Suicídio e eutanásia a pedido vs eutanásia não solicitada, infanticídio e aborto

Refletindo sobre o último post que publiquei, decidi, além de colocar a questão em discussão, “colocar a minha cara para bater”, como em geral se diz, me posicionando – ou, pelo menos, procurando me posicionar.

É desnecessário dizer que a questão é sem dúvida complicada. Para tentar resolvê-la, precisamos procurar ou criar princípios gerais defensáveis que norteiem a nossa convicção e, se for o caso, a nossa decisão.

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Eis alguns comentários iniciais que a colocação da questão em discussão provocou em sites ou áreas de sites sob o meu controle:

Minha amiga Jurema Sampaio disse no Facebook:

“Essas questões de cultura X direitos humanitários são tão delicadas, né? Eu realmente não saberia defender nem um, nem outro lado da questão com consistência… Particularmente e por motivos totalmente pessoais eu sou a favor da vida!”

Eva Alves, comentou aqui neste space:

“Muito complexa tal questão. Eu votaria pelo o amor. Liberdade!!! Que utopia…”

Alguém que assina Fabiana, escrevendo sob o username de Gustavo Lopes Cardoso, comentou aqui neste space:

“Para mim, que tenho um filho com hidrocefalia de 9 anos, e que no período de 24 de Janeiro de 2008 a Janeiro de 2009 passou por 12 (doze) cirurgias no cérebro, essa reação de tirar a criança do hospital é inaceitável. Eles querem que todos nasçam perfeitos. É perfeição tirar a vida de uma criança? O que é entendido sobre perfeição?”

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PRIMEIRO PRINCÍPIO

Bem, concordando com a Jurema, eu também sou, em princípio, a favor da vida. Só que meu posicionamento a favor da vida não é absoluto e radical: ele vem com qualificações, que vou procurar esclarecer ao longo deste post. Essas qualificações são necessárias porque sou radicalmente a favor da liberdade pessoal, discordando, portanto, da Eva Alves de que a liberdade seja uma utopia (embora reconhecendo que seja muito difícil ser radicalmente livre). E, discordando um pouco da Fabiana, eu gostaria que todos nascessem perfeitos – entendendo “perfeitos” como “perfeitamente normais”. Mais sobre isso adiante.

Estou convicto de que deva haver, no caso de seres humanos, uma presunção em favor da vida. (Essa presunção a meu ver não deve existir, a meu ver, no caso de animais criados para serem abatidos e servir de alimentação para os seres humanos e no caso de animais que podem nos fazer mal ou incomodar bastante, como cobras, escorpiões, ratos, baratas, mosquitos e pernilongos. Para mim o ser humano está numa categoria à parte).

Mas essa presunção pela vida é algo semelhante à presunção pela inocência em alguém acusado de um crime. Até que julgado, mesmo alguém preso em flagrante ou “com a boca na botija” deve ser presumido inocente. Mas depois do julgamento, essa presunção pode ser derrotada. No caso da vida, acho que há circunstâncias em que a presunção, depois de exame cuidadoso, pode ser derrotada, e que concluamos que, naquele caso, a morte é preferível. Esse eu designaria como o meu primeiro princípio: ele afirma o direito de o ser humano, dentro de sua liberdade, optar por encerrar a sua vida. 

SEGUNDO PRINCÍPIO

Meu segundo princípio elabora sobre o anterior, considerando que questões como essa – envolvidas em casos de suicídio e eutanásia – são questões extrememente pessoais, a serem enfrentadas e decididas pelos indivíduos que são sujeitos da questão, com base em seus princípios, seus valores e seus critérios de decisão. Isso quer dizer que essas questões não devem ser resolvidas por terceiros, isto é, pela família, pelo grupo social, etc. com apelo a valores culturais compartilhados. É o indivíduo que decide se vai se matar. A eutanásia é uma forma de suicídio assistido, que tem lugar quando a pessoa que quer se suicidar não tem condições de fazê-lo sozinha.

