Sou professor de Filosofia. Sempre exerci meu ofício na universidade, nunca na educação básica. E sou contra a obrigatoriedade da Filosofia no currículo do Ensino Médio. Por uma razão simples: não há gente competente para lidar com os desafios da filosofia nesse grau do sistema escolar.
Trago um exemplo, retirado do Facebook. Uma “Avaliação de Filosofia”. Tem valor de 10 pontos. O teste infelizmente não traz o nome do professor de Filosofia que o perpetrou. Melhor. Meu ódio fica difuso.
Mas, felizmente, traz o nome do aluno que enfrentou o desafio com coragem: Breno Souza. Tirou zero. Na verdade, zero vírgula zero, para não ficar dúvida: “0,0”. E o mestre (?) ainda resolveu escrever em diagonal na prova: “Anulada”. Ou seja, ele achou que não havia nada que se salvasse na resposta do aluno.
Discordo. Discordo com veemência.
Ou vejamos.
Uma das perguntas do teste, a que é focada aqui, foi:
“Liberdade significa o direito de agir conforme o seu livre arbítrio, de acordo com a própria vontade. A liberdade é um conceito utópico, uma vez que é questionável se os indivíduos têm a liberdade que dizem ter, se com as mídias ela realmente existe, ou não. Você concorda com esse raciocínio? Você se sente livre? (3,0 pts)”.
A resposta do Breno Souza foi esta:
“Não concordo, até porque eu nem li! Eu poderia estar em casa agora jogando videogame, poderia estar na praça jogando bola na quadra, poderia estar no computador mexendo no Facebook, mas não, estou preso em uma sala de aula contra a minha PRÓPRIA VONTADE, aonde [sic] um professor de filosofia está dizendo sobre a ‘LIBERDADE’… kkkkk Sério isso??? EU PRESO CONTRA A MINHA PRÓPRIA VONTADE E VOCÊ AINDA PERGUNTA SE EU ME SINTO LIVRE? ‘-‘ KKKK…
QUANTA IRÔNIA [sic] ! ! !”
Como eu disse, o professor deu 0,0 para a resposta e a anulou. Não viu nada que valesse a pena nela.
Pior cego é o que não quer ver.
O professor forneceu uma definição de liberdade: “o direito de agir . . . de acordo com a própria vontade”. E perguntou: “Você se sente livre?”
O professor tentou induzir a resposta sugerindo que o conceito de liberdade é utópico e que, “com as mídias”, é questionável que ela exista. Mas o aluno ignorou essa baboseira e foi direto à jugular da pergunta:
Como posso me sentir livre, se estou preso aqui na escola, contra a minha própria vontade, quando há tanta coisa lá fora que eu preferia estar fazendo?
Como pode um professor falar em liberdade, entendida como o direito de agir de acordo com a própria vontade, para aqueles que estão presos na escola contra a sua vontade e que preferiam estar em quase qualquer outro lugar menos ali?
QUANTA IRONIA!
Comentei que a resposta do Breno Souza era perfeita e que deveria ter recebido 10,0, magna cum laude. Disse ainda que o professor é que deveria ser anulado.
E acrescentei:
Na nossa sociedade somos obrigados a frequentar a escola, somos obrigados a votar, somos obrigados a pagar impostos escorchantes… Está certo o Breno Souza. Enquanto tivermos essas obrigações todas, e outras que não menciono aqui, não somos livres, no sentido proposto.
Várias pessoas comentaram. Algumas pessoas fizeram piada. Uma sugeriu que “O Breno é livre, menos para definir o que é liberdade!” – porque a definição de liberdade lhe foi imposta… Outra disse: “O Breno foi livre ao escrever o que quis e o professor foi livre ao avaliar o quiz”. Gozadinho, o trocadilho.
Mas os comentários de duas pessoas me irritaram. Elas observaram:
1) “É… ele poderia tb estar roubando, matando… Mas não! ‘Coitado’… está preso numa sala de aula sem ter feito nada! ‘Que injustiça’… Que ‘irônia’ “
2) “Pois é! Coitado do Breno, nem sabe que essa ‘prisão’ é a forma mais verdadeira da futura liberdade dele! Que cabecinha condenada! Ê ê.”
