Se John Locke está certo, nossa identidade pessoal é inseparavelmente ligada às nossas memórias. Se temos amnésia completa, deixamos de ser quem éramos. Se (por algum milagre, divino ou científico) viermos a possuir um conjunto de memórias diferentes, passamos a ser uma outra pessoa.
Se é assim que a coisa se passa, é preciso levantar uma questão importante: somos, não o que realmente fomos, mas, sim, o que nos lembramos ter sido.
O problema está no fato de que, como todos bem sabemos, nossa memória está longe de ser perfeita. Na realidade, é grandemente falha. Não nos lembramos, freqüentemente, de coisas que acabaram de acontecer. Olhamos um número na lista telefônica e, ao começar discá-lo, já não nos lembramos mais dele inteiro. Não nos lembramos de onde colocamos coisas importantes. Esquecêmo-nos do aniversário e de datas importantes de pessoas que nos são caras. Esquecêmo-nos de compromissos importantes.
Além de falha, no sentido de que não nos lembramos de coisas que de fato aconteceram, nossa memória também é pouco confiável, no sentido de que freqüentemente nos lembramos de coisas que não aconteceram, ou que não foram bem assim como nos lembramos dela. Tanto é que, freqüentemente, juramos que algo aconteceu assim – até sermos convencidos de que estamos errados por evidência contrária. A psicanálise nos relata casos impressionantes de pessoas que, tendo reprimido a memória de um acontecimento traumático, criaram, por assim dizer, uma “memória substituta”, inverídicamas menos desagradável. Voltaire, numa frase célebre, dizia que nunca tinha contado nenhuma mentira, mas que havia inventado muitas verdades… E Mark Twain se orgulhava, na velhice, de ainda ter uma memória tão boa que se lembrava até de coisas que nunca haviam acontecido…
Isso quer dizer que tanto há coisas que de fato aconteceram, das quais não nos lembramos, como há coisas de que imaginamos nos lembrar que realmente não aconteceram, ou não aconteceram do jeito que acreditamos.
Esses fatos nos colocam diante de questões interessantes, em relação a autobiografias.
Primeiro, como é que eu sei que não estou me esquecendo de experiências importantes do meu passado, que, se lembradas, poderiam, de alguma forma redefinir minha identidade?
Doris Lessing, em sua autobiografia, discute o problema:
“Assim que você começa a escrever, a pergunta se interpõe, insistente: Por que motivo você se lembra disso e não daquilo? Por que se lembra mais dos detalhes de uma determinada semana, de um mês transcorrido há muitos anos, e, depois, negrume total, vazio? Como sabe que aquilo de que se lembra é mais importante do que aquilo de que não se lembra?” (Debaixo da Minha Pele: Primeiro Volume da Minha Autobiografia, até 1949, Companhia das Letras, São Paulo, 1997; original: Under My Skin: Volume One of my Autobiography, to 1949, 1994; tradução de Beth Vieira, pp. 21-22.)
Segundo, como é que eu sei que as coisas de que acredito me lembrar realmente ocorreram, ou ocorreram do jeito que eu me lembro? A possibilidade de que haja memórias inverídicas – ou porque honestamente nos lembramos mal ou errado do que aconteceu, ou porque intencionalmente falsificamos a memória, convencendo-nos a nós mesmos de que alguma coisa realmente aconteceu, ou aconteceu de um jeito, quando ela não aconteceu, ou não aconteceu daquele jeito – coloca em xeque nossas lembranças. Assim, a tentativa formal e deliberada de reconstruir o passado, usando as memórias de outras pessoas ou evidências externas, é uma forma de testar a veracidade daquilo de que nos lembramos, de examinar os fundamentos de nossa identidade pessoal. É verdade que, em casos de repressão, nos convencemos de que algo não aconteceu, ou não aconteceu de um determinado jeito, quando realmente aconteceu, ou aconteceu de modo diverso. Se os psicólogos estão certos, a repressão não fica totalmente impune: aquilo que foi reprimido reaparece de outras formas, causando problemas psicológicos de vários tipos.
Doris Lessing, como mencionado, discute o problema em sua autobiografia, e se diz comprometida a dizer a verdade, a apresentar um relato verdadeiro do que foi sua vida –pelo menos tão verdadeiro quanto ela possa aquilatar.
A questão da verdade na reconstrução de nosso passado é essencial, em especial no caso de autobiografias. Mas essa questão se desdobra em duas:
Primeiro, a questão da falsificação intencional do passado (por omissão, distorção, acréscimo). Doris Lessing critica especialmente Simone de Beauvoir, que, ao escrever suas memórias, declara explicitamente não ter a mínima intenção de dizer a verdade sobre alguns episódios. Se não ia nem tentar dizer a verdade, pergunta Lessing, qual o valor do exercício? Sua autobiografia seria ficção – e, portanto, não autobiografia, apenas um romance com alguns elos de ligação com a realidade não fictiva.
Mais frequentemente, porém, autobiografias misturam fato e ficção. Em sua Introdução à edição das Confissões de Roussau na série “Wordsworth Classics of World Literature”, Derek Matravers coloca o dedo no essencial de uma autobiografia:
“The Confessions is autobiography, not fiction, and as such, it purports to describe what actually happened. In the main, Rousseau’s claim to veracity is supported by modern scholarly opinion. Ocasionally he has lapses of memory, and gets his dates wrong or misjudges the time he spent at some place or another. On other occasions . . . the suspicion is that the facts are deliberately bent in his favour. Overall, however, his reliability as a witness and the range of experiences on which he was able to draw give their own value to the memoirs, as Rousseau himself realised” (Rousseau, The Confessions, with an Introduction by Derek Matravers, Wordsworth Classics of World Literature, London, 1994, pp. vii-viii).
