Anti-Americanismo

Já discuti este assunto aqui neste space, comentando um livro de Jean-François Revel. Trago-o de novo à baila a propósito de um outro livro.

Comprei, numa megalivraria de origem japonesa em Kuala Lumpur, no sábado, 9/12/2006, dia em que, à noite, saí de lá, um livro interessante, e que mereceria ser traduzido para o português: “Understanding Anti-Americanism: Its Origins and Impact, At Home and Abroad”, editado por Paul Hollander, que também faz uma grande introdução, e publicado por Ivan R. Dee, Chicago, 2004. (A propósito, nunca ouvi falar nessa editora. Uma das razões por que comprei o livro na hora, sem hesitar, foi a editora desconhecida. Editoras desconhecidas têm maior dificuldade para colocar seus livros nas livrarias e de conseguir que eles sejam traduzidos. Assim, é preciso aproveitar a chance: quando encontro um livro que parece interessante, compro-o na hora).

O editor, Paul Hollander, já havia escrito um livro sobre o assunto – mas antes de 11 de Setembro (Nine Eleven) – com o título: “Anti-Americanism: Critiques At Home and Abroad” (New York, 1992), que foi atualizado três anos depois e, curiosamente, saiu publicado, na edição revisada, com um título bastante diferente: “Anti-Americanism: Irrational and Rational” (New Brunswick, NJ, 1995).

Paul Hollander, que é um imigrante húngaro que fugiu do país quando os soviéticos invadiram a Hungria em 1956, indo, primeiro, para a Inglaterra, e, em 1959, para os Estados Unidos, onde fez pós-graduação e acabou se naturalizando americano, foi, durante muitos anos, professor de sociologia da Universidade de Masachussetts em Amherst, MA, estando agora aposentado, como Professor Emérito de Sociologia. 

Hollander faz questão de distinguir “anti-americanismo” de “crítica dos Estados Unidos”. Ele admite, sem problemas, que os Estados Unidos, como país, têm muito que pode e deve ser criticado, e que não há nada de excepcional no fato de que, tanto dentro como fora do país, essas críticas se expressem, até mesmo com certa veemência. O anti-americanismo de que trata o livro, porém, é algo diferente. Ele está muito mais próximo de um ódio generalizado dos Estados Unidos do que de uma crítica objetiva de aspectos isolados da política e da sociedade americana. Esse ódio tem raízes complexas, que o livro se propõe analisar. Algumas dessas raízes podem, no caso de um país ou uma região, envolver elementos geopolíticos, ideológicos, religiosos e até mesmo psicológicos – para mencionar apenas alguns. Os anti-americanos, no mais das vezes, querem a destruição dos Estados Unidos, não reconhecendo no país (na sociedade, na cultura, na economia) nada que o “redima”. Os anti-americanos se regozijaram, em 11 de Setembro, quando as Torres Gêmeas de Nova York foram destruídas, com a morte de mais de três mil pessoas inocentes – civis, não militares. Na verdade, a maioria deles se recusa a reconhecer que as pessoas que morreram eram inocentes: um americano é culpado, e, portanto, objeto legítimo de uma ação terrorista, simplesmente por ser americano. Os anti-americanos, alguns deles dentro dos Estados Unidos e cidadãos do país, se apressaram em afirmar, na seqüência a 11 de Setembro, que os Estados Unidos foram os principais responsáveis pelos ataques terroristas daquele dia, por causa de sua política externa, por causa da ação de seus militares, por causa do controle da economia mundial por parte de suas empresas, por parte da invasão das telas e livrarias do mundo pelos programas, filmes, revistas e livros americanos. Alguns anti-americanos não hesitaram em chamar de “contra-terrorismo” a ação dos terroristas em 11 de Setembro, chamando de “terroristas” as ações do governo e das empresas americanas no mundo. Não faltou quem dissesse, entre os anti-americanos, que Bush era uma ameaça maior para a paz do mundo do que Osama bin Laden ou Saddam Hussein, ou quem o tivesse comparado a Hitler e Stalin, ou, então, acusado os Estados Unidos de estarem no mesmo nível da Alemanha Nazista – ou até em nível pior, porque a Alemanha Nazista pelo menos tinha quem lhe pudesse resistir (a Inglaterra, os próprios Estados Unidos, a Rússia), enquanto os Estados Unidos, hoje, depois do colapso da União Soviética, são um poder político, militar, econômico e cultural sem concorrentes e, por isso, sem possibilidade de contestação e resistência.