A BUSCA POR UM TERCEIRO PRINCÍPIO

Meu terceiro princípio vai além e tem de ser buscado no contexto em que os sujeitos da questão não têm condições de analisar a questão e tomar uma decisão. Isto se dá quando se trata de pessoas que estão em coma profundo (em geral há muito tempo e sem perspectiva de voltarem a viver normalmente), bem como no caso de doentes mentais graves que se tornaram incapazes de decidir, no caso de crianças, e, naturalmente, no caso de fetos humanos, que são seres vivos que ainda ainda nem nasceram. (A questão do momento em que o óvulo fecundado se torna um ser humano é parte do problema a ser resolvido nessa questão).

O caso da indiazinha relatado pelo UOL, em reportagem transcrita em meu post anterior, parece-me ser desse tipo.  A reportagem e os entrevistados falam em infanticídio. Mas creio que se trata, na realidade, de uma eutanásia não solicitada, que, se realizada, resultará, naturalmente, na morte intencional da criança, e, portanto, de alguma forma, em infanticídio. Mas distingo claramente esse caso, em que, parece-me, se trata de uma eutanásia praticada em alguém que não tem condições de decidir e que, pelo que tudo indica, não tem condições de sobreviver normalmente, de casos como os que acontecem na China em que crianças absolutamente normais são colocadas à morte, ou abandonadas para que morram, apenas porque são, digamos, do sexo errado, isto é, do sexo geralmente não desejado pelos pais naquela cultura, que é o feminino. (Não uso o termo “gênero” para me referir a pessoas: para mim, pessoas têm sexo; quem tem gênero são palavras).

Que princípio invocar aqui nesse caso ou em casos como esse? Qual seria meu terceiro princípio? Confesso que encontro dificuldades aqui que não encontro no caso dos outros dois princípios já enunciados. Mas não vou, por causa disso, deixar de procurar um princípio…

Primeira Observação

Em primeiro lugar, estou convicto de que devemos fazer uma distinção entre:

(a) casos de pessoas, adultos ou crianças, portadores de problemas (“imperfeições” de fabricação ou adquiridas), em geral físicos, mas admitindo a possibilidade de que também sejam mentais, em relação às quais (pessoas) a melhor opinião do dia nos garante que elas não têm condições de viver (ou voltar a viver) uma “vida normal”; e

(b) casos (a regra em abortos, mas que se aplica também a infanticídio) em que fetos e crianças absolutamente normais são condenados à morte ou impedidos de viver apenas porque não são desejados.

Esta primeira observação apenas enfatiza a necessidade de fazer essa distinção e de lidar com cada caso [(a) e (b)] separadamente.

Antes de ir adiante e lidar, separadamente, com (a) e com (b), quero fazer dois comentários sobre a terminologia que usei nessa primeira observação que acabei de fazer:

Primeiro. Coloquei o termo “imperfeições” entre aspas para tentar me safar das críticas. Havia usado inicialmente o termo “defeitos”, mas, depois de comentário da Silvana, optei por usar “imperfeições”, para discutir a questão da “perfeição”.  Estou perfeitamente consciente de que as aspas e a troca de “defeitos” por “imperfeições” talvez não sejam suficientes e as críticas venham de qualquer jeito. Solicito, porém, que procuremos discutir a questões desarmados e, se possível, desapaixonados, embora reconheça que isso seja difícil.

Segundo. Também coloquei a expressão “vida normal” entre aspas por causa da notória dificuldade de definir o que seja uma vida normal. A nossa vida neste planeta teria sido muito mais pobre se algumas pessoas (em geral artistas) que estavam muito longe do padrão de normalidade tivessem tido suas vidas ceifadas por estarem fora da curva da normalidade (em especial na área mental).

Segunda Observação

Em segundo lugar, vou tratar, aqui nesta Segunda Obseervação, de apenas parte daquilo que foi previsto sob (a), na Primeira Observação. Nas demais observações tratarei do restante. Aqui nesta Segunda Observação elaborarei um esboço do que poderia ser o Terceiro Princípio.

