Muito interessantes os dois artigos de Luiz Felipe Pondé na Folha de S. Paulo (7 e 24 de agosto do ano corrente, respectivamente) sobre a Lei Antifumo de São Paulo.
Transcrevo-os no final para referência mais fácil.
Pondé atribui a um “impulso fascista moderno” a energia dedicada por tantas pessoas, hoje em dia, em reprimir o uso do tabaco. Comento isso mais tarde.
Vou tentar explicar em minhas palavras o argumento dele, indo, em alguns casos, um pouco além da posição que ele se propôs defender (e deixando algumas facetas de seu argumento sem comentário).
Como hoje parece pacífico (talvez por se acreditar provado pela ciência?) que a fumaça do cigarro alheio pode causar danos aos pulmões de não-fumantes que estejam perto de fumantes, parece tranqüila a defesa da tese de que cabe ao Estado proteger os não fumantes da fumaça do tabaco alheio.
Mesmo essa tese, porém, precisa ser acompanhada de qualificativos importantes:
a) Essa proteção deve ficar restrita a espaços públicos e fechados;
b) Essa proteção não deve se aplicar a não-fumantes que:
i) desejem estar perto de fumantes, ainda que em espaços públicos e fechados;
ii) não se importem em estar perto de fumantes, ainda que em espaços públicos e fechados;
iii) estão convictos de que a intervenção do Estado na questão é mais nociva e prejudicial do que a fumação remota e involuntária do cigarro alheio.
Isso quer dizer que:
a) O Estado não deve restringir a liberdade dos fumantes em espaços públicos abertos (ruas, praças, praias, parques, florestas, etc.);
b) O Estado não deve interferir em contextos em que sua interferência não é bem-vinda, nem muito menos solicitada, e dos quais as pessoas envolvidas preferem que o Estado fique (bastante!) longe.
Além disso, a proteção do Estado deveria se restringir a exigir que os espaços públicos fechados reservassem uma área para não fumantes – facultando-lhes manter uma área para fumantes e os acompanhantes que preferem estar com eles a estar em áreas interditadas a fumantes.
Mas isso não seria novidade: a maior parte dos estabelecimentos comerciais já praticava essa norma,
Coerentemente com o aqui assinalado, Pondé critica a lei antifumo por ela (por exemplo) “não preservar alguns poucos bares e restaurantes livres para fumantes [ou não preservar, nos bares e restaurantes destinados a não fumantes, espaços reservados para fumantes], sejam eles consumidores ou trabalhadores do setor.”
A questão mais interessante, porém, do ponto de vista teórico, e não mais simplesmente prático, diz respeito às razões pelas quais o Estado se acha no direito de dar vazão a essa sua fúria legisferante, reduzindo os espaços da liberdade individual.
Pondé sugere que essa fúria legisferante se deve a um “impulso fascista moderno”.
Tendo a concordar com ele.
O fato de um Estado ser, em termos gerais, democrático (eleger seus governos democraticamente, adotar procedimentos legislativos democráticos, etc.) não o impede de agir de forma fascista. O fascismo só é eliminado quando o Estado democrático se alicerça numa plataforma de direitos individuais invioláveis, imprescritíveis, irrevogáveis.
Na ausência desse alicerce, o Estado vira presa fácil de “almas mesquinhas e autoritárias” que gozam (i.e., orgasmizam) diante da possibilidade de controlar o comportamento alheio pelos padrões de seu estreito código moral. São essas almas mesquinhas e autoritárias que Pondé chama de “freiras feias e sem Deus”. (Convenhamos: ser freira já é um desastre; freira feia, então, um desastre duplo; freira feia e sem Deus, então, um desastre completo).
A democracia, quando não alicerçada nos direitos individuais, tende a legislar as tendências puritanas da maioria da população (como já o havia percebido de Tocqueville, numa época em que a ciência não havia ainda declarado o fumo passivo e vicário prejudicial à saúde), banindo atividades que não prejudicam a ninguém (exceto, talvez, os que nelas indulgem), como o jogo, a bebida, o fumo, as demais drogas.
