Discordo totalmente da opção que Hélio Schwartsman faz na Folha de S. Paulo de hoje, 26/5/2013, ao final de seu artigo. Chamo o que ele faz de “opção” porque claramente não é a “conclusão” de um argumento bem fundamentado.
O Hélio se pergunta:
“A mente humana é idêntica ao cérebro ou encerra algo mais?”
E responde:
“Até prova em contrário, fico com a primeira hipótese”, ou seja, com a hipótese (ou tese) de que “a mente humana é idêntica ao cérebro”. Em outras palavras: a hipótese (ou tese) é de que a mente não existe — tudo o que existe é o cérebro; a realidade não tem uma dimensão mental: ela é totalmente material; enfim: a hipótese é de que o materialismo é verdadeiro.
Se se tratasse meramente de uma hipótese, tudo bem. Ela tem sido proposta e mantida por muita gente.
Mas o Hélio quer que tratemos a hipótese como se fosse verdadeira — ou pelo menos como tese comprovada de alguma forma.
Com base em quê?
Eis o que ele diz:
“Descartá-la [descartar essa hipótese] significaria jogar fora o paradigma materialista que está na base de todas as conquistas científicas dos últimos 200 anos.”
Essa justificativa de Hélio Schwartsman “begs the question”. “Begging the question” é pressupor que é verdadeiro exatamente aquilo que se deseja provar. Os antigos chamavam isso de “petitio principii”: justificar o princípio (a tese) que se deseja provar com o próprio princípio (a própria tese).
Por que devo considerar a mente idêntica ao cérebro? Porque eu sou materialista, diz ele. Isto é: considero a mente idêntica ao cérebro porque… porque considero a mente idêntica ao cérebro. Em última instância é isso que ele diz.
É lastimável.
O Hélio diz que, “até prova em contrário”, acredita nisso.
Não vou nem discutir a quem cabe a prova — o “onus probandi”, como diziam os antigos e ainda dizem os advogados.
Ele quer uma prova em contrário?
Muitas pessoas ficam doentes mentalmente em função de coisas em que acreditam. O paranóico acredita que todo mundo o persegue — e isso faz com que se comporte de forma que consideramos doentia. O hipocondríaco acredita que está doente quando não está — e isso faz com que se comporte de forma que consideramos doentia. O ciumento compulsivo vê riscos e evidência de traição em comportamentos perfeitamente normais e naturais — e isso faz com que se comporte de forma que consideramos doentia (levando-o, às vezes, até a matar a pessoa a quem ama e, não raro, outras).
Se a ciência que, segundo Schwartsman, adota o “paradigma materialista”, conseguisse identificar e mostrar, ao escanear o cérebro da pessoa, e sem que depender do que ela diz, o que ela pensa ou acredita, e que está na base de sua doença (patologia), e, manipulando o cérebro, seja por inputs elétricos, seja ação química (medicamentos), ou seja de qualquer outra forma, e, assim fazendo, conseguisse curar o indivíduo, eu ficaria razoavelmente convencido de que o “paradigma materialista” é digno de credência…
Mas a ciência não consegue fazer isso – pelo menos por enquanto. O Hélio afirma que “o conhecimento do cérebro . . . só engatinha”, assim dando a entender que, quando esse conhecimento estiver mais desenvolvido (quem sabe na fase de andar como uma criança de 3 anos), a ciência será capaz de demonstrar que “a toda patologia [inclusive às chamadas doenças mentais hoje] correspondem alterações anatômicas ou eletroquímicas no encéfalo”.
Então, SE e QUANDO isso acontecer, deixará de existir a “doença mental”, propriamente dita: toda doença, que hoje parece mental, será doença cerebral. E os psicanalistas e psicoterapeutas, que trabalham com a mente, e que usam a fala (não descargas elétricas, drogas ou outra forma de manipulação física do cérebro) como meio de terapia, ficarão desempregados.
Acho difícil (embora não impossível) que isso venha a acontecer.
Mas enquanto não acontece, acho que deveríamos manter a mente aberta (ou seria o cérebro aberto?), não é verdade?
Não basta dizer, como o faz o Hélio, que, como o paradigma hoje usado pela ciência é materialista, devemos acreditar que a mente não existe e se comportar como não existisse. O método científico é um método autolimitante: ele se aplica em ou sobre coisas que podem ser observadas. Não lida — ou não lida bem — com coisas em princípio não observáveis — como se acredita ser a mente humana.
