Desigualdade, pobreza e liberdade

Uma sociedade igualitária do ponto de vista sócio-econômico é desejável?

Os autores do artigo transcrito a seguir (que apareceu na Folha de S. Paulo de hoje, 9/4/2009) respondem essa questão na afirmativa.

No processo, fazem algumas distinções importantes – algumas explicitamente, outras apenas por implicação. Mas também negligenciam uma questão fundamental, que eu abordarei aqui.

1. O escopo da busca pela igualdade sócio-econômica

Uma distinção importante, que aparece no texto apenas de forma implícita, diz respeito ao escopo da busca pela igualdade sócio-econômica. Ela pode ser expressa da seguinte forma.

De um lado, há os que propõem que se deva buscar a real igualdade sócio-econômica da população: todo mundo deve viver em condições sócio-econômicas idênticas.

Do outro lado, há os que propõem que se deva buscar apenas a redução das desigualdades sócio-econômicas mais gritantes ou intoleráveis.

2. Os meios de promover a igualdade sócio-econômica

Quanto aos meios pelos quais a igualdade sócio-econômica deve ser promovida, as duas correntes também se dividem.

De um lado, os defensores da busca pela real igualdade sócio-econômica da população acreditam que esse objetivo seria alcançado (presumivelmente) através da:

(a) da propriedade, gestão e operação pelo Estado dos meios de produção; e

(b) da distribuição igualitária, também pelo Estado e para a população, dos resultados dos processos produtivos.

Do outro lado, os defensores da redução das desigualdades sócio-econômicas mais gritantes ou intoleráveis acreditam que esse objetivo seria alcançado (presumivelmente) pela “redistribuição, pelo Estado, das riquezas originariamente distribuídas de maneira desigual pelo mercado”, redistribuição essa que se faria através da combinação de dois mecanismos principais:

(a) a implantação de impostos progressivos, i.e., do princípio de que paga mais impostos, mesmo percentualmente, quem ganha mais); e

(a) “a realização de investimentos sociais generosos nas áreas da educação e saúde públicas e nas redes de proteção social, como o seguro-desemprego”.

3. As duas principais correntes igualitárias

Como se pode facilmente constatar, a primeira corrente descrita, tanto na seção sobre escopo como na seção sobre meios, é a proposta socialista do defunto “Estado Comunista”, claramente incompatível com uma sociedade liberal (capitalista).

A segunda corrente descrita é a proposta social-democrata do chamado “Estado do Bem-estar Social”, que muitos (mas não eu) consideram compatível com uma sociedade liberal (capitalista).

Como assinalei, não considero nenhuma dessas correntes compatível com a visão liberal (laissez-faire) do papel do Estado.

4. Os fundamentos da busca pela igualdade sócio-econômica

Mas há outra distinção importante, esta aparecendo no texto do artigo da Folha de forma explícita, que diz respeito aos fundamentos do igualitarismo sócio-econômico, e que é a seguinte.

Dentre os que consideram o igualitarismo sócio-econômico desejável, qualquer que seja o seu escopo e quaisquer que sejam os meios de promovê-lo, há, novamente, duas correntes:

De um lado, há aqueles que acreditam que o igualitarismo sócio-econômico, ou pelo menos a redução das desigualdades sócio-econômicas mais gritantes ou intoleráveis, tenha “valor moral intrínseco”, por ser “uma exigência de justiça social” – ou, para usar terminologia kantiana, por ser um “imperativo categórico” moral.

Do outro lado, há aqueles que acreditam que o igualitarismo sócio-econômico, ou pelo menos a redução das desigualdades sócio-econômicas mais gritantes ou intoleráveis, tenha “valor instrumental” apenas, por ser “política pública comprovadamente eficiente no combate a várias mazelas sociais” – ou, para usar terminologia kantiana, por ser um “conselho de prudência”.

O artigo transcrito adiante parece advogar essa segunda posição, não entrando no mérito da primeira.