A legislação de tendências puritanas tem como objetivo, em última instância, não a proteção de terceiros contra as ações do fumante, do consumidor de bebida alcoólica ou outras drogas, mas, sim, a proteção do indivíduo contra si mesmo – fazer do indivíduo um ser virtuoso (algo que nenhum liberal digno do nome admite como função legítima do Estado).
As “freiras feias sem Deus”, se não tiverem sua ação cerceada, irão, muito em breve, nos proibir de beber vinho Porto, comer carne vermelha, fumar em casa (para proteger o pulmão do vizinho), ler romances de cunho mais erótico, andar pelados em casa…
Pondé chega ao clímax literário do seu argumento quando diz:
“O que essas freiras feias sem Deus não entendem é que o que humaniza o ser humano é um equilíbrio sutil entre vícios e virtudes. E, quando estamos diante de neopuritanos, de santos sem Deus, os vícios é que nos salvam. Não quero viver num mundo sem vícios. E quero vivê-lo tomando vinho, vendo o rosto de uma mulher linda e bêbada em meio à fumaça num bistrô.”
Lindo…
No artigo de hoje, Pondé explica, com clareza exemplar, porque essa atitude de fúria legisgerante é fascista, mesmo num Estado democrático:
“Já o fascismo é, no fundo, uma religião civil e não um tipo específico de política ou governo. Manifesta-se como um governo cuja autoimagem é a de um agente moral na sociedade. Agente este movido pela fé em gerar melhores cidadãos, por meio do constrangimento legal e científico dos comportamentos.
Na democracia, o fascismo ainda é mais perigoso porque tende a ser invisível. Esta invisibilidade nasce da ilusão de que a legitimidade pelo voto inviabiliza o motor purificador do fascismo. Pelo contrário, a própria ideia de ‘maioria’ ou de ‘vontade do povo’ trai a vocação fascista.”
Por fim, mais uma questão importante: devemos delegar à ciência e aos cientistas a decisão de definir as nossas leis?
É isso.
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Folha de S. Paulo
7 de agosto de 2009
As freiras feias sem Deus
LUIZ FELIPE PONDÉ
COLUNISTA
DA FOLHA
O QUE MOVE as pessoas, em meio a tantos problemas, a dedicar tamanha energia para reprimir o uso do tabaco? Resposta: o impulso fascista moderno.
Proteger não fumantes do tabaco em espaços públicos fechados é justo. Minha objeção contra esta lei se dá em outros dois níveis: um mais prático e outro mais teórico.
O prático diz respeito ao fato de ela não preservar alguns poucos bares e restaurantes livres para fumantes, sejam eles consumidores ou trabalhadores do setor. E por que não? Porque o que move o legislador, o fiscal e o dedo-duro é o gozo típico das almas mesquinhas e autoritárias. Uma espécie de freiras feias sem Deus.
O teórico fala de uma tendência contemporânea, que é o triste fato de a democracia não ser, como pensávamos, imune à praga fascista.
A tendência da democracia à lógica tirânica da saúde já havia sido apontada por Tocqueville (século 19). Dizia o conde francês que a vocação puritana da democracia para a intolerância para com hábitos "inúteis" a levaria a odiar coisas como o álcool e o tabaco, entre outras possibilidades.
Odiaremos comedores de carne? Proprietários de dois carros? Que tal proibir o tabaco em casa em nome do pulmão do vizinho? Ou uma campanha escolar para estimular as crianças a denunciar pais fumantes? Toda forma de fascismo caminhou para a ampliação do controle da vida mínima. As freiras feias sem Deus gozariam com a ideia de crianças tão críticas dos maus hábitos.
