A Feitura de um Liberal

Como disse em meu artigo anterior, ontem meu sobrinho Vitor Chaves de Souza fez alguns testes de entrevista comigo para registrar em vídeo algumas ideias minhas.

A primeira pergunta foi como se deu a minha evolução teológica, por aí. A segunda foi sobre como se deu a evolução de meu pensamento político na direção do Liberalismo. Confira, o seguinte vídeo — especialmente a segunda parte:

Como disse no artigo anterior, a entrevista não foi planejada nem ensaiada. Tive literalmente de improvisar. Este texto foi escrito depois da entrevista, tendo-a como base. Não vice-versa.

1. Estágio Inicial

Assim que cheguei ao Seminário Presbiteriano de Campinas, em Fevereiro de 1964, descobri que havia muita gente interessada em “congelar” ou “refazer” a minha cabeça.

Como disse no artigo anterior, quando cheguei ao Seminário meu pensamento teológico, se é que aquilo que eu então pensava pode receber esse pomposo título, era convencional, tradicional, conservador. Meu pensamento teológico havia sido moldado ouvindo as pregações de meu pai e em conversas com ele. No Seminário essa forma de ver e pensar a teologia era quase que totalmente coerente com a da maioria dos professores. Assim, em sala de aula, tudo era dirigido para a preservação dessa forma de pensar.

Os meus colegas “veteranos”, porém, pensavam diferente. Eram relativamente radicais em sua “metateologia” (sua forma de conceber a teologia) e em sua teologia. E provocavam. Faziam perguntas, inquiriam, questionavam, colocavam em xeque, até mesmo ridicularizavam (piadas teológicas contadas em seminário são doídas para quem é conservador).

Assim, senti-me puxado de um lado e de outro. Parecia que todo mundo queria controlar como eu pensava, ou incentivando-me a continuar em minha ortodoxia, ou tentando me conquistar para a heterodoxia ou mesmo para o que me parecia ser total heresia.

Acabei me rebelando e decidindo que só eu mesmo faria a minha cabeça e decidiria o que era aceitável em um lado e no outro – ou mesmo se havia algo aceitável em um lado e no outro. Liberdade de pensamento – era disso que eu precisava. E liberdade de pensamento, na forma de ser e agir, era, como me ficou evidente nas aulas de Filosofia com o Rev. Francisco Penha Alves, o mais aberto dos mestres, a essência do Liberalismo.

Foi assim que fiquei interessado no Liberalismo – e fui ler On Liberty, de John Stuart Mill. Foi uma experiência libertadora.

Em 1966, quando fui escolhido pelo Centro Acadêmico como Editor do jornal dos alunos (ao qual demos o nome de O CAOS em Revista, porque o nome da entidade era Centro Acadêmico Oito de Setembro, honrando o dia da fundação do Seminário), e me envolvi no primeiro grande choque com as “forças da situação” dentro do Seminário, sentindo o peso da mão da censura, foi a Stuart Mill que recorri.

Eis meu Editorial no segundo número de nosso jornal, depois do “empastelamento” do primeiro número:

“Aqueles que, no seio da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), estão preocupados em tirar do seu caminho todos os que não concordarem em gênero, número e caso com os padrões rígidos de sua ‘ortodoxia’ superada estão praticando o mesmo tipo de exclusivismo religioso (senão pior) praticado pelos judeus aos quais foi dirigida a mensagem do livro de Jonas. Estas normas ‘ortodoxas’ têm se tornado limites cerceadores da ação de Deus. Quem delas se afastar — dizem, ou se não dizem assim o entendem, pois suas atitudes o comprovam — afasta-se do próprio Deus, e então não é digno de permanecer na IPB. Precisa ser expurgado (palavra, por eles, estimadíssima!).

. . .

