, ou as aberturas de Tannhäuser e Lohengrin, ou mesmo de Tristan und Isolde, de Wagner, ou a Nona Sinfonia de Beethoven, ou Sonho de Amor, de Liszt, ou os Noturnos, de Chopin… Isso tudo é muito doído. Por isso, é fácil acreditar quando nos prometem que ela não é o fim, mas, sim, apenas a passagem para um mundo melhor, em que continuaremos a usufruir e desfrutar todas essas coisas boas, mas em que de nossos olhos se eliminará toda lágrima…
Claro que eu gostaria de acreditar que isso é verdade. A questão é novamente é: que base evidencial existe para acreditar que a morte não é o fim, e que há uma vida futura?
Sobre os aspectos da religião que a tornam um mal, a Emília aponta para o fato de que a religião “pecadifica” o controle da natalidade, o divórcio, o aborto, a eutanásia, assim atrapalhando a nossa vida. Ela não usa o verbo “pecadificar” — sua linguagem é mais literária do que a minha. Eu não hesito em criar um neologismo: pecadificar um comportamento é transformar aquele comportamento em pecado, isto é, considerá-lo não só questionável do ponto de vista moral ou prudencial, mas, também uma ofensa contra deus (com d ou D) e, conseqüentemente, contra uma ordem cósmica eternamente estabelecida.
Concordo com ela aqui. Poderia citar outras questões, como, por exemplo, a crença de que é pecado fazer transfusão de sangue, ou transplantar órgãos de uma pessoa para outra, ou casar-se com alguém de uma religião diferente ou que pensa diferente de nós sobre religião…
[A propósito, Emília Eiko se refere a uma entrevista de Richard Lynn, publicada nos meios de comunicação recentemente, em que ele argumenta que ateus são mais inteligentes do que os não-ateus. Acho fraco o argumento. Mas como a Emília transcreve o artigo em seu SkyDrive, resolvi transcrevê-lo aqui também, ao final.]
A linha de argumentação da Emília me faz lembrar de Pascal e William James. Tanto um como o outro partem do pressuposto de que não há evidência de que Deus existe e de que há uma vida futura. Os dois, porém, acreditam que não haja evidência contrária à existência de Deus ou de uma vida futura. Numa situação assim, argumentam, é razoável “apostar” que Deus existe e que há uma vida futura.
O argumento de Pascal, um lógico, é mais fácil de entender. Visto não haver evidência nem a favor nem contra a crença na existência de Deus e numa vida futura, uma pessoa racional vai apostar que essas crenças são verdadeiras, pelo seguinte argumento:
a) Se eu creio que Deus existe e há uma vida futura, e Deus de fato existe e de fato há uma vida futura, eu terei felicidade suprema por toda a eternidade (I hit the jackpot);
b) Se eu creio que Deus existe e há uma vida futura, e Deus não existe e não há uma vida futura, eu não ganho nada, mas também não perco nada;
c) Se eu creio que Deus não existe e que não há uma vida futura, e Deus de fato não existe e de fato não há uma vida futura, eu não perco nada, mas também não ganho absolutamente nada;
d) Se eu creio que Deus não existe e que não há uma vida futura, e Deus existe e há uma vida futura, eu perco tudo o que tenho e vou fritar no inferno por toda a eternidade (ou seja, como diz minha filha, “tofu”);
Logo, uma pessoa racional aposta em “a” (na inexistência de evidência a favor ou contra essas crenças).
O argumento de William James, um psicólogo, não um lógico, é mais próxima da linha de argumentação de Emília Eiko. Não havendo evidência a favor ou contra, temos o direito epistêmico de acreditar naquilo que traz mais benefícios sociais. James não tinha dúvida de que uma sociedade em que se acredita em Deus e na vida futura é melhor do que uma em que não se acredita, porque as pessoas tenderão a levar mais a sério os preceitos morais (e mesmo os preceitos legais) dessa sociedade, porque sua violação traz não só sanções sociais (e legais), mas, também, a crença em sanções divinas, com conseqüências eternas.