O livro editado por Hollander é escrito a várias mãos, e cobre, na primeira parte, depois daintrodução do editor e de um capítulo sobre as raízes filosóficas do anti-americanismo, as raízes regionais do fenômeno, discutindo o anti-americanismo de extração francesa, britânica, alemã, russa (pós-comunista), árabe-islâmica, e latino-americana (com capítulos especiais sobre Cuba e a Nicarágua). Na segunda parte o livro tem como foco o “anti-americanismo doméstico”, surgido (não necessariamente sem influência estrangeira) nos próprios Estados Unidos. Aqui capítulos são dedicados aos problemas do racismo, do feminismo, do multiculturalismo, da chamada “educação para a diversidade e a tolerância”, do movimento pacifista, da esquerda política, e do conteúdo não só crítico, mas profundamente satírico, da cultura e da vida americana que se vê nos filmes e nos programas de televisão que os Estados Unidos distribuem para o mundo inteiro, e que são, na opinião do autor do capítulo, visões extremamente unilaterais e distorcidas da sociedade americana (em que aparecem, como regra, casais interraciais, casais de homossexuais, casais rotineiramente adúlteros ou insatisfeitos com seus casamentos ou relacionamentos, mães e pais solteiros ou divorciados, em que as pessoas ridicularizam os valores da classe média e da religião, etc.). A visão da sociedade e da vida americana que o cinema e a televisão dos Estados Unidos apresentam ao mundo não corresponde à realidade da sociedade e da vida americana.

Entre os múltiplos fatores que explicam o anti-americanismo há alguns que não podem ser esquecidos ou negligenciados, ainda que seu peso maior se dê em casos específicos de anti-americanismo.

Um primeiro desses fatores é ideológico. A esquerda, no mundo inteiro, ficou órfã com a queda fragorosa do comunismo na União Soviética e no Leste Europeu. Os Estados Unidos sempre foram o grande inimigo da União Soviética e do comunismo no mundo, combatendo-o uma e outro dentro e fora de suas fronteiras, sem hesitar em usar meios militares, como aconteceu nas guerras da Coréia e do Vietnam. Era de esperar, portanto, que com a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria, o ódio que a esquerda tinha ao país aumentasse – afinal de contas, os Estados Unidos, através de uma estratégia bem elaborada daquele que a esquerda insiste em chamar de o primeiro cowboy presidente (o segundo seria o Bush), derrotaram a pátria do socialismo comunista, na verdade, sem precisar fazer grande esforço naquele momento específico. É verdade que se pode dizer que a União Soviética se auto-destruiu, caiu de podridão interna – e isso seria, em parte, verdadeiro. Mas não resta dúvida, por mais que a esquerda tente negar, que Ronald Reagan elevou a aposta na Guerra Fria a tal ponto que a União Soviética não tinha como pagar para ver: precisou retirar seu time de campo. E, ao perceber a fraqueza da pátria do socialismo comunista, os demais países comunistas, com exceção de Cuba e da Coréia do Norte, rejeitaram o comunismo e abraçaram princípios liberais na economia e, em parte, na política (a China sendo a exceção: liberalizou-se na economia, mas nem tanto na política).

A vitória dos Estados Unidos provocou enorme frustração e sentimento de fracasso nas esquerdas – sensações que facilmemente se transformaram, no mundo inteiro, em ressentimento para com o vencedor da Guerra Fria. A estratégia de luta da esquerda, derrotada por completo, se alterou, embora pouco e de forma não muito sutil. Agora o foco principal não é mais criticar os Estados Unidos por serem um país liberal-capitalista (hoje, quem não é?), mas, sim, criticar a globalização econômica e cultura liderada pelos Estados Unidos, a posição do governo americano em relação ao ambiente (especialmente sua recusa do Protocolo de Kioto), as ações militares em que os Estados Unidos se envolveram no combate ao terrorismo, seu unilateralismo, que implica rejeição dos multilateralismos patrocinados pela ONU e pela União Européia, etc.

