Calligaris, me desculpe, mas você está muito errado…

Gosto de ler Contardo Calligaris. Raramente discordo drasticamente do que ele escreve ou diz (participei com ele de um congresso em Bento Gonçalves algum tempo atrás). Mas discordo, e veementemente, do artigo que ele publicou na Folha de S. Paulo de ontem, 1 de Abril de 2010, sobre “pedófilos, celibatários e infalíveis”.

O artigo de Galligaris é uma crítica àqueles que, como eu, acham que o celibato imposto aos sacerdotes católicos romanos tem muito (embora não tudo) que ver com os vários surtos de pedofilia homossexual que acometem os padres.

Não acho que o celibato clerical seja a única causa da pedofilia homossexual católica. Em minha opinião, ele faz parte de um conjunto de causas que me parece impossível negar.

Em dois artigos anteriores, aqui neste blog, toquei nesse assunto.

Neles argumentei em favor de minha conjectura (em três partes) acerca das causas principais do número relativamente elevado de padres que se envolvem com pedofilia homossexual. 

1) O seminarista, futuro padre, é desde cedo doutrinado a ver na mulher a fonte número um do pecado. Como ele vai ser celibatário, e sabe disso, a mulher é a tentação que ele deve evitar a todo custo. A mulher é, para ele, símbolo de tentação: a Eva que, por influência da serpente, induziu Adão a pecar.

2) A Igreja trancafia o futuro padre, em muitos casos desde cedo, em seminários, onde ele fica segregado de mulheres: só vê guris mais ou menos da sua idade – e, naturalmete, os professores (todos homens). Internatos unissex parece que foram bolados para gerar, nos adolescentes, interesse pelo mesmo sexo (principalmente quando o interesse pelo sexo oposto é não só proibido, mas demonizado).

3) Quando vai exercer o sacerdócio, o padre acaba ficando rodeado de coroinhas, parecidos com os seus coleguinhas de seminário menor, que, agora, o admiram e olham para ele como figura de autoridade. E ele, por outro lado, pela sua doutrinação, é condicionado a fugir das mulheres, e pela sua formação em internato unissex, é condicionado a se interessar por meninos… Sendo figura de autoridade, não tem muita dificuldade em convencer os meninos de que sexo (em alguma modalidade) com o sacerdote é parte de seus deveres.

Essa combinação de fatores é fatal: ela acaba produzindo essa série aparentemente infindável de casos de pedofilia homossexual entre padres católicos. Não se trata, como já disse, de meros escândalos sexuais em relação aos quais se possa dizer: “Sou culpado, mas que igreja pode dizer que não é?” Trata-se de um fenômeno tipicamente católico que não adianta tentar generalizar.

Calligaris “ach[a] bizarro que o fim do celibato dos padres seja apresentado como remédio contra a pedofilia”.

Não é só o fim do celibato que é o remédio. Conforme propus no primeiro dos meus artigos sobre o assunto, a solução, evidentemente, é tripla: que a Igreja Católica acabe com o celibato clerical, acabe com a formação para o sacerdócio no confinamento de internatos unissex, e acabe com as figuras de coroinhas e outros meninos que ficam rodeando o padre na sacristia. 

E acabar com o celibato clerical não é apenas permitir que os padres se casem: é mudar drasticamente a visão que a Igreja Católica tem da mulher como uma Eva tentadora perpétua, contra as quais os padres devem se guardar. No fundo, a Igreja Católica tem uma visão perniciosa da mulher porque tem uma visão distorcida da sexualidade. Para ser considerada pura, Maria teve não só de conceber Jesus ainda virgem como precisou permanecer virgem perpetuamente (a despeito do fato de que o Novo Testamento fala claramente nos irmãos de Jesus). A pureza de Maria não poderia sobreviver, na visão católica, à realização, por ela, do ato sexual, ainda que de forma casta, dentro do casamento dela com José, e não por prazer, mas como dever, com a finalidade de procriar (crescer, multiplicar e encher a terra de gente). Como, para a Igreja Católica, o ato sexual só pode ter como finalidade a procriação, atos sexuais homossexuais, que não podem resultar em procriação, são aparentemente vistos como menos graves…

Calligaris se explica:

“Essa ideia [de que o celibato clerical tem que ver com os surtos de pedofilia homossexual] surge de uma visão hidráulica do desejo sexual, como se esse fosse um rio que, se for impedido de correr no seu leito natural, encontrará todo tipo de caminho torto e desviado. Por essa visão, na ausência de esposa, a libertinagem, não tendo para onde ir, transborda e acaba banhando (quem sabe, afogando) as crianças; portanto, os padres pedófilos não precisariam recorrer a meninos e meninas se dispusessem de uma mulher com quem saciar seus apetites.”