A associação do discurso científico ao constrangimento do comportamento moral, via máquina repressiva do Estado, é típica do fascismo. Se comer carne aumentar os custos do Ministério da Saúde, fecharemos as churrascarias? Crianças diagnosticadas cegas ainda no útero significariam uma economia significativa para a sociedade. Vamos abortá-las sistematicamente? O eugenista, o adorador da vida cientificamente perfeita, não se acha autoritário, mas, sim, redentor da espécie humana.
E não me venha dizer que no "Primeiro Mundo" todo o mundo faz isso, porque não sou um desses idiotas colonizados que pensam que o "Primeiro Mundo" seja modelo de tudo. Conheço o "Primeiro Mundo" o suficiente para não crer em bobagens desse tipo.
O que essas freiras feias sem Deus não entendem é que o que humaniza o ser humano é um equilíbrio sutil entre vícios e virtudes. E, quando estamos diante de neopuritanos, de santos sem Deus, os vícios é que nos salvam. Não quero viver num mundo sem vícios. E quero vivê-lo tomando vinho, vendo o rosto de uma mulher linda e bêbada em meio à fumaça num bistrô.
Luiz Felipe Pondé é colunista da Ilustrada
Folha de S. Paulo
24 de agosto de 2009
LUIZ FELIPE PONDÉ
A volta das freiras feias
E se a ciência descobrir que fumantes emitem partículas cancerígenas pela respiração?
HÁ DIAS escrevi no caderno Cotidiano desta Folha um artigo cujo título era "Freiras Feias sem Deus" sobre a nova lei antifumo. Um mar de e-mails.
Volto ao tema hoje para aprofundar duas questões que julgo mais importantes neste debate. Uma delas se refere à imagem de uma freira feia sem Deus como metáfora dos fascistas amantes da nova lei. Por que freira, por que feia, por que sem Deus?
Outra questão, mais "séria", referia-se ao uso do termo "fascismo" para uma lei legitimamente votada num Estado democrático de direito. Como aplicar um termo advindo do universo totalitário ao campo da vida política democrática?
Eu sei, caro leitor: quem é afinado com o debate da filosofia política contemporânea sabe que a suposição de que a democracia seja imune ao fascismo não passa de mera ignorância.
A democracia atual, com suas intenções de corrigir o comportamento do cidadão (elevando-o à categoria de agente moral), pelo contrário, bebe muito na inspiração fascista.
A referência da "freira" aqui é simbólica, é claro. "Freira" remete à figura da mulher religiosa maníaca pelo controle das paixões e dos desejos, uma espécie de fiscal da virtude e do pecado. Ela ama castigar o pecador enquanto se olha no espelho e vê sua face como sendo a do espírito puríssimo. Não muito distante do não fumante militante que, ainda que não confesse, vê o fumante como um lixo da humanidade, alguém que tem prazer em se melar com a morte.
"Feia" é a figura da deformação interna da alma advinda desta fiscalização orgulhosa. Goza a noite em seu quartinho abafado, com a ideia de que, finalmente, aqueles que ela detesta serão humilhados. Como ratos que se escondem no escuro pra respirar seu ar doente.
"Sem Deus" é uma referência mais sofisticada. A relação entre a luta contra o pecado e o vício, por um lado, e Deus, por outro, implica a noção de piedade. Deus é uma ideia que traz em si um abismo no qual miséria humana e misericórdia divina se encontram.
Uma freira feia sem Deus é terrível porque a única coisa que ela deseja é a violência legal como controle total do pecador, sem amor algum pelo infeliz. Ao pecador resta apenas a miséria e a vergonha.
Já o fascismo é, no fundo, uma religião civil e não um tipo específico de política ou governo. Manifesta-se como um governo cuja autoimagem é a de um agente moral na sociedade. Agente este movido pela fé em gerar melhores cidadãos, por meio do constrangimento legal e científico dos comportamentos.
Na democracia, o fascismo ainda é mais perigoso porque tende a ser invisível. Esta invisibilidade nasce da ilusão de que a legitimidade pelo voto inviabiliza o motor purificador do fascismo. Pelo contrário, a própria ideia de "maioria" ou de "vontade do povo" trai a vocação fascista.
