Construímos nosso passado – e, John Locke estando certo, nossa identidade — a partir de fragmentos de lembranças perpetuados na memória – da mesma forma que o historiador constrói o passado a partir de fragmentos de evidência que o passado, ao não destruir, nos legou.
Se estou certo no meu post “Memória e Esperança”, nossa identidade também se constrói por aquilo que esperamos nos tornar – pelos nossos projetos de vida.
De um lado, nosso passado, de certo modo, nos condiciona – às vezes, nos condena. De outro lado, o futuro que desejamos alcançar nos puxa para a frente. Entre um e outro, construímos e reconnstruímos nosso eu, nossa identidade pessoal.
Já fiz algumas das seguintes perguntas…
Por que nos lembramos tão bem de algumas coisas, não raro distantes no tempo, e, às vezes, até desimportantes, e temos tanta dificuldade para lembrar outras, às vezes recentes e até mesmo importantes?
Por que traumas nos levam a perder a memória daquilo que os circundou? Quem passa por eles muitas vezes se lembra do que ocorreu antes, até determinado momento, e do que aconteceu depois, no momento em que, em regra, recobraram a consciência perdida.
Por que a memória é tão seletiva? Seria porque, inconscientemente, tentamos preservar apenas aquilo que se harmoniza com a identidade que queremos projetar, exibir ao mundo, com o nosso “eu público”, nosso public self?
Seria verdade que tudo o que vimos, sentimos, pensamos está registrado na memória, mas que nosso poder de recuperação é limitado? Estaria mesmo o problema, não no nosso “banco de memórias”, o nosso memory bank (tudo estaria gravado lá), mas com a nossa “máquina de recuperação”, a nossa retrieval machine? Poderia a hipnose, por exemplo, nos dar acesso a memórias que doutra forma ficariam para sempre inacessíveis, perdidas, como se não existissem? Existiriam outros métodos de “acesso direto à memória” (de direct memory access), sem precisar passar pelonosso “sistema operacional” (nosso operating system) que tem uma máquina de recuperação (retrieval machine) com recursos muito limitados? Seriam as terapias psicanalíticas e as envolvendo hipnose, para não mencionar os métodos de reprogramação neurolíngüistica, formas aceitáveis de alterar aquilo de que nos lembramos e, assim, mudar nossa identidade e, conseqüentemente, nosso eu, nossa personalidade?
E se, no processo de escrever uma autobiografia, viermos a nos lembrar de coisas de que não nos lembrávamos, e a descobrir que algumas de nossas memórias eram inverídicas, estaremos nós mudando a nossa identidade no processo? Neste caso, a pessoa que termina de escrever a autobiografia não seria a mesma que começou a escrevê-la?
Caro leitor: não se desespere. Eu sou isso aí. Eu sou as coisas que aprendi a pensar e a fazer. Eu sou os problemas que um dia achei interessantes. Eu sou aquele que não consegue deixar de levantar essas questões que você bem pode achar idiotas.
Darcy Ribeiro, em suas Confissões, diz que, quando sua mãe estava morta, começou a cantar uma música de procissão, de que, em outras condições, nunca imaginaria que conseguisse lembrar: “Saiu de mim uma cantiga de procissão que eu não me lembraria nunca de que me lembrasse” (Confissões). A construção é canhestra: parece envolver a lembrança da lembrança, a memória da memória…
Darcy Ribeiro, na obra mencionada, também conta o caso de quando reencontrou um antigo diário e, ao lê-lo, percebeu quanta coisa havia acontecido em sua vida das quais não mais se lembrava, quanta coisa havia acontecido das quais as suas memórias atuais, quando confrontadas com o que dizia o diário, estavam totalmente equivocadas.
Doris Lessing também observa que, ao forçar a vinda para o consciente de memórias por muito tempo ilembradas, perguntava-se se realmente havia sido tão má — ou tão boa, ou tão ingênua — assim.
As pessoas têm memórias umas das outras. Às vezes essas memórias são negativas. Um dia, entretanto, algo acontece e as pessoas começam a ver os mesmos fatos sob uma outra luz – e as memórias se alteram. A negatividade das memórias iniciais talvez tenha feito a pessoa soterrar no subconsciente algumas memórias que possuissem uma “dissonância cognitiva” com as memórias privilegiadas — porque essas memórias colidiam com a imagem que queriam manter da outra pessoa. De repente, algo acontece, e torna-se possível abrir um canal com o passado que permite que as boas memórias fluam de novo. O passado se reconstrói. Será uma construção do passado mais fiel do que a anterior? Serão ambas legítimas, fotografias de diferentes momentos do nosso being-in-motion?
Por que tudo tem de ser tão complicado?