É simplista essa análise de Calligaris. Há muitos, acredito, padres católicos ou não, que resistem valentemente ao desejo sexual ou são capazes de o sublimar, sem precisar dar vazão a ele. Este, evidentemente, não é o caso dos padres pedófilos. Estes não controlam nem sublimam seu desejo sexual. Optam por realizá-lo. Tendo feito essa opção, têm de escolher (ainda que tacitamente) como realizá-lo.

a) Para casar normalmente, como todo mundo, o padre terá de abandonar o sacerdócio. Essa é uma opção difícil para a maior parte deles.

b) O padre pode arrumar uma companheira secreta, viver com ela maritalmente, ter seus filhos como se fosse um homem casado. Muitos fazem isso. A Igreja Católica felizmente faz vistas grossas. O Presidente do Paraguai foi bispo, teve uma série de companheiras e deixou uma penca de filhos. Até que se tornou presidente, tudo isso estava tranqüilamente preservado do público. Essa, para o padre que quer continuar padre, é, a meu ver, a mais sadia e a mais sensata das diversas opções. Mas, como se pode ver, ela tem seu ônus, que o Presidente do Paraguai está pagando. Companheiras regulares às vezes ficam grávidas, a Igreja é contra o aborto, elas têm a criança, e o “filho do padre” é sempre um estigmatizado – alem de requerer pensão alimentícia e outros cuidados.

c) Resta a opção pelo mesmo sexo. Sem dúvida há padres homossexuais, cujos parceiros são adultos (também padres ou não). Mas essa opção também tem seu ônus. Se a “mulher do padre” é estigmatizada, “o marido do padre” seria ainda mais… Sobram os meninos, os coroinhas… O fato de que o padre é autoridade, que ele pode exigir os serviços sexuais dos meninos como parte de seus deveres como coroinhas, e a vergonha natural dos meninos que torna difícil revelar o que está acontecendo, tudo isso contribui para que muitos padres apostem nessa forma de realizar sua sexualidade. Acham que ela vai permanecer secreta e, conseqüentemente, impune. Mas, como estamos vendo, uma vez que alguém abra a boca, outros se encorajam a fazê-lo, também, e temos um surto.

É isso. Sem rever a sua doutrina acerca da sexualidade, e, conseqüentemente, a visão de que o pecado original foi sexual e induzido pela mulher; sem rever a doutrina do nascimento virginal de Jesus e da virgindade perpétua de Maria; sem rever a doutrina do celibato clerical; sem rever o confinamento em internatos unissex como a forma ideal de preparar sacerdotes; sem rever a doutrina que impede a ordenação de mulheres e a participação das mulheres em posições importantes na alta hierarquia na Igreja, chegando até mesmo ao Papado, a Igreja Católica não vai conseguir resolver o seu problema de padres pedófilos homossexuais.

A Igreja tentou fazer vistas grossas a esse problema, como sempre fez em relação aos padres que possuem companheiras ou que geram filhos com paroquianas disponíveis. Mas o problema aqui é muito mais sério. Trata-se de um crime – cometido contra menores inocentes.

Discordo mais uma vez de Calligaris quando ele diz:

“Aos meus olhos, nesta história que não acaba, o escândalo maior talvez não seja o abuso das crianças, mas o comportamento oficial da igreja: de maneira consistente e repetida, ela parece colocar seu interesse institucional acima de qualquer consideração moral.”

O escândalo maior é o abuso de crianças, sim. A tentativa de colocar panos quentes sobre o problema afeta apenas a imagem da igreja. O abuso de crianças afeta as crianças também e principalmente.

Adiante, o artigo de Calligaris.

———-

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0104201023.htm 

Folha de S. Paulo
1 de Abril de 2010

CONTARDO CALLIGARIS
Pedófilos, celibatários e infalíveis


Os padres pedófilos são minoria, mas a igreja como instituição trata fiéis como crianças


EM 2002, graças a uma série de artigos do "Boston Globe", estourou, nos EUA, o escândalo dos abusos sexuais de crianças por padres católicos. Desde então, uma onda de denúncias varre a Igreja Católica no mundo inteiro.

Última revelação, no "New York Times" da quinta passada: nos anos 1990, quando ele comandava a Congregação da Doutrina e da Fé, o atual papa, Bento 16, suspendeu o julgamento de um padre americano, acusado de molestar 200 meninos surdos, de cujos espíritos e almas, em princípio, ele devia cuidar.