(James não leva muito a sério os malefícios sociais da religião. Autores atuais enfatizam fortemente esses malefícios. Vide Richard Dawkins, The God Delusion [Houghton Miffllin, 2006], e Christopher Hitchens, God is NOT Great: How Religion Poisons Everything [Hachette, 2007]. Por outro lado, Dinesh D’Souza tenta rebatê-los, mostrando os benefícios sociais e culturais da religião, em especial do Cristianismo, em What’s so Great about Christianity [Regnery, 2007]. Eu diria que D’Souza mostra que a balança não pende tanto para o outro lado como Dawkins e Hitchens imaginam. Mas não chega perto de equilibrar os pratos).
A linha de argumentação de Wanderley Navarro toma um outro curso, que eu, pessoalmente, acho mais interessante. Em vez de tentar resumir seu ponto de vista, tomo a liberdade de citá-lo in totum:
“Eduardo Chaves,
Tenho seu site entre meus favoritos. Gosto de conhecer o ponto de vista de pessoas que podem pensar livremente. Sua opinião a respeito da visão religiosa do mundo teve o mérito de me animar a fazer o comentário a seguir.
Quando se fala em visão religiosa pensando numa determinada religião e nos seus rituais, corre-se o risco de empobrecer o assunto. Não restam dúvidas de que Deus, com D ou d, é o produto mais fácil de vender, não só nos nossos dias mas, também, ao longo de toda história. Os ídolos de barro, de ouro ou de conceitos persistem ao longo do caminho.O racionalismo (ou qualquer outro ismo) é apenas um deles.
O homem, ser no mundo, ao dar um sentido para sua vida, cria uma relação com este mesmo sentido. Essa relação (religião) é, no meu entender, a verdadeira dimensão religiosa do homem. A construção de um sentido da vida é também a construção de uma crença, um valor absoluto (um deus ou Deus) que nos serve de guia. Há, inclusive, os que acham mais importante não dar sentido algum a si mesmos. Há quem absolutize o relativo. Enfim, o vínculo entre o que se crê e o agir, eis a religião, entendida aqui no seu mais amplo sentido.
É interessante que um incrédulo, mesmo incrédulo, acredite num tal ser humano. Um conceito, uma crença, uma abstração, uma religião. Quem me garante que sejam todos igualmente humanos? Que seus atributos sejam os mesmos que os meus? Será que este conceito não deve ser atribuído apenas aos que, sábios e doutos, estudam, pensam, descrêem e dão certo?
Não sei se o homem é um ser por acaso, uma reação química do nada com o nada. Não ouso afirmar que sou apenas o resultado de uma transa, com maior ou menor qualidade de mútuo consentimento entre um macho e uma fêmea. Nem me atrevo a dizer que não existe um sentido transcendente para a existência, nem para a minha nem para a dos outros. Não tenho esse direito. As evidências disponíveis não me permitem pontificar sobre o assunto nem estender minha conclusão para o resto da humanidade. A ciência mesmo, por mais elementos que tenha, não se pronuncia a respeito. Quanto a mim, prefiro ser aprendiz de humano e ficar atento ao mistério da vida. Estar aberto à pedagogia da existência. A incredulidade, assim como a idolatria, empobrecem muito nossa vida.
Afora o exposto acima, uma coisa temos em comum: o SPFC. Pode não ser nosso deus mas será, sem dúvida, o nosso santo.”
(http://ec.spaces.live.com/blog/cns!511A711AD3EE09AA!2162.entry#comment)
Confesso que tenho grande simpatia com alguns aspectos da posição do Wanderley Navarro.
O aspecto para mim mais instigante da crítica do Wanderley é sua acusação (feita de forma velada e delicada) de que eu, ao criticar a religião, estou me fundamentando em uma, a saber, em uma religião imanente e humanista, mais do homem (Homem?) aqui na Terra do que de Deus (deus?) lá no Céu (ou partout).