Vale a pena também citar as Confissões de Darcy Ribeiro. Ele, em parte por saber que estava no fim da vida, não se preocupou em fazer scholarship em sua autobiografia — isso é tarefa de biógrafo, disse ele, acrescentando:
”Este livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e precisões, é um relato espontâneo. Recapitulo aqui, como me vem à cabeça, o que me sucedeu pela vida afora, desde o começo, sob o olhar de Fininha [a mãe], até agora, sozinho nesse mundo. Muito relato será, talvez, equivocado em alguma coisa. Acho melhor que seja assim, para que meu retrato do que fui e sou me saia tal como me lembro. Neguei-me, por isso, a castigar o texto com revisões críticas e pesquisa. Isso é tarefa de biógrafo. Se eu vier a ter algum, ele que se vire, sem me querer mal por isso” (Confissões [Companhia das Letras, São Paulo, 1997], p. 11).
Segundo, a questão mais difícil, a da falsificação inconsciente do passado. A psicologia e a experiência nos mostram que, com o passar do tempo vamos, insconscientemente, idealizando nosso passado: incidentes pequenos crescem de importância, porque nos projetam em uma luz mais favorável; outros incidentes, os mais desagradáveis, vão tendo sua importância reduzida, ou começam a ser visto sob outra luz; ainda outros, mais traumáticos, são, às vezes, eliminados inteiramente do quadro. Isso tudo acontece, o mais das vezes, sem que tenhamos a intenção de falsificar o passado, simplesmente porque mecanismos sutis operam em nossas mentes para eliminar dissonâncias (e, até certo ponto, manter nossa saúde mental e nossa sanidade). Não é à toa que existem tantos livros escritos sobre a temática do “autoengano”.
Quem está realmente preocupado com a verdade, há de querer descobrir, mesmo que tenhamos, como Lessing, a intenção de dizer a verdade, se esses mecanismos sutis não estão nos levando a nos enganar a nós mesmos.
Para terminar, e trazer essas elucubrações filosóficas para o presente…
Na entrevista do Roberto Carlos ao Fantástico no último domingo (27/10/2013) deu-me pena ver a inabilidade dele ao lidar com as perguntas (muito bem feitas, por sinal, mas com respeito). Disse que está escrevendo (na verdade, gravando material para) uma autobiografia, em que trata, até mesmo, do acidente que o obrigou a amputar parte da perna quando era criança. Ele disse algo mais ou menos assim (as palavras são minhas): Ninguém sabe o que eu passei e o que eu senti tão bem quanto eu, e eu vou falar sobre o assunto!”… Que ingenuidade. O artigo de Hélio Schwartsman na Folha de S. Paulo de hoje (29/10/2013) toca, a propósito da entrevista de Roberto Carlos, exatamente na questão da inconfiabilidade das autobiografias — nem sempre por maldade, mas porque as pessoas literalmente acabam por acreditar que coisas que não aconteceram de fato aconteceram, que coisas que aconteceram não aconteceram, ou não aconteceram como os outros se lembram delas, etc. Transcrevo abaixo o artigo do Hélio.
Como já mencionei, Simone de Beauvoir, disse, em seus relatos autobiográficos, que não tinha nenhum compromisso com a verdade. Poucos são tão francos e transparentes como ela (transparentes no sentido de admitirem ao público leitor que o que estão tentando passar por autobiografia não passa de ficção).
O Roberto certamente acredita que vai revelar a verdade sobre sua vida “como ela de fato ocorreu, sem interpretações, sem distorções, sem omissões, sem acréscimos”. “Wie es eigentlich gewesen ist“.
Em São Paulo, 29 de Outubro de 2013
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Hélio Schwartsman, “Memórias” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/136226-memorias.shtml
“Roberto Carlos, o rei, que bloqueou na Justiça a circulação de um livro sobre a sua vida, agora diz que é a favor de biografias não autorizadas e informa que está escrevendo suas memórias. Qual das duas obras é mais confiável?
Obviamente, essa não é uma questão que possa ser respondida “a priori”, mas temos boas razões para desconfiar das autobiografias. E não porque candidatos a ídolo sejam todos mentirosos compulsivos. O problema é que nossas memórias, embora nos pareçam vívidas a ponto de as julgarmos uma espécie de fotografia do passado, são mais bem descritas como uma fantasia de nossas psiques.
O que o cérebro guarda são registros hipertaquigráficos a partir dos quais nossa mente reconstrói o episódio cada vez que nos lembramos dele. Esse processo é distorcido pelo que estamos sentindo ou pensando quando acionamos a memória. Algumas lembranças ficam estáveis por décadas, outras são sutilmente modificadas e há as que sofrem transformações profundas. Elas são indistinguíveis em nossas cabeças.
Essas mudanças não ocorrem ao sabor do acaso. A memória não evoluiu para promover a verdade, mas para nos fazer viver vidas melhores. Ela não deve ser uma alucinação tão tresloucada que nos leve a cometer erros fatais, mas, se as distorções forem no sentido de nos tornar mais seguros e confiantes, são mais do que bem-vindas. Nós nos lembramos muito mais daquilo com o que podemos viver do que daquilo que efetivamente vivemos.
A notável exceção são as pessoas clinicamente deprimidas, que fazem uma avaliação surpreendentemente realistas de si mesmas. Não se sabe se é a depressão que leva à percepção mais acurada ou se é a visão mais realista que provoca os pensamentos deprimentes. De todo modo, o excesso de realismo não é muito saudável.
Se você é um leitor em busca de verdades, só compre autobiografias de depressivos notórios.”
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