Faz 18 anos que tive a idéia de escrever minha autobiografia. Nunca imaginei escrever uma autobiografia muito amarrada, com antecedentes, começo, meio e… bem, o fim não seria eu a escrever. Imaginei assim uma série de auto-retratos escritos – Retratos de Mim Mesmo. Cada um revelaria um pouco de mim, o meu eu de uma certa perspectiva em um determinado momento. Imaginei que pudesse me tornar um van Gogh da escrita, cheio de auto-retratos.
A ideia foi surgindo naturalmente a partir do momento em que coloquei meu site pessoal na Internet, em Setembro de 1995. Naquele mês eu completei 52 anos. (Rousseau começou a preparar suas Confissões quando tinha 54 anos). Escrevi ali um primeiro esboço autobiográfico, e gradativamente fui acrescentanto material, revelando mais e mais de mim mesmo.
Em 19 de fevereiro de 1997, numa passagem escrita depois de ler alguns comentários que alguém fez sobre o meu site, afirmei:
“Que bom que você gostou do meu site particular. Há momentos em que acho que, no meu arremedo de autobiografia, acabei me despindo demais, fazendo quase que um strip tease da alma… Se o resultado ficou de certa forma parecido comigo, deu certo. Mas seja lá qual for o resultado, eu gostei de tentar capturar em palavras um monte de coisas até aqui apenas vividas. Quem sabe ainda escrevo uma autobiografia pra valer, talvez apenas para consumo próprio?”
Interessante… Desde então meu “arremedo de autobiografia” já foi reescrito algumas vezes. Não só acrescentei coisas: por vezes, retirei coisas, mudei coisas que estavam escritas para que recebessem uma nova ênfase. Nesses dezoito anos, de 1995 para cá, me separei, divorciei, casei de novo, voltei para a igreja da qual me havia afastado, pensava eu definitivamente, em 1972.
Quando decidi escrever essa minha autobiografia aos pedaços iniciei uma busca por mim mesmo: buscava pedaços de mim mesmo perdidos por esse mundo afora. Muita gente fez parte do meu passado – todos aqueles com quem interagi. E eles podem se lembrar de incidentes de minha vida dos quais eu não mais me lembro – pedaços de mim mesmo que eu perdi. Quando encontramos pessoas com quem convivemos bastante (por exemplo, na escola), mas que não vemos há muito tempo, em geral tem lugar uma “hora da nostalgia”: um lembra algo que os demais já esqueceram, outro acrescenta um detalhe, ou o corrige…
Com minha decisão, minha interação com o meu passado alcançou níveis de obsessão. Cartas, diários, livros, artigos – não só meus, mas dos outros com os quais interagi – tudo isso passou a ser parte de uma busca interminável por pistas que pudesse vir a reacender uma nova trilha de memórias que me me viesse a me permitir encontrar pedaços de mim mesmo que eu já havia soterrado em meu inconsciente!
Minha decisão de investir no site do Instituto “José Manuel da Conceição”, onde estudei de 1961 a 1963, fez parte dessa busca. Tenho textos velhos, escritos a mão ou datilografados, fotografias pequenas, em branco e preto, em que é difícil reconhecer a face das pessoas. . .
Assim a vida passa, a gente fica mais velho, hopefully wiser, e fica mais interessado em avaliar o que passou antes – o que fui, o que sou, o que tenho ainda a chance de ser. Naquele momento, aos 52 anos, nunca imaginaria que pudesse vir a me casar de novo, a voltar a ser membro de uma igreja…
Normalmente, lembro-me apenas de pequenos trechos de minha vida. Com esforço, e a ajuda de outros, tento pegar uma agulha e alinhavar os pedaços soltos, na esperança de que eles se conectem em algo que pareça autobiografia. Por isso o meu interesse atual em reencontrar velhos amigos, reatar velhos contatos, amarrar as pontas dos fios que me ligam a pessoas que conheci faz muito tempo, para que os tecidos não desfiem mais do que já desfiaram pelo desgaste natural do tempo.
Dezoito anos depois, hoje, em 2013, a obsessão diminuiu um pouco. Mas não despareceu de todo. Tanto que estou aqui escrevendo esses artigos. Tanto que tenho me envolvido de cabeça na discussão das biografias não autorizadas.
Sei o quanto a nossa memória distorce os fatos, reconstrói lembranças. Pode até, como disse Mark Twain, construir memórias ex nihilo, construir um passado que nunca foi.
Por isso, sou totalmente a favor de biografias não autorizadas. Elas fornecem uma contrapartida necessária para aspectos fictícios do nosso eu.
Em São Paulo, 29 de Outubro de 2013
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