Será que o Wanderley está certo? A linha de argumentação é atraente e provocadora. O Padre Copplestone a utilizou num famoso debate contra Bertrand Russell na BBC (Third Programme), muitos anos atrás. Será que ateus são apenas religiosos com sinal trocado, que acreditam no Homem (com H), em vez de Deus? Em The Fountainhead, de Ayn Rand, Howard Roark, o supra-sumo do ateísmo, é chamado de religioso…
Não creio que o Wanderley esteja certo.
Comecei minhas batalhas filosóficas, quando ainda cria ingenuamente em Deus, tentando refutar Hume, um ateu (na minha opinião — há quem discorde). Não consegui. No essencial, aceitei, no que diz respeito à religião, sua linha de argumentação. Mas nunca me esqueci de uma lição de Hume, que aprendi bem cedo: nunca devemos adotar o “entusiasmo” ao combater o “entusiasmo”. “Entusiasmo”, para ele, é algo que aqui se pode traduzir como um misto de dogmatismo cum fanatismo. Etimologicamente, pelo que consta, o “entusiasta” é aquele que se acredita possuído por Deus (o oposto, portanto, do endemoniado, com uma diferença: o entusiasta SE acredita possuído por Deus; o endemoniado é tido POR OUTROS como possuído pelo demônio). Menciono isso porque tomo especial cuidado para não ser acusado exatamente das mesmas falhas de que acuso meus adversários. Mas é exatamente disso que me acusa Wanderley Navarro.
Como disse, o Wanderley faz uma crítica velada e delicada. Seus argumentos contra mim se parecem com os que acabei de usar contra a Emília Eiko… Como crítico, Wanderley adota a postura do cético ou do agnóstico. “É interessante que um incrédulo, mesmo incrédulo, acredite num tal ser humano. Um conceito, uma crença, uma abstração, uma religião. Quem me garante que sejam todos igualmente humanos? Que seus atributos sejam os mesmos que os meus? Não sei se o homem é um ser por acaso, uma reação química do nada com o nada. Não ouso afirmar que sou apenas o resultado de uma transa, com maior ou menor qualidade de mútuo consentimento entre um macho e uma fêmea. Nem me atrevo a dizer que não existe um sentido transcendente para a existência, nem para a minha nem para a dos outros. Não tenho esse direito. As evidências disponíveis não me permitem pontificar sobre o assunto nem estender minha conclusão para o resto da humanidade. A ciência mesmo, por mais elementos que tenha, não se pronuncia a respeito.”
Note-se que o Wanderley não afirma que somos alguma coisa a mais do que o resultado apenas de uma transa (que ele negritou para impacto). Note-se que ele não afirma que nossa vida tenha sentido transcendente (que ele também negritou). Ele apenas “não ousa afirmar” que somos apenas resultado de uma transa nem “se atreve a dizer” que a vida tem sentido apenas imanente.
Ou seja, ele adota a postura do cético, do agnóstico: “Não tenho esse direito [de afirmar as teses positivas]. As evidências disponíveis não me permitem pontificar sobre o assunto nem estender minha conclusão para o resto da humanidade. A ciência mesmo, por mais elementos que tenha, não se pronuncia a respeito.”
No início de minha trajetória “não-religiosa” senti-me muito tentado a adotar uma postura cética e agnóstica. Custei um bocado a me admitir ateu, e não simplesmente cético e agnóstico. Nisso mais uma vez segui Hume. Quando Hume foi ser attaché cultural da Embaixada Britânica na França, assustou-se com os philosophes, que abertamente alardeavam o seu ateísmo. Para a sua personalidade sensível e delicada, moldada por um ceticismo mitigado, e que recomendava que não deveríamos adotar o entusiasmo no combate ao entusiasmo, o agnosticismo era a posição natural. Ele não queria, defendendo o ateísmo, estar aberto à acusação de que era tão religioso quanto aqueles a quem combatia — só que com o sinal trocado…
Novos tempos, velhas controvérsias.