E o pensamento e as crenças das pessoas não são observáveis examinando-se o seu cérebro. Pelo menos, não o são, por enquanto, no estágio atual do desenvolvimento científico.
Estudei e lecionei epistemologia, filosofia da religião e filosofia da ciência. Fui cético por muito tempo das crenças religiosas, em geral, e do Cristianismo, em particular. Considerei-me ateu por cerca de 35 anos. Voltei para a igreja depois que comecei a aplicar meu ceticismo para a própria ciência e suas pretensões.
Hoje reconheço que é preciso muita fé — mas muita fé, mesmo — para acreditar que um dia os neurocientistas que pesquisam o cérebro vão ser capazes de dizer, escaneando o meu cérebro: “este cara é presbiteriano, sãopaulino, liberal, cético de determinadas pretensões científicas e, por cima, ama a Paloma e acredita que é correspondido…”
A fé necessária para eu acreditar, hoje, no que está no parágrafo anterior é maior do que a fé necessária para eu acreditar que temos uma mente e que essa mente é capaz de causar eventos no mundo material e, evidentemente, social (bem como, naturalmente, de sofrer a sua influência).
Para a crença na existência da mente e sua causalidade no mundo não mental temos excelente evidência.
Temos, eu creio, uma manifestação constatável de que a mente existe no fato de que algumas (se não todas) doenças ditas mentais podem ser curadas apenas com a fala, com conversa, com papo, sem que saibamos (nem mesmo o terapeuta) um iota sobre o estado físico do cérebro do paciente.
Pode até ser que a cada “evento mental” corresponda um “evento cerebral” (a chamada tese dualista-paralelista). Mas, neste caso, parece-me plausível que o evento mental seja a causa do cerebral — e não vice-versa.
Vide a esse respeito o fantástico (e já antigo) livro de Sir Karl Popper (filósofo e dualista) e Sir John Eccles (este neurocientista e brain researcher, prêmio Nobel em neuromedicina) The Self and Its Brain… O título do livro é significativo: sugere que o cérebro é conduzido pela mente, não vice-versa: the self and ITS brain.
É isso. Por enquanto. Que venga el fuego.
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Folha de S. Paulo
26 de Maio de 2013
HÉLIO SCHWARTSMAN
A unificação
SÃO PAULO – Saiu a quinta versão do “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)”. Embora essa seja uma publicação da Associação Psiquiátrica Americana, a obra funciona como uma bíblia das doenças mentais no mundo todo. Não é coincidência que laboratórios acompanhem de perto a elaboração do DSM, que, quase a partir do nada, cria e extingue moléstias que movimentam bilhões de dólares.
Não é, porém, a questão econômica que me interessa aqui, mas a filosófica. Se há um ponto em que defensores e críticos do DSM-5 concordam, é que o novo manual, na hora de descrever os transtornos, segue recorrendo mais a sintomas subjetivos do que a marcadores biológicos, no que representa um revés para aqueles que advogam pela unificação da psiquiatria com a neurologia.
Para esse grupo, não há distinção entre mente e cérebro. A toda patologia correspondem alterações anatômicas ou eletroquímicas no encéfalo. O que temos de fazer é identificá-las e encontrar um meio de atuar sobre elas, providenciando assim a cura.
Nem todos concordam. Há correntes que enfatizam os aspectos não orgânicos das doenças, em especial fatores sociais e culturais. É certo que a esquizofrenia tem bases genéticas, mas o ambiente familiar em que vive o paciente define o impacto que a moléstia terá em sua vida. Garante-se aí espaço para a psiquiatria e a psicologia clínica, com seus subjetivismos e discurso por vezes metafísico.
Ao menos no atual estágio da medicina, em que o conhecimento do cérebro só engatinha, é difícil descartar as objeções de psiquiatras e psicólogos à unificação. Mas essa é uma consideração prática que não afeta a questão de princípio: a mente humana é idêntica ao cérebro ou encerra algo mais? Até prova em contrário, fico com a primeira hipótese. Descartá-la significaria jogar fora o paradigma materialista que está na base de todas as conquistas científicas dos últimos 200 anos.
helio@uol.com.br
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Em São Paulo, 26 de Maio de 2013
Recomendo o livro A vida do espírito de Hannah Arendt para complementar a crítica. Abraços!
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