Discordo radicalmente desses dois comentários.
O Breno tem uma consciência de sua realidade, de seus interesses, e de suas limitações que eu gostaria de ter tido quando estava na escola. Ele tem total clareza de que a escola é realmente uma prisão, na qual cumprimos uma sentença que, daqui dois anos, será de quatorze anos — os melhores anos de nossa vida. Esses anos são um enorme e caríssimo pedágio que, infelizmente, ainda somos obrigados a pagar (“contra a nossa própria vontade”), antes de termos autorização para viver livremente. E mesmo depois, há outras limitações à nossa liberdade.
E o Breno tem senso de humor. Mais que isso: tem enorme coragem: tem peito para enfrentar o professor. Tudo bem, ele usou “aonde” quando deveria ter usado “onde” e colocou um acento inexistente em “ironia”. Mas o mais importante é que:
a) ele tem perfeita clareza de que ele está onde está contra a sua vontade e que, portanto, a escola é uma prisão;
b) ele sabe que é de ironia mesmo que se trata: perguntar para um prisioneiro se ele se sente livre. . .
Hoje nos colocam nessa prisão cada vez mais cedo, à nossa total revelia. Há criança na escola com menos de dois anos. Mantêm-nos nela por um número cada vez maior de anos. Quando eu estudei, eram quatro anos obrigatórios. Depois viraram oito. Depois, nove. Agora, a partir de 2016, serão quatorze… E lutam para que fiquemos lá, não três horas por dia, como acontecia quando eu estava na escola, mas o dia inteiro, em período integral!
Lá dentro não temos nenhuma voz nem direito de escolher o que queremos aprender, nem, muito menos, como. Massacram-nos com uma quantidade enorme de informação que se espera que absorvamos e assimilemos (para, depois, regurgitar numa prova). Em sua maior parte, essa informação não serve para absolutamente nada. Exceto por algumas poucas competências que desenvolvemos enquanto estamos lá, não por causa do que lá se faz, mas a despeito de tudo que a escola exige e representa, e que poderíamos muito bem e melhor desenvolver fora, o resto é tempo literalmente perdido, desperdiçado, que poderia ser mais bem aproveitado fora, em casa ou na rua, ou, então, trabalhando, fazendo alguma coisa útil. Se frequentar a escola fosse realmente algo bom, não precisaria ser obrigatório. Ilude-se quem imagina que ali está a chave de nossa liberdade. . .
O Breno está fisicamente preso na escola, posto que a frequência a ela é obrigatória na faixa etária dele. Mas mentalmente ele é livre — “as free as a bird“. A escola não conseguiu subjugar a mente dele. Aleluia. Ao dizer isso lembro-me do discurso do Coronel Frank Slade (Al Pacino) em defesa de seu protegido, Charlie (Chris O’Donnell) no belíssimo filme “Perfume de Mulher”. A-ha!
Como disse Karl Popper em A Sociedade Aberta e seus Inimigos, a maior prova que temos da saúde mental de nossa juventude é que na maioria dos casos a escola não é capaz de destruí-la, por mais que tente, e, por isso, não causa dano permanente. E, como disse Samuel Butler, em Erewhon, a escola não consegue destruir essa saúde mental porque a juventude não a leva suficientemente a sério. Para a maior parte dos jovens a escola é apenas um rito de passagem. Felizmente.
Acredito que até o “Irônia”, com acento circunflexo, do Breno Souza, é sarro.
Triste de ver é o professor. “0,0”. “Anulada”. Ele não conseguiu ver por trás da brincadeira a genialidade do seu aluno.
Um dos dois não tem futuro. E não é o Breno.
É bom ter mais de 70 anos e poder dizer o que se pensa. Mas é melhor ainda conseguir chegar a isso na adolescência.
Em São Paulo, madrugada de 25 de Abril de 2014