5. O ônus e o custo da busca pela igualdade sócio-econômica

A distinção mais importante que os autores do artigo negligenciam é, a meu ver, a seguinte.

A busca pela igualdade sócio-econômica (de escopo maior ou menor, e quaisquer que sejam os meios utilizados para promovê-la) tem um ônus político e um custo econômico.

Seus proponentes acreditam que o ônus político e o custo econômico da promoção da igualdade sócio-econômica são compensados pelos ganhos.

Seus opositores (como eu) acreditam que o ônus político e o custo econômico da promoção da igualdade sócio-econômica são tão grandes que não são compensados pelos eventuais ganhos (se houver).

Para os críticos do igualitarismo sócio-econômico (como eu), o principal ônus político desse processo é a perda de liberdade (para o Estado) por parte dos demais agentes sócio-econômicos, e que o principal custo econômico é a perda de produtividade que ocorre quando as pessoas se vêem trabalhando para ajudar os outros e não a si mesmas.

Assim, para esses críticos (entre os quais me incluo), dado o ônus político e o custo econômico da promoção da igualdade sócio-econômica (de escopo maior ou menor, e por quaisquer meios, revolucionários ou tributários) pelo Estado, uma sociedade igualitária do ponto de vista sócio-econômico, ainda que desejável em princípio, não seria mais desejável do que uma sociedade não-igualitária.

Diante desse ônus e desse custo, é possível imaginar que algumas pessoas, ainda que considerem o igualitarismo sócio-econômico desejável, em principio, optem por não promovê-lo – ou, pelo menos, por não promovê-lo através da ação do Estado. A promoção, pelo Estado, do igualitarismo sócio-econômico, argumentam, causa mais problemas do que soluciona, e, portanto, é preferível ter, do ponto de vista sócio-econômico, uma sociedade não-igualitária a uma igualitária.

Os que assim pensam podem até mesmo argumentar (como eu tenho feito em vários outros posts) que o maior problema da sociedade atual não é a desigualdade sócio-econômica, mas, sim, a miséria, ou, talvez, até mesmo a pobreza, e que estas podem ser combatidas de forma mais eficaz através de meios não-estatais que não interfiram com a liberdade dos cidadãos.

Estou convicto
de que está mais do que comprovado que a miséria e a pobreza são grandes problemas sociais, que devemos lutar para eliminar. Mas acredito que essa luta deve ser levada adiante por iniciativas privadas e voluntárias, não pelo Estado. Toda vez que o Estado se engaja nessa luta, perdemos liberdade e/ou produtividade.

Também estou convicto de que ninguém conseguiu convincentemente comprovar que a desigualdade sócio-econômica, por si só, seja uma mazela social (como pretendem os autores do artigo da Folha).

Os frutos recompensadores mencionados pelos autores do artigo da Folha advêm da redução da miséria e da pobreza – não da redução, nem mesmo da eliminação (se fosse possível), da desigualdade sócio-econômica.

Em São Paulo, 9 de abril de 2009 [revisto em 10/4/2009]

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Folha de S. Paulo
9 de abril de 2009

O Brasil pode ser a Suécia de amanhã?

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ e EMANUEL KOHLSCHEEN

 


Como reduzir os níveis de desigualdade de nosso país para que possamos colher os frutos que recompensam sociedades mais igualitárias?


MESMO QUEM não acredita que a redução das desigualdades socioeconômicas seja uma exigência de justiça social, conforme estampado na Constituição brasileira, tem razões de sobra para desejá-la ao menos instrumentalmente, isto é, como política pública comprovadamente eficiente no combate a várias mazelas sociais.

Países menos desiguais ostentam em regra índices menores de criminalidade, melhores níveis de saúde pública, maior confiança e solidariedade entre as pessoas e maiores perspectivas de desenvolvimento sustentado. Essa relação, bastante intuitiva, vem sendo confirmada em diversos estudos empíricos analisados e divulgados em recentes relatórios de instituições internacionais (ver, como exemplo, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2006: Equidade e Desenvolvimento, do Banco Mundial).