Meu orientador de Doutorado, o saudoso William Warren Bartley, III, discípulo amado de Karl Popper, de quem foi orientando, foi, por um tempo, excomungado pelo grande filósofo por ousar criticá-lo exatamente numa questão semelhante. Popper, nos capítulos finais de The Open Society and its Enemies, defende uma posição filosófica que ele chama de “Critical Rationalism”. AO discutir, porém, o que justificava a aceitação dessa postura, Popper admitiu que nada a justificava. Tentar justificar o racionalismo, admitiu ele candidamente, já é pressupô-lo, porque toda tentativa de justificar alguma coisa já é um exercício racional. Logo, não há como justificar racionalmente a adoção do racionalismo, a razão como critério de aceitação ou rejeição de outras crenças. Esse procedimento nos envolveria numa falácia de petitio principii — a falácia de pressupor exatamente aquilo que se deseja provar. O racionalismo é um “comprometimento último” que alguns de nós fazemos — mas, como “ultimate commitment”, sua adoção é fundamentalmente irracional — ou no mínimo arracional.
Em seu livro The Retreat to Commitment, publicado originalmente e 1962, Bartley ousou criticar o mestre e foi temporariamente banido de sua convivência. O argumento de Bartley é simples. Primeiro, ele chamou atenção para o fato de que, em seu primeiro livro publicado, Logik der Forschung (The Logic of Scientific Discovery), que veio a público em Alemão em 1934, Popper mostrou que, no caso da ciência, o procedimento metodológico a adotar não é tentar provar (ou justificar) hipóteses e teorias, mas, sim, tentar refutá-las (ou falsificá-las). E tentativas de refutação e falsificação se fazem por apelo a evidências (fatos) e argumentos. Aquelas hipóteses e teorias que, depois de tentativas sérias e prolongadas de refutação ou falsificação, sobreviverem, merecem nossa aceitação — mas sempre de forma provisória e tentativa, pois elas podem vir a ser refutadas ou falsificadas no dia seguinte…
Até aí, nada que pudesse irritar Popper. Foi o segundo passo de Bartley que irritou Popper.
Em seu segundo passo, Bartley argumentou que Popper não havia aplicado à filosofia, e, portanto, a suas próprias idéias, a prescrição metodológica que havia feito para a ciência. O Racionalismo Crítico, diz Bartley, é uma teoria filosófica e, como tal, não deve ser aceito acriticamente (como se fosse um “ultimate commitment” — donde o título do seu livro). Ele deve ser proposto como uma teoria ou hipótese que, como as teorias e hipóteses científicas, deve se submeter a tentativas sérias e consistentes de refutação e falsificação. E, no caso da filosofia, a crítica se dá da mesma forma que se dá a tentativa de refutação e falsificação de teorias e hipóteses científicas: por apelo a evidências (fatos) e argumentos. Se, depois de ser assim criticado, o Racionalismo Crítico subsistir, temos boas razões para aceitá-lo — embora sempre de maneira provisória e tentativa.
O argumento de Bartley é sutil — sutil mas irrespondível. Daí a ira de Popper. A única coisa que Popper conseguiu dizer acerca desse argumento durante a briga dos dois é que ele próprio já o havia elaborado, e que Bartley simplesmente se apropriou do argumento, pois, como discípulo favorito, tinha acesso até a manuscritos ainda não publicados do mestre… Mas se o argumento era mesmo de Popper, por que este não o revelou na edição original de The Open Society, ou em suas várias reedições?
O argumento é sutil porque inverte o onus argumentandi, o dever de argumentar.
Popper, em The Open Society, aceita que é dever seu argumentar em justificação de seu Racionalismo Crítico — mas reconhece que não conseguirá, vendo-se forçado, portanto, a admitir o seu fracasso, dizendo, com todas a clareza, que a aceitação do racionalismo envolve, ela própria, um comprometimento último de natureza irracional ou pelo menos arracional.