Uma nova pauta de reclamações – mas, no fundo, essa pauta é alimentada pela frustração e pelo ressentimento dos órfãos do comunismo pela vitória retumbante dos Estados Unidos na Guerra Fria, e por ter o país vindo a ocupar, virtualmente sem contestação significativa, posição de liderança na vida política, militar, econômica e cultural do mundo atual.

Um segundo desses fatores é – por falta de melhor termo – a inveja. Já escrevi um longo artigo sobre a inveja, no início da década de noventa, e aqui volto ao tema. Só que, anteriormente, discuti a inveja como um fator importante na busca do igualitarismo e da chamada justiça social – bem como da crítica dos que são bem sucedidos, que raramente recebem o crédito devido para esse sucesso, que, o mais das vezes, é atribuído a exploração, corrupção, quando não a roubo descarado. Aqui a questão da inveja se aplica a nações e regiões, não a indivíduos – embora o princípio seja o mesmo, porque a inveja é sempre expressa por indivíduos (nações e regiões, evidentemente, não falam, a não ser através da boca dos indivíduos que as compõem). Esse fator – a inveja – parece ser um componente importante do anti-americanismo latino-americano atual.

A América Latina é um bloco de países que abrange a maior parte da América do Sul (só se excetuando as Guianas), a América Central como um todo, boa parte do Caribe, e o México, na América do Norte. Territorial e populacionalmente esse bloco é extremamente significativo: representa bem mais território e muito mais gente do que a União Européia – com a vantagem cultural de falar basicamente duas línguas, o espanhol e o português, línguas essas que são indicativas da hegemonia que a Espanha e Portugal exerceram sobre a região. Apesar de ter um bloco tão significativo, territorial e populacionalmente, e de ter tido sua colonização por países europeus iniciada antes da colonização do restante da América do Norte, a América Latina, como um bloco regional, continua a ser um país sub-desenvolvido do Terceiro Mundo, tanto econômica quanto politicamente, enquanto os Estados Unidos são hoje uma potência hegemônica militarmente e a maior potência do mundo em termos políticos, econômicos, e culturais.

Dificilmente os latinoamericanos vão achar a causa desse desempenho inferior em si mesmos. A tendência é colocar a culpa pelos seus males nos Estados Unidos, que viraram bode expiatório para tudo que de mau e ruim acontece na região (e no mundo). Se há um golpe militar na América Latina que interrompe um governo que os latinoamericanos identificam como de esquerda, ou como nacionalista, ou como anti-americano, a culpa é sempre do governo americano e da CIA. Vejam-se as ladainhas sobre o papel da CIA no golpe militar brasileiro e na queda do governo Allende no Chile. Numa atitude que, ironicamente, parece admitir que os latinoamericanos são totalmente incapazes de, por si só, realizar até mesmo golpes de estado que encerram governos não desejados pelas lideranças ou até mesmo pela maioria da população, os latinoamericanos, especialmente os de esquerda, que já possuem propensão ideológica para o anti-americanismo, acusam o governo americano de intervenção, em geral através da CIA. A atribuição da causa de seus males, de seus problemas, e de seus fracassos ao “grande irmão do Norte” (agora visto mais como “Big Brother” do que como realmente “hermano”) leva boa parte dos latino-americanos – as esquerdas, os intelectuais, os artistas, a mídia – a promover, ativamente, um anti-americanismo de invejosos e despeitados.

Por fim, um terceiro desses fatores é a religião. Os Estados Unidos talvez sejam o último país, no Ocidente que um dia foi cristão, em que a religião cristã ainda tem um papel importante na vida social e na vida pública (razão pela qual os europeus, em regra, ridicularizam o país, chamando-o de culturalmente primitivo, fundamentalista, etc.). Fora do Ocidente e do mundo islâmico, Israel é o único outro país em que a religião desempenha um papel importante na vida social e na vida pública. Também é verdade, porém, que, sem contradição, tanto os Estados Unidos como Israel também são países seculares e não teocracias, e, do ponto de vista científico, tecnológico e econômico, extremamente bem sucedidos. Assim sendo, ambos representam uma grande ameaça para o mundo árabe-islâmico, ameaça decorrente do fato de que os Estados Unidos são, aparentemente, o último reduto do Cristianismo e Israel do Judaísmo – as duas grandes religiões que concorrem com o Islamismo. Isso explica porque o ódio dos árabes-islâmicos aos Estados Unidos vai de mãos dadas com seu ódio a Israel.