A mensagem desses estudos é bastante clara. Ainda que não se acredite no valor moral intrínseco da igualdade, é melhor para todos viver numa sociedade mais igualitária.

Mesmo nos países desenvolvidos, em regra muito menos desiguais que o resto do mundo, é possível verificar o fenômeno das patologias da desigualdade, como bem as denominou o filósofo político Brian Barry, da Universidade Columbia (EUA).

Para citar apenas alguns dados, americanos e britânicos, apesar de viverem em dois dos países mais ricos do mundo, ocupam, respectivamente, a 36ª e a 46ª posições no ranking mundial de expectativa de vida, segundo dados do próprio governo americano ("CIA Factbook", 2008).

Os EUA são também o país desenvolvido com a maior taxa de homicídios, quase dez vezes superior à média da Europa (Banco Mundial, 2002). A maior desigualdade das sociedades britânica e americana é apontada como fator contributivo importante dessas discrepâncias em relação aos demais países desenvolvidos.

O Brasil, apesar da recente queda de desigualdade registrada por órgãos de pesquisa (Ipea, IBGE), continua a ser um dos países mais desiguais do mundo e a sofrer, consequentemente, das patologias da desigualdade. Como, porém, reduzir mais rápida e significativamente os níveis de desigualdade de nosso país para que possamos colher os frutos que recompensam sociedades mais igualitárias?

Numa economia capitalista, o principal mecanismo de equalização é necessariamente a redistribuição, pelo Estado, das riquezas originariamente distribuídas de maneira desigual pelo mercado. E o mecanismo mais eficiente para isso é a combinação de impostos progressivos com investimentos sociais generosos nas áreas da educação e saúde públicas e nas redes de proteção social, como o seguro-desemprego (as políticas do chamado Estado de bem-estar social).

Nada muito diferente, portanto, do que fizeram a Suécia e outros países que resistiram melhor à onda neoliberal nascida nos EUA e na Grã-Bretanha, hoje totalmente desacreditada pela grave crise financeira mundial.

Assolada por níveis espantadores de pobreza no século 19, a Suécia investiu pesadamente na infraestrutura social e, principalmente, na educação dos seus cidadãos, o que continua até hoje, ancorando a competitividade do país na economia globalizada. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento acima de 3% do PIB resultam na maior taxa mundial de registro de patentes de novos produtos per capita.

A Suécia figura hoje entre os países mais ricos do mundo. É evidente que a manutenção dessas políticas tem custos que só podem ser financiados pela adoção de impostos progressivos – o outro lado da moeda. O Imposto de Renda na Suécia chega a quase 60% para os mais ricos, enquanto no Reino Unido chega a 40%, nos EUA, a 35%, e no Brasil, a 27,5%. Cidadãos e políticos suecos entendem que esse é o preço justificado da manutenção de uma sociedade desenvolvida, segura e saudável.

Resta, então, responder à pergunta do título deste artigo: poderia o Brasil se transformar em um país tão igualitário como a Suécia e colher os claros benefícios dessa opção política? O último relatório da OCDE sobre a economia da América Latina traz um dado que talvez surpreenda a muitos: as desigualdades da Suécia não são tão diferentes assim das do Brasil quando analisadas pré-atuação estatal, ou seja, pela mera alocação do mercado. Implementar as políticas fiscais e sociais necessárias para nos transformarmos num país mais igualitário é, portanto, uma questão de vontade política. Parafraseando o novo presidente americano, a resposta é: "Sim, podemos!".

OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ, 37, mestre em direito pela USP e doutor em direito pela Universidade de Londres, é professor de direito da Universidade de Warwick (Reino Unido). Foi assessor sênior de pesquisa do relator especial da ONU para o direito à saúde (2006).

EMANUEL KOHLSCHEEN, 35, doutor em economia pela Universidade de Estocolmo (Suécia), é professor de economia da Universidade de Warwick (Reino Unido).

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