Bartley, em The Retreat to Commitment, baseando-se, curiosamente, em premissas totalmente popperianas, se recusa a aceitar que seja dever de Popper, ou seu, ou de qualquer outra pessoa, argumentar em justificação do Racionalismo Crítico de Popper. Para ele, o Racionalismo Crítico proposto por Popper é uma teoria ou hipótese filosófica que foi colocada para discussão e, agora, cabe tentar refutá-lo ou falsificá-lo, por apelo a evidências (fatos) ou argumentos.
Popper admitiu fracasso porque reconheceu que não conseguiria justificar o racionalismo sem, ele próprio, pressupô-lo (cometendo ele, portanto, a falácia do petitio principii).
Bartley, muito mais sagaz, não reconhece fracasso porque joga o onus argumentandi para quem quiser refutar ou falsificar o racionalismo. E fica apenas esperando… Quando alguém tentar refutar ou falsificar o racionalismo, terá de fazê-lo, forçosamente, através de evidências ou argumentos, ou seja, pressupondo a verdade do racionalismo, exatamente aquilo que deseja refutar ou falsificar — e Bartley daí mostrará que são os críticos do racionalismo que não conseguem criticá-lo sem pressupor a sua verdade, envolvendo-se, portanto, numa contradição.
Em outros palavras: Bartley não só foge do petitio principii como coloca os críticos do Racionalismo Crítico na iminência de demonstrar a necessidade de aceitá-lo exatamente ao tentar refutá-lo ou falsifícá-lo.
Por que recorri a esse enorme parêntese? Porque, embora tenha adquirido uma grande simpatia pelo ceticismo e o agnosticismo quando me degladiei com Hume, ao travar contato, através de Bartley, com Popper, convenci-me de que as hipóteses Deus e vida futura, além de nunca terem sido justificadas pelos que as propõem, já foram mais do que refutadas e falsificadas por fatos e argumentos. (A análise e avaliação desses fatos e argumentos vão além do escopo deste post, que já se estende demasiado). Diante disso, não se justifica manter, em relação a elas, uma postura supostamente neutra de cético ou agnóstico — como a que tenta manter Wanderley Navarro.
A crença em Deus e na vida futura é uma daquelas crenças que persiste através dos tempos apenas porque (para invocar o tese de Emília Eiko) apenas porque conforta e aquieta o coração — não por causa de evidências ou argumentos. A maior parte de nós, ou mesmo todos nós, em um momento ou outro, queremos acreditar em Deus — um pai que cuida de nós, que não deixa nem mesmo um só fio de cabelo cair de nossa cabeça sem que isso seja de sua vontade; um ser que, apesar de todo o seu trabalho mantendo o universo em operação e funcionamento, tira tempo para ouvir as criancinhas que pedem para que ele faça voltar o cachorrinho que fugiu, ou as adolescentes que pedem para que ele as ajude arrumar um namorado, ou os adultos que pedem para ele faça um pecador se arrepender… A maior parte de nós, ou mesmo todos nós, em um momento ou outro, queremos acreditar que há uma vida futura, melhor do que essa, na qual, entre outras coisas, vamos reencontrar entes queridos que já morreram, ou na qual daremos prosseguimento, num nível muito mais exaltado de felicidade, ao lado bom de nossa vida terrena…
Só esse fato, de que nós querermos acreditar nessas coisas, já deveria tornar essas crenças suspeitas. O verdadeiro ceticismo está em questionar e duvidar exatamente daquilo em que mais gostaríamos de acreditar — não em pretender isenção e neutralidade em relação a crenças já refutadas e falsificadas.
Conforta a vida das crianças acreditar na existência de fadas madrinhas e anjos da guarda. Eles parecem ser proteção suficiente contra suas contra-partidas, as bruxas e os lobos maus da vida.
Até certo ponto essa crença infantil não causa grande dano, nem dano permanente, se, no devido tempo, vier a ser abandonada.
O problema, com boa parte das pessoas, é que a religião continua a exercer em sua vida adulta o mesmo papel que as histórias infantis exerciam em sua vida de crianças.