Aos meus olhos, nesta história que não acaba, o escândalo maior talvez não seja o abuso das crianças, mas o comportamento oficial da igreja: de maneira consistente e repetida, ela parece colocar seu interesse institucional acima de qualquer consideração moral. Escândalo, mas sem surpresa alguma: em geral, o projeto dominante de qualquer instituição é o de durar para sempre.

Mas trégua: não escrevo esta coluna para me indignar. Prefiro contribuir ao debate do momento com duas observações, sugeridas pela psicopatologia e pela clínica.

1) Da conversa de botequim até o pronunciamento de um teólogo que admiro (Hans Küng, na Folha de 21 de março), os abusos sexuais de crianças por padres católicos reavivam as críticas contra o celibato dos padres.

Cuidado, não sou um defensor do celibato dos padres. Ao contrário, parece-me que a experiência de amar e conviver melhoraria a qualidade dos ministros da igreja, porque a tarefa de ser consorte ensina uma humildade que é difícil alcançar na solidão, seja ela orgulhosa e casta ou, então, envergonhada e masturbatória.

No entanto, acho bizarro que o fim do celibato dos padres seja apresentado como remédio contra a pedofilia.

Essa ideia surge de uma visão hidráulica do desejo sexual, como se esse fosse um rio que, se for impedido de correr no seu leito natural, encontrará todo tipo de caminho torto e desviado. Por essa visão, na ausência de esposa, a libertinagem, não tendo para onde ir, transborda e acaba banhando (quem sabe, afogando) as crianças; portanto, os padres pedófilos não precisariam recorrer a meninos e meninas se dispusessem de uma mulher com quem saciar seus apetites.

É raro que eu me expresse de maneira tão direta, mas é preciso dizer: essa ideia é uma estupidez. Fantasias e orientações sexuais nunca são o efeito de acumulação de energia sexual insatisfeita. Um pedófilo poderá, eventualmente, desejar uma mulher e casar com ela, mas o fato de cumprir, mesmo com afinco, o dever conjugal não o livrará das fantasias pedofílicas. Teremos, simplesmente, pedófilos casados, em vez de solteiros.

Não vejo o que ganharíamos com isso, mas vejo, isso sim, na própria proposta, um desprezo inacreditável pelas mulheres que se casariam para servir de válvulas de escape para a "depravação" dos seus maridos. Ninguém merece.

A quem propõe o casamento como solução para a pedofilia dos padres, uma sugestão: proponha um programa compulsório de transa diária com a boneca inflável do Geraldão. Será tão ineficiente quanto o casamento, mas, ao menos, as mulheres serão poupadas.

2) Não é exato dizer que pedófilo é quem gosta de "carne" jovem. Pois o que importa ao pedófilo, o que é crucial na fantasia, é induzir a vítima a aceitar algo que ela desconhece e não entende. A jovem idade da vítima é sobretudo garantia de sua inocência e ignorância, ou seja, do fato de que a vítima não entenderá o que lhe será feito.

Por exemplo, um dos padres denunciados em Boston, em 2002, explicou que seu prazer consistia não tanto em ser satisfeito oralmente por um menino quanto em convencer o menino de que essa era uma forma especial de santa comunhão, que ele, o padre, ensinava e administrava.

Em suma, o pedófilo encontra seu prazer iniciando os ignaros e exercendo sobre eles um poder pedagógico absoluto. Agora, considere o jeito como a Igreja Católica tratou seu rebanho, até ser forçada a reconhecer a culpa de alguns de seus ministros. Considere a prática recorrente de camuflar decisões administrativas em dogmas divinos, considere a repressão teológica em lugar do diálogo e ainda considere a doutrina da pretensa infalibilidade do pontífice. Pois bem, aparentemente, os padres pedófilos são pequena minoria, mas a igreja como instituição trata mesmo seus fiéis como criancinhas.

ccalligari@uol.com.br

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Em São Paulo, 2 de Abril de 2010

3 responses

  1. Sinceramente, pareceu-me que Calligaris deu uma opinião clínica, apontando o que lhe parecia o cerne do problema e mostrando como o do celibato não o ataca. Sua crítica, por outro lado, se mostrou raza, baseada unicamente no senso comum e alguns conhecimentos sobre a Igreja Católica. No final, você propõe não uma solução, mas sim o fim da Igreja. Por mim, ela também acabava, até porque, como dá a enteder Calligaris, a pedofilia é apenas um dos danos que essa instituição causa. Só que enfrentar a pedofilia entre padres, retirando os padres não é bem uma resposta.

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