É conscientes desta verdade que levantamos a nossa voz em protesto contra a estreiteza de mente de alguns dentro da IPB para os quais até opinião é delito, para os quais a livre expressão do pensamento é causa suficiente para expurgo! Como é mais fácil lutar para manter as liberdades que já temos do que lutar para reconquistar as liberdades perdidas, “O CAOS em Revista” se dispõe, em suas páginas, a dar livre expressão ao pensamento dos alunos. O número presente é exemplo disto. Não podemos permitir que nos tolham a liberdade de ter os nossos próprios pensamentos e o livre direito de expressá-los. É esta a base da democracia. É esta a base do regime presbiteriano. Em sua obra On Liberty John Stuart Mill faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Se as ideias que temos expresso e, esperarmos, continuaremos a expressar através deste jornal não são verdadeiras e são perniciosas, não vingarão, pois a melhor maneira de destruir uma ideia falsa é expô-la! Quem estiver com a verdade não precisa temer ideias, por mais estapafúrdias que sejam, pois terão com que refutá-las, através de um franco diálogo. Aqueles que se creem portadores de ideias verdadeiras, se querem mantê-las, devem torná-las continuamente relevantes, e não impedir que novas ideias apareçam e sejam disseminadas.

Aquilo que tem sido considerado como delito, isto é, a apresentação de ideias que não se harmonizam inteiramente com os padrões oficiais, o delito de opinião, é um crime que devemos praticar diariamente, sob quaisquer riscos. Se deixarmos de ser “criminosos” neste campo, estaremos roubando as gerações passadas que lutaram, até o sangue, para obter as liberdades de que somos herdeiros, a geração presente que estará tendo sua voz sufocada e reprimida, e a geração futura que sentirá que uma geração deixou de realizar o seu papel na história!”

2. Estágio Amadurecido

A passagem que acabei de citar foi escrita em 1966. Não tinha feito 23 anos ainda e já era um liberal. Mas o amadurecimento teórico só veio se dar oito anos depois, em 1974, quando li Ayn Rand pela primeira vez, por recomendação de meu colega no corpo docente do Departamento de Filosofia do Pomona College, e um liberal maduro (que depois veio a ser presidente do Liberty Fund), Charles J. King.

A experiência de ler Atlas Shrugged (A Rebelião de Atlas) e, depois, The Fountainhead (A Nascente), os dois principais romances de Ayn Rand (publicados em 1957 e em 1943, respectivamente) expandiu a minha mente de tal maneira que passei a ver o Liberalismo, não como mera filosofia política, mas como filosofia de vida, que se aplica até mesmo nos relacionamentos mais íntimos. A importância do individualismo, a necessidade de conceber o auto-interesse e o egoísmo como virtudes (e não vícios), os perigos inerentes ao expansão do Estado, o imperativo de defender o que é certo mesmo que seja impopular e vá contra a opinião pública, tudo isso soou como coisa em que eu, no fundo, já acreditava mas nunca tinha tido a capacidade de exprimir em palavras.

Ayn Rand fala muito em “sense of life”, aquela orientação geral para a vida que antecede a nossa capacidade de verbalizar e articular o que pensamos. Crianças pequenas, como minha filha mais velha, Andrea, veio a demonstrar depois, têm um “sentido tácito” daquilo que é certo e justo. Quando confrontada com algo que ela não achava certo ou justo, mesmo quando pequenina, dizia “this isn’t fair!”, isto não é justo. Ayn Rand me deu as palavras para explicar por que certas coisas que eu sentia que não eram certas ou justas de fato não eram certas e justas em um sentido objetivo. Não foi surpresa que, depois de crescer, ela tenha se tornado uma fã de Ayn Rand e tenha escrito um trabalho sobre Ayn Rand quando fazia a universidade (no Grove City College, um “liberal arts college”, no Noroeste da Pensilvânia).

Meu Liberalismo amadureceu e se aprofundou em cima dos fundamentos randianos. Mas rapidamente fui desbravando a literatura liberal e me especializando na área. Fui reler John Locke, Adam Smith, Thomas Jefferson. A leitura de Friedrich von Hayek me mostrou que John Stuart Mill não era tão liberal quanto eu imaginava. Karl Popper, Ludwig von Mises, Milton Friedman complementaram minha formação liberal.

3. A Situação Hoje

Meu Liberalismo só se radicalizou desde então. O Liberal Clássico acredita na necessidade de um Estado para garantir as liberdades e direitos, mas defende a tese de que esse Estado seja mínimo, para que ele não se torne, ele mesmo, o maior perigo para as nossas liberdades e direitos.

O Anarquismo Libertário propõe uma sociedade sem Estado, em que as pessoas se organizem livre e voluntariamente para resolver os seus problemas. Hoje em dia essa filosofia política, representada especialmente por Murray Rothbart, tem me parecido extremamente sedutora.

Em São Paulo, 25 de Maio de 2014

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