A seguir, a entrevista mencionada.
——
Os ateus são mais inteligentes
O pesquisador britânico Richard Lynn dedicou mais de meio século à análise da inteligência humana. Nesse tempo, publicou quatro best-sellers e se tornou um dos maiores especialistas no assunto.
Nos últimos 20 anos, passou a investigar as relações entre raça, religião e inteligência. Ao publicar um trabalho na revista científica Nature, que sugeria que os homens são mais inteligentes, um grupo feminista o recepcionou em casa com o que ele chamou de salva de ovos. O mesmo aconteceu quando disse que os orientais são os mais inteligentes do planeta. “Faz parte do ofício de um cientista revelar o que as pessoas não estão prontas para receber”, diz. Ao analisar mais de 500 estudos, Lynn disse estar convencido da relação entre Q.I. alto e ateísmo. “Em cerca de 60% dos 137 países avaliados, os mais crentes são os de Q.I. menor”, disse. Seu trabalho será publicado em outubro na revista científica Intelligence.
Richard Lynn é professor emérito e chefe do Departamento de Psicologia da Universidade do Ulster, na Irlanda do Norte. Ph.D. pela Universidade de Cambridge, é um dos maiores especialistas em estudos de inteligência em raças e gêneros.
Publicou quatro livros sobre inteligência ligada à raça e ao sexo, entre eles Race Differences in Inteligence: an Evolutionary Analysis, e dezenas de artigos em revistas científicas, como a britânica Nature
ÉPOCA – Por que o senhor diz que pessoas inteligentes não acreditam em Deus?
Richard Lynn – Os mais inteligentes são mais propensos a questionar dogmas religiosos. Em geral, o nível de educação também é maior entre as pessoas de Q.I. maior (um Q.I. médio varia de 91 a 110). Se a pessoa é mais estudada, ela tem acesso a teorias alternativas de criação do mundo. Por isso, entendo que um Q.I. alto levará à falta de religiosidade. O estudo que será publicado reuniu dados de diversas pesquisas científicas. E posso afirmar que é o mais completo sobre o assunto.
ÉPOCA – Segundo seu estudo, há países em que a média de Q.I. é alta, assim como o número de pessoas religiosas.
Lynn – Sim, mas são exceções. A média da população dos Estados Unidos, por exemplo, tem Q.I. 98, alto para o padrão mundial, e ao mesmo tempo cerca de 90% das pessoas acreditam em Deus. A explicação é que houve um grande fluxo de imigrantes de países católicos, como México, o que ajuda a manter índices altos de religiosidade nas pesquisas. Mas, se tirarmos as imigrações ao longo dos últimos anos, a população americana teria um índice bem maior de ateus, parecido com o de países como Inglaterra (41,5%) e Alemanha (42%).
ÉPOCA – Cuba é um país mais ateu que os Estados Unidos, mas o nível de Q.I. não é tão alto.
Lynn – Você tem razão. É outra exceção. Pela porcentagem de ateus (40%), o Q.I. (85) dos cubanos deveria ser mais alto que o dos americanos. Mas há também aí um fenômeno não natural que interferiu no resultado. Lá, o comunismo forçou a população a se converter. Houve uma propaganda forte contra a crença religiosa. Não se chegou ao ateísmo pela inteligência. A população cubana não se tornou atéia porque passou a questionar a religião. Foi uma imposição do sistema de governo.
ÉPOCA – E o Brasil, como está?
Lynn – O Brasil segue a lógica, um porcentual baixíssimo de ateus (1%) e Q.I. mediano (87). É um país muito miscigenado e sofreu forte influência do catolicismo de Portugal e dos negros da África. Fica difícil mensurar a participação de cada raça no Q.I. atual. O que posso dizer é que a história do país se reflete em sua inteligência.
ÉPOCA – O senhor quer dizer que a miscigenação influenciou nosso Q.I.?