Estou disposto a admitir que, no caso de pessoas (adultos ou crianças, bem como de fetos, não prejulgando se são pessoas) portadoras de problemas de natureza física que afetam a sua consciência, em relação às quais a melhor opinião do dia nos garante que não têm condições de viver uma vida normal e consciente, terceiros por elas responsáveis tenham o direito de decidir que devam ser objeto de eutanásia (não solicitada, evidentemente) ou aborto.

Estou me referindo aqui a casos de pessoas que estão em coma profundo considerado, pela melhor opinião do dia, irreversível, ou de crianças anencéfalas, ou de fetos com problemas congênitos que inviabilizem uma vida normal e consciente.

Talvez o caso da indiazinha coberto na reportagem do UOL se encaixe aqui. Não sei suficiente sobre ele. Se se encaixar, eu estaria disposto a admitir que os pais da menina tomem essa difícil decisão – e que a lei os proteja de acusações de ação criminosa.

Terceira Observação

Em terceiro lugar, reluto em admitir o princípio esboçado na Segunda Observação a casos de fetos com problemas físicos sérios, detectados antes do nascimento, mas que não impeçam a sua vida consciente depois do nascimento (como muitos dos casos das vítimas de Talidomida), e a casos de fetos com problemas mentais (incluindo a Síndrome de Down), também detectados antes do nascimento, que podem prejudicar a vida consciente normal depois do nascimento mas não impedi-la de todo.

Apenas para esclarecer, nestes casos a opção a discutir seria o aborto, não a eutanásia.

Quarta Observação

Não admito, de forma alguma, a aplicação do princípio esboçado na Segunda Observação a pessoas que perderam, ou nunca tiveram, alguns de seus membros ou alguns dos seus órgãos do sentidos.

Por mais lamentáveis que sejam essas situações elas são claramente distintas.

Apenas para esclarecer, nestes casos a opção a discutir seria tanto a eutanásia como o aborto, dependendo do caso.

Quinta Observação

Em quinto lugar, reluto (ainda mais do que no caso da Terceira Observação) em aplicar o princípio esboçado na Segunda Observação a casos de gravidezes não desejadas em que o feto não apresenta nenhum problema.

(A opção a discutir aqui seria o aborto, não a eutanásia.)

Sexta Observação

Em sexto lugar, recuso-me totalmente a aplicar o princípio esboçado na Terceira Observação a casos como os que acontecem na China em que uma criança perfeitamente normal e já nascida é abandonada para morrer ou mesmo ativamente assassinada simplesmente porque é, digamos, do sexo considerado errado. Para mim, aqui se passou do limite do discutível.

Sétima Observação

Em sétimo lugar, e por fim, nos casos em que afirmei relutar em admitir a aplicação do princípio esboçado na Terceira Observação (mas não nos casos em que afirmei me recusar a admitir a aplicação desse princípio), eu me recusaria a condenar as pessoas encarregadas de tomar a decisão, respeitando plenamente uma decisão diferente da minha. Na realidade, apesar de dizer que reluto em admitir a aplicação do princípio esboçado nesses casos, declarei essa relutância em teoria, sem estar confrontado com um caso real e concreto em que a decisão caberia a mim, e, por isso, devo respeitar a dificuldade daqueles que têm de tomar essa decisão.

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Acho que, por enquanto, é isso…

Em São Paulo, 18 de Abril de 2009

4 responses

  1. Liberdade, não foi o tema do seu último post, mas já que fez referência ao meu comentário,dê-me o direito, de considerar as palavras de Navarro em seu comentário.Se estamos inseridos num contexto de tamanha diversidade cultural e a lei, preza pelo reconhecimento e pela valorização das diferenças e se nas diferenças, fazemos restrições às decisões que outros grupos étnicos podem tomar ,então estamos interferindo na liberdade de escolha do outro.E, se fazemos tal interferência, ou mesmo contribuimos para que a liberdade de escolha do outro se prolongue em se concretizar ou não se concretize ,então não seria a mesma uma utopia?Muito complexo… Muito polêmico seu post.

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