O fator saúde, seja pessoal, seja do planeta, seja da sociedade, sempre foi uma paixão fascista -isto já é largamente conhecido. A própria noção de progresso como saúde social canta hinos fascistas.
Perguntará o leitor: mas se for assim, não tem solução! Sim, tem, basta o governo ser mais cético com seus impulsos de purificação do mundo e se ater a sua condição de "síndico" da sociedade e não de reformador. A ideia de uma sociedade "saudável" já é fascista. O estado moderno tem em seu DNA a vocação ao fascismo.
Outro veneno é a associação com a ciência. Aqui tocamos o fundo do poço. Só idiotas, ou fascistas confessos, mesmo que mentirosos, creem em verdades científicas como parceiros éticos.
A rejeição de comportamentos construída via argumento científico tem a seu favor
do ponto de vista do fascista a segurança de que ela é inquestionável. E se a "ciência" tivesse provado que os judeus eram mesmo seres inferiores e eticamente poluidores do mundo, seria correto exterminá-los? Ou pelo menos confiná-los?
Imagine, caro leitor, se em alguns anos "a ciência descobrir" que fumantes e ex-fumantes emitem partículas cancerígenas pela respiração. Claro que esse "a ciência descobrir" pode significar uns quatro ou cinco trabalhos financiados por lobbies contra os fumantes. Como proceder?
Arrisco dizer que nossas freiras feias sem Deus proporiam campos de concentração para os fumantes. Assim garantiríamos um ar sempre puro. A inspiração fascista da modernidade é resultado da secularização do cristianismo e seu desejo de perfeição. Pena que só sobraram as freiras feias e sem Deus.
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Escrito e transcrito em São Paulo, 24 de agosto de 2009
Não vou aqui comentar as opiniões expostas na publicação. Opto por referir a minha experiência de vida pré- e pós- entrada em vigor, nos países de Comunidade Europeia (CE), da directiva que regula o fumo em espaços fechados.Antes de 1 de Janeiro de 2008 não existia qualquer impedimento legal para se fumar em recintos fechados. Era, assim, vulgar, estar-se num restaurante a comer e, ao mesmo tempo, a respirar a fumaça originada por outros clientes. Cheguei a recusar-me entrar em restaurantes porque a fumaça ambiente era tal que mal se enxergava. Em estabelecimentos de diversão nocturna o ambiente era, normalmente, assim: nevoeiro cerrado.Em algumas empresas de origem – e cultura – norte-americana já então era absolutamente proibido fumar dentro das instalações e nunca ninguém pediu a demissão por isso. Os fumadores exerciam então o seu direito em plena rua, do lado de fora dos edifícios.Ao aproximar-se a data de entrada em vigor da directiva, começaram a circular opiniões de como seria ou não seria após a sua entrada em vigor. (como é normal nestas situações em que as pessoas estão mal informadas mas, ainda assim, não se coíbem de emitir opiniões.)A directiva prevê que estabelecimentos a partir de determinadas dimensões possuam zonas para fumadores, das quais não deve escapar fumo para as zonas circundantes. Estabelecimentos mais pequenos têm de optar por serem para fumadores, ou para não fumadores. As empresas deverão providenciar locais para os empregados fumadores exercerem o seu direito a fumar. Em muitos casos esse local é a entrada do edifício, mas do lado da rua.É assim vulgar ver, à porta das empresas, grupos de pessoas fumando. Curiosamente, na sua maioria, mulheres jovens.Hoje, 20 meses após a data de entrada em vigor da directiva, os fumadores continuam a frequentar os estabelecimentos de diversão (se bem que vêm à rua fumar) e, pelo que tenho conversado com alguns responsáveis, o número de clientes subiu pois aqueles que não suportavam ambientes de fumo estão a voltar.Escrito em Odivelas, Portugal, entre 28 e 29 de Agosto de 2009
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