Além disso, mesmo sem entrar nos problemas geopolíticos que colocam árabes-islâmicos, de um lado, e americanos e israelenses de outro, o caráter moderno e secular dos dois países aparece como a maior ameaça para a visão predominantemente religiosa e teocrática do mundo dos países islâmicos, em especial no mundo árabe. (Não se dá o mesmo na Malásia, por exemplo, país do qual estou retornando para o Brasil, que é islâmico mas é moderno e, até certo ponto, secular – a lei islâmica cobre aspectos da conduta, mas há uma lei secular que regula os demais – e profundamente comprometido com a adoção do modelo de produção, da arquitetura, da tecnologia e de um sem número de outros aspectos da cultura ocidental, vale dizer, predominantemente americana). Assim, o anti-americanismo árabe-islâmico tem componentes geopolíticos, sem dúvida, mas também religiosos e culturais.

Enfim, vale a pena ler o livro. Gostaria de ter tempo de traduzi-lo eu mesmo para o português. Mas aos 63 anos [escrito em 2006] a gente tem de definir cuidadosamente as prioridades: há outros que podem fazer isso, quem sabe até melhor. Talvez este artiguinho os motive.

Em cima do Oceano Atlântico, viajando de Londres para São Paulo, 10 de dezembro de 2006 [em três horas mais devemos estar chegando a Guarulhos]. 

A Obsessão Anti-Americana

>Jean-François Revel escreveu um livro que eu gostaria de ter escrito: L’Obsession Anti-américaine: Son Fonctionnement, ses Causes, ses Inconséquences [A Obsessão Anti-Americana: Seu Funcionamento, Suas Causas e Suas Inconsequências] (Plon, Paris, 2002, 300 p). Encomendei o livro dia 11/2/2003, recebi-o dia 18/2 e terminei de lê-lo no dia seguinte. Revel é membro da Academie Française, filósofo, jornalista, autor renomado, etc..

Vou procurar resumir, neste artigo as teses principais de Revel — interpretando-as livremente. O que vai seguir não é propriamente um resumo, mas um conjunto de reflexões provocadas pelo livro de Revel e inspiradas nele. A minha discussão não segue necessariamente a ordem em que as questões são apresentadas no livro.

I. Crítica aos Estados Unidos e Anti-Americanismo

É preciso, em primeiro lugar, distinguir entre, de um lado, a crítica aos Estados Unidos (à sua política externa ou à sua vida interna, aí incluídas a sua política, a sua economia, a sua cultura [o “American Way of Life”, a literatura, a música e o cinema americano, o seu invocado racismo, o seu decantado puritanismo, sua visão do “politicamente correto”, o chamado “multiculturalismo”, etc.]), e, de outro lado, o anti-americanismo obsessivo, mecânico, automático, que funciona como um reflexo condicionado.

A crítica aos Estados Unidos, como, de resto, a qualquer outro país, é algo inteiramente legítimo e aceitável, e que não é preciso sequer procurar entender ou interpretar. Eu próprio (Eduardo Chaves), que no geral sou claramente pro-americano, tenho criticado violentamente o movimento do politicamente correto, do multiculturalismo, etc. Quem acompanhou minha lista EduTec e vem acompanhando minha lista LivreMente sabe disso. O fenômeno que se denomina de anti-americanismo, porém, vai muito além da crítica, perfeitamente compreensível e legítima, aos Estados Unidos, e tem causas que apenas a história, a sociologia ou, em alguns casos, a psicologia social conseguem esclarecer.

II. As Muitas Faces do Anti-Americanismo

Analisando o anti-americanismo historicamente, podemos detectar quatro momentos em que ele se faz sentir e muda, até certo ponto, de identidade.

