Na minha metadiscussão da presente discussão do aborto (http://liberalspace.net/2010/10/15/metadiscusso-da-presente-discusso-do-aborto/) caracterizei três textos que apareceram na Folha de S. Paulo de 14/10/2010 como metadiscussão, e não como discussão, do aborto. Contardo Calligaris prometeu para depois uma discussão do aborto. Antonio Cícero, porém, se antecipa a ele na Folha de S. Paulo de hoje – e, de lambuja, acrescenta mais uma referência bibliográfica que parece ser interessante: o livro do filósofo francês Francis Kaplan O Embrião É um Ser Vivo?, que também pretendo comprar.
Transcrevo o texto de Antonio Cícero, porque vale a pena ler. É um exemplo claro do que uma discussão racional e despaixonada do tema pode ser. E dá uma resposta à pergunta que levantei no meu post “O liberalismo e o aborto” (http://liberalspace.net/2010/10/15/o-liberalismo-e-o-aborto/), ao discutir a atual legislação brasileira sobre o aborto: Por que a vida da mãe é mais importante do que a do feto?
Se você tem interesse na questão, leia o artigo de Antonio Cícero, filósofo respeitado.
Aguardo ansioso a discussão que Contardo Calligaris prometeu fazer do assunto.
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1610201035.htm
Folha de S. Paulo
16 de Outubro de 2010
ANTONIO CICERO
A questão do aborto
Quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, mas uma crença religiosa
Se não me engano, algum tempo atrás Lula previu que, nas eleições deste ano, todos os candidatos à Presidência seriam de esquerda. De fato, os três mais votados candidatos do primeiro turno, logo, os dois do segundo, são considerados de esquerda.
Serão mesmo? Pensaria o contrário quem, sem nada saber dos candidatos, visse as fotos diárias que a imprensa publica de cada um deles a assistir à missa; ou suas declarações de fé; ou suas confraternizações com pastores e políticos evangélicos; ou as promessas de obediência que fazem a líderes religiosos; ou suas renegações da proposta da descriminalização do aborto…
Dois dias atrás, afirmando que uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja, Contardo Calligaris postergou uma discussão sobre o aborto. Acho que ele estava certo. Contudo, tendo lido inúmeros ataques à tese de que o aborto deve ser descriminalizado, mas nenhum argumento a favor dela, resolvi lembrar aqui alguns que me parecem decisivos.
E, para mim, os argumentos mais decisivos são os do filósofo francês Francis Kaplan no seu livro “O Embrião É um Ser Vivo?”, por ele resumidos em entrevista que a Folha publicou em abril de 2008.
Segundo Kaplan, deve-se distinguir entre “estar vivo” e “ser um ser vivo”. Um ser vivo não é apenas um ser que tem funções (pois várias partes do ser vivo têm funções), mas um ser que tem todas as funções necessárias para estar vivo. Assim é um ser humano, por exemplo. Já o olho do ser humano, na medida em que lhe faculta enxergar, está vivo, mas não é um ser vivo. O olho está vivo somente na medida em que faz parte do ser vivo que é o ser humano.
Assim também o embrião está vivo somente enquanto parte de outro ser vivo, que é a sua mãe. Por si mesmo, “as funções vitais de que ele precisa para estar vivo são as da mãe. É graças à função digestiva da mãe que ele recebe o alimento, que pode usar somente por lhe chegar previamente digerido pela mãe; é graças à função glicogênica do fígado da mãe que ele recebe a glicose; é graças à função respiratória da mãe que os glóbulos vermelhos de seu sangue recebem o oxigênio; é graças à função excretória da mãe que ele expulsa materiais prejudiciais, dejetos que, de outro modo, o envenenariam”.
E mais: “Não é o embrião que se desenvolve: é a mãe que, por meio da produção da serotonina periférica no sangue, determina, durante mais da metade da gestação, o desenvolvimento neurobiológico e a viabilidade futura do organismo que carrega”.
Kaplan explica, ademais, que, pelo menos até o terceiro mês da concepção, o feto não tem atividade cerebral. Acontece que, como ele observa, “um homem sem atividade cerebral é considerado clinicamente morto”. Ora, “o prazo de três meses é o prazo dentro do qual a maioria das mulheres que quer abortar aborta, mesmo que possam legalmente fazê-lo mais tarde”.
Dito isso, vê-se que não é totalmente verdadeiro, como se supõe às vezes, que o embrião esteja para uma criança como uma semente para uma árvore ou um ovo para uma ave. Uma semente largada na terra pode tornar-se uma árvore; e um ovo pode, sendo incubado, tornar-se uma ave; um embrião, porém, não é capaz de se tornar uma criança fora do corpo da mãe.
Se, portanto, não se pode comparar a destruição de uma semente com a derrubada de uma árvore nem se pode comparar quebrar um ovo com matar uma ave, menos ainda se pode comparar o aborto, como querem alguns religiosos, com o assassinato de uma pessoa. Que pensar então da tese de que a vida da mãe não vale mais que a do feto?
Diga-se a verdade: quem se opõe à descriminalização do aborto defende não a vida, como alega, mas sim uma crença religiosa segundo a qual nem o prazer sexual pode ser um fim em si mesmo nem o ser humano é dono de si próprio ou do seu corpo.
Ora, cada qual tem o direito à crença religiosa que bem entender, mas o Estado, que deve ser laico, não pode adotar nenhuma delas em particular.
Nenhuma mulher recorre ao aborto por prazer, mas por sofrimento e para evitar ainda maior sofrimento para si, para sua família e para a criança que nasceria.
É uma grande crueldade que o Estado penalize ainda mais justamente as mulheres pobres que, sem recursos, são obrigadas a praticar o aborto nas piores condições imagináveis.
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Em São Paulo, 16 de Outubro de 2010
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