Lynn – Sim, é uma hipótese em análise ainda. Os japoneses são os indivíduos que na média têm o maior Q.I. (105) entre as raças estudadas. É mais alto que o dos europeus e dos americanos. Em negros da África Subsaariana, o resultado foi 70. Em negros americanos, esse valor é maior (85). Isso pode ser explicado pelos 25% dos genes da raça branca que os negros americanos possuem.
ÉPOCA – O senhor está sugerindo que índios, brancos e negros têm Q.I. diferente entre si?
Lynn – Exatamente. Isso se explica pela história da humanidade. Quando os primeiros humanos migraram da África para a Eurásia, eles encontraram dificuldade para sobreviver em temperaturas tão frias. Esse problema se tornou especialmente ruim na era do gelo. As plantas usadas como alimento não estavam mais disponíveis o ano inteiro, o que os obrigou a caçar, confeccionar armas e roupas e fazer fogo. Ao exercitar o cérebro na solução desses problemas, tornaram-se mais inteligentes. Há também uma mutação genética que teria acontecido entre asiáticos e dado uma vantagem competitiva a essa raça.
ÉPOCA – O senhor chegou a alguma conclusão sobre a inteligência das raças?
Lynn – Sim. Os asiáticos são os mais inteligentes. Chineses, japoneses e coreanos têm o Q.I. mais alto (105) da humanidade. E isso acontece onde quer que esses indivíduos estejam, seja no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa ou em seu país de origem. Em seguida, vêm europeus (100) e nas últimas posições estão os aborígenes australianos (62) e os pigmeus do Congo (54).
“Os negros americanos são mais inteligentes que os africanos porque têm 25% de genes da raça branca”.
ÉPOCA – Se fosse assim, seria mais fácil encontrar um gênio entre os japoneses ateus, não?
Lynn – Não. Os asiáticos têm Q.I. alto, mas são um grupo mais homogêneo. Há menos extremos positivos e negativos. Eu não diria que é mais fácil nem mais difícil. Na verdade, não sei. Os gênios aparecem em todos os povos, em todos os países, mas é difícil medi-los. E não é porque se é religioso que se é menos inteligente. Mas há uma tendência de encontrar Q.I. mais alto em pessoas não-religiosas. Em minha opinião, isso acontece porque a inteligência aprimorada leva ao questionamento da religião.
ÉPOCA – Há outras habilidades relacionadas ao sucesso profissional e à felicidade, além do Q.I.?
Lynn – Os testes de Q.I. não devem ser tomados como a coisa mais importante da vida. Há muito de cultural nesses testes. E isso se reflete no mau desempenho de tribos rurais. Há também a tão alardeada inteligência emocional e uma série de características sociais que geram vantagem nos tempos modernos. Mas insisto que o Q.I. é um item fundamental para medir a inteligência de uma pessoa.
ÉPOCA – Que outras conclusões podemos tirar a partir do teste de Q.I.?
Lynn – Inúmeras. É uma área de estudos muito produtiva hoje em dia. Acredita-se que pessoas com Q.I. elevado tenham menores índices de mortalidade e menos doenças genéticas. Aparentemente, há uma relação forte entre saúde e Q.I. alto. Os indivíduos mais inteligentes também apresentam menos risco de sofrer de depressão, estresse pós-traumático e esquizofrenia.
ÉPOCA – Qual é seu Q.I.?
Lynn – Meu Q.I. é 145 (Lynn seria superdotado de acordo com a escala mais popular de Q.I. ). É um número alto, eu sei, mas não destoa entre os colegas da academia. Há Q.I.s mais altos que o meu na Academia de Ciências dos EUA. Mas lá também vale a regra. O número de ateus chega a 70%.
ÉPOCA – Como o senhor vê o papel da religião na sociedade?
Lynn – A religião é um instinto, o homem primitivo tem crença religiosa e isso, por algumas razões, se manteve até hoje. Mas, acredito, somos capazes de superar isso com a razão.
Fonte: Revista Época / Luciana Vicária / 08.08.2008
Em Salto, 22 de Agosto de 2008
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