Antes da Primeira Guerra Mundial virtualmente inexistia o anti-americanismo, como movimento organizado. Embora os Estados Unidos tenham se tornado uma economia pujante ao longo do chamado longo século XIX (que termina na Primeira Guerra), especialmente depois do término da sua Guerra Civil (Guerra de Secessão), ele adotava uma política externa isolacionista, não se envolvendo diretamente nos assuntos de outras nações. Os Estados Unidos não podiam ser considerados, até o final da Primeira Guerra, uma potência mundial (que se comparasse à Inglaterra, à França, à Alemanha, ou mesmo à Holanda e a Bélgica). Assim, não geraram suficiente hostilidade para que aparecesse um movimento organizado de oposição à sua atuação.

A primeira onda de anti-americanismo surgiu com o final da Primeira Guerra Mundial (1918), da qual os Estados Unidos saíram como grandes vencedores, e especialmente com a deflagração e consolidação da Revolução Comunista na Rússia (1917). A partir do momento em que um país adota o marxismo como filosofia política, os Estados Unidos, agora lançados no papel de potência mundial, em decorrência de seu papel na Primeira Guerra, e como país mais importante a adotar a filosofia política liberal e o capitalismo como teoria e prática econômica, passam a ser, para os comunistas e as esquerdas de inspiração marxista em geral (“communistes, socialistes marxistes et compagnons de route”), o demônio a exorcisar.

A segunda onda de anti-americanismo surgiu no final da Segunda Guerra Mundial (1945), da qual os Estados Unidos novamente saíram como grandes vencedores e na qual a União Soviética, comunista, circunstancialmente aliada, teve um importante papel coadjuvante, depois de ter namorado Hitler, com quem por algum tempo fez aliança (vide os pactos de não-agressão de 1939, que deram a Hitler a tranqüilidade necessária para concentrar seu esforço bélico no oeste europeu). O fim da Segunda Guerra define o início da Guerra Fria e a divisão do mundo entre duas grandes potências, os Estados Unidos e a União Soviética.

O fim da Segunda Guerra caracteriza uma segunda onda de anti-americanismo porque, além do anti-americanismo oriundo das esquerdas comunistas e socialistas, mas de inspiração marxista, surge um anti-americanismo tipicamente originado nas duas principais candidatas a potência mundial no continente europeu, a França e a Alemanha.

A França saiu humilhada da guerra. Ainda hoje os franceses não fizeram as pazes com a ocupação alemã e com o governo pró-alemão do Marechal Pétain.  Apesar de, por generosidade dos Aliados, a França ter sido incluída entre as nações vencedoras da guerra (algo que veio a lhe valer, oportunamente, até mesmo um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com direito a veto), e apesar do mito que se criou em torno da “resistência” francesa, a participação da França na guerra foi um desastre – especialmente se comparada à participação vitoriosa dos Estados Unidos, nação que, mais uma vez, como já o fizera na primeira guerra, libertou a França do jugo alemão.

Assim, ao término da segunda guerra a França havia perdido, aparentemente para sempre, sua condição, sempre almejada, de potência mundial, e havia sido humilhada pela ocupação alemã e pela aceitação de um governo pelego durante o período da ocupação.  A situação humilhante da França se tornou mais humilhante ainda nos anos seguintes com o fracasso de sua política externa na África (Algéria, por exemplo) e no Oriente (Líbano e Indochina, por exemplo). Pior, para o orgulho francês, foi ter de reconhecer, ainda que relutantemente, que, não fora pelos Estados Unidos, a França seria hoje uma parte da Alemanha.

A Alemanha também saiu humilhada da segunda guerra, pois foi derrotada pela segunda vez por aliados liderados pelos Estados Unidos. Nas negociações do pós-guerra, a Alemanha foi forçada a aceitar condições humilhantes de convivência na Europa (como, por exemplo, não ter um exército), em geral impostas pelo espírito de vingança francês, mas aceitas pelos Estados Unidos e demais aliados.

Ao anti-americanismo de natureza ideológica, inspirado pelo marxismo, e que poderia ser chamado de “anti-americanismo de esquerda”, acrescenta-se agora o anti-americanismo nacionalista, que pode ser chamado de “anti-americanismo de direita”, que se caracteriza pela revolta contra os Estados Unidos, seja pela inveja (por eles terem se tornado a potência mundial que a França desejava ser), seja pelo ressentimento (por terem os Estados Unidos pela segunda vez seguida derrotado e humilhado a Alemanha). Note-se, de resto, que freqüentemente os direitistas que hoje se reúnem na França em torno de Le Pen e os sindicalistas comunistas (como os membros da CGT francesa) se uniram, em causa comum, contra os Estados Unidos.

Mas durante o período da Guerra Fria esses dois anti-americanismos foram contrabalançados e, até certo ponto, colocados em xeque pelo receio do comunismo por parte daqueles que não eram comunistas, socialistas marxistas, ou “companheiros de viagem”.

A terceira onda de anti-americanismo surgiu com a Queda do Muro de Berlin e o debacle generalizado do comunismo no Leste Europeu e na União Soviética. Com esse debacle os Estados Unidos foram alçados ao status de única potência mundial (militar, política, econômica, e em parte cultural). Na verdade, passaram de superpotência para o que alguns francesas chamam de hiperpotência isolada. Esse novo status dos Estados Unidos exacerbou o anti-americanismo de esquerda (agora rebatizado de anti-globalização, na área econômica, de anti-unilateralismo, na área política, e, por vezes, de anti-monocultura [anticultura dita de massa], na área cultural). Alimentando o anti-americanismo, agora se acrescenta, à inveja da França (que queria ser potência mundial e não foi) e ao ressentimento da Alemanha (duas vezes derrotada pelos Estados Unidos), tanto a inveja como o ressentimento da Rússia (que deixou de ser potência mundial e passou ao status de grande derrotada na Guerra Fria).

A quarta onda de anti-americanismo surgiu com a reação americana aos eventos de 11 de Setembro de 2001. A decisão americana de reagir à guerra que lhe fora declarada pelos terroristas de inspiração muçulmana, atacando o Afeganistão (onde se escondia Osama Bin Laden) e, posteriormente, se propondo a atacar o Iraque, fez com que às forças anti-americanas de esquerda e de direita se juntasse todo o mundo islâmico e boa parte dos intelectuais e dos movimentos sindicais e “onguistas de esquerda” do Terceiro Mundo (que, de resto, sempre foram de inspiração marxista e, portanto, já anti-americanos).

É bom que se esclareça que os Estados Unidos acabaram alçados à condição de única potência mundial na esfera militar, política, e econômica e de principal potência mundial na esfera cultural, em decorrência de uma série de acontecimentos não iniciados por eles.

Os Estados Unidos custaram a entrar na Primeira Guerra Mundial, mantendo uma posição que era acusada de ser isolacionista, só vindo a entrar no conflito para ajudar a Inglaterra e, naturalmente, a França.

Algo muito semelhante aconteceu na Segunda Guerra Mundial, que não foi iniciada pelos Estados Unidos e que não teve os Estados Unidos entre os seus principais protagonistas até os seus estágios mais avançados.

As duas guerras mundiais foram iniciadas por países europeus e não pelos Estados Unidos. Estes entraram nas duas guerras a pedido das forças aliadas (que se opunham às pretensões imperialistas da Alemanha).

As três grandes ideologias totalitárias do século XX, que estiveram na raiz especialmente da Segunda Guerra Mundial, o nazismo, o fascismo e o comunismo, jamais tiveram presença significativa nos Estados Unidos: são uma invenção tipicamente européia.

Nesse contexto, registre-se que os Estados Unidos jamais foram um poder colonial. Essa dúbia honra cabe tão somente a países europeus: Portugal, Espanha, Inglaterra, França, Holanda, Bélgica e, em menor grau, a Alemanha.

O debacle do comunismo, embora certamente desejado pelos Estados Unidos e por tantos quantos amam a liberdade, não foi produzido diretamente pelos Estados Unidos, mas ocorreu em razão dos problemas internos (“das contradições internas”?) dos regimes comunistas no Leste Europeu e na antiga União Soviética. É verdade que a decisão de Ronald Reagan de levar adiante o programa “Guerra nas Estrelas” colocou sobre política e a economia da Rússia uma pressão que ela não conseguiu suportar – razão que leva muitos a afirmar que Reagan derrotou o comunismo. Mas essa pressão não teria o impacto que teve se a União Soviética não estivesse à beira do colapso econômico e, por causa disso, do caos político.

Por fim, o ataque ao Afeganistão foi simplesmente uma defesa ao ataque dos terroristas lá radicados e o eventual ataque ao Iraque [escrito em fevereiro de 2003] será resultado evidente da política expansionista do Iraque, que já fez guerra ao Irã, invadiu o Kuwait, aterroriza seus outros vizinhos (como a Jordânia e a Arábia Saudita), aniquila setores inteiros de sua própria nação, e ameaça todo o mundo livre com o uso de armas de destruição em massa.

III. As Armas e os Agentes do Anti-Americanismo

As principais armas do anti-americanismo de todas as estirpes são a desinformação, a mentira, a má-fé. Os anti-americanos se consideram em guerra contra os Estados Unidos — e numa guerra, acreditam eles, vale tudo, em especial a desinformação, a mentira, a má fé. A chamada ética marxista, de que os fins justificam os meios, é aplicada com rigor neste caso. O anti-americanismo viceja não porque inexistam informações abundantes, confiáveis e facilmente encontráveis sobre os Estados Unidos, tanto no que diz respeito à sua política externa como à sua vida interna. Os anti-americanistas de todas as estirpes agem não tanto por ignorância, mas por má fé. Nos casos em que for por ignorância, essa ignorância deve ser classificada de voluntária, porque as fontes necessárias para dissipar essa ignorância estão à disposição de qualquer um.

Os principais agentes do anti-americanismo são os intelectuais de esquerda, apoiados por uma mídia de tendência cada vez mais esquerdista. Comparados a esses agentes, os intelectuais da direita radical (nacionalistas franceses, neo-nazistas, etc.), se é que ainda existem, são insignificantes.

Ao terminar esta primeira seção de meu artigo, é oportuno registrar que os Estados Unidos estão longe de ser um país perfeito: têm muitos defeitos e cometem muitos erros que eu, que já morei lá por mais de sete anos, conheço perfeitamente. A crítica desses defeitos e desses erros é legítima e deve ser considerada com toda a seriedade. Há muitos intelectuais americanos, de cujo lealdade aos Estados Unidos é difícil suspeitar (embora eu, ultimamente, venha achando cada vez mais difícil acreditar na lealdade de alguns), que estão entre os mais ácidos críticos desses defeitos e erros.

Não é da crítica aos Estados Unidos que estou tratando aqui e estarei tratando nas próximas seções: aqui se trata do anti-americanismo obsessivo, mecânico, automático, que funciona como se fosse um reflexo automático — do tipo “é americano, sou contra”.

IV. A Europa e os Estados Unidos

A Europa foi, do século XV até a metade do século XX, o centro do mundo. Durante esse período ali tiveram lugar as principais realizações artísticas e culturais, a filosofia européia se tornou padrão e referência para o resto do mundo, ali surgiu e se desenvolveu a ciência moderna, a revolução industrial começou e cresceu ali, muitas das principais idéias políticas e econômicas que vieram a dominar o mundo ali firmaram suas raízes. É preciso que também se diga que as principais potências européias — Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, e, antes delas, Portugal e Espanha — partiram para conquistar e dominar o resto do mundo num processo de colonização e formação de império que até hoje ainda produz seus efeitos.

Durante esse período os Estados Unidos eram vistos pelos europeus de forma condescendente. É verdade que politicamente os Estados Unidos conseguiram montar uma sociedade aberta, democrática, baseada no respeito aos direitos humanos, que (diferentemente das nações européias) nunca foi vítima de um golpe político ou militar e nunca experimentou uma ditadura em seus mais de 225 anos de democracia. É verdade, também, que, especialmente ao longo do século XIX, especialmente depois da Guerra Civil americana, que acabou com a escravatura, essa sociedade entrou definitivamente na era industrial, e começou a assumir ares de potencia industrial, especialmente em decorrência do clima de abertura política e liberdade econômica que acabou por permitir o surgimento de vários inventores que produziram uma série de inovações tecnológicas. Apesar de tudo isso, os europeus viam os americanos, em regra, como nada mais do que um bando de cowboys, e a sociedade americana como uma sociedade tosca e primitiva, sem qualquer refinamento, sem criatividade na literatura, na música, na pintura, sem uma filosofia especulativa digna do nome (posto que adotava uma filosofia eminentemente terrestre, o pragmatismo), e governada por um puritanismo religioso e moral.

