Memória e Esperança

No artigo anterior mencionei John Locke, que afirma que aquilo que fui – ou melhor, aquilo que me  lembro acerca do que fui – condiciona o que sou: é a chave de minha identidade pessoal.

(Rubem Alves, quando responde “Sou, porque fui”, à pergunta se ainda é protestante, parece concordar com essa tese lockeana. Eu próprio já me manifestei de acordo com essa ideia).

Aqui gostaria de sugerir uma visão diferente: aquilo que eu quero ser – em outras palavras: a minha esperança – me condiciona mais do que aquilo que eu fui, ou aquilo que eu me lembro acerca do que fui – em outras palavras, a minha memória.

Aquilo que eu quero ser – a minha esperança – é a minha memória projetada para o futuro, é a memória que eu vou querer ter daqui a algum tempo.

Consta que Ayrton Senna, antes das corridas, se concentrava correndo, em sua mente, a corrida que em poucos minutos iria correr na pista. Ele se via acelerando, ultrapassando adversários, ganhando a bandeirada de chegada. Era isso que o ajudava a fazer do que era, num momento, a sua esperança, no momento seguinte, a sua memória. Ele “remembered forward”.

A contrapartida de “forward remembering” é “backward hoping”. Há um samba, acho que interpretado pela Beth Carvalho, parece que chamado “Foi Mangueira que chegou”, que diz: “Nossos barracos são castelos na nossa imaginação”. Fico pensando se isso não é verdade também na nossa memória. Imaginamos castelos onde de fato só existiram barraquinhos. Se, um dia, alguma coisa precipitar o reconhecimento de que foi só um barraco, vamos rejeitar o fato para ficar com o castelo da esperança voltada para trás. Este é um exemplo de “backward hoping”. Projeta-se no passado aquilo que se deseja para o futuro.

Nós somos, portanto, não apenas o que fomos, mas, também, o que esperamos (porque queremos, desejamos) ser.

Memory and Hope”. Este é o título de um livro antigo (mais de quarenta anos?) de um dos mais importantes professores que eu tive, Dietrich Ritschl (neto do famoso teólogo Albrecht Ritschl, que viveu no século XIX). Tanto quanto eu saiba, foi ele que cunhou as expressões “forward remembering” e “backward hoping”.

Em São Paulo, 29 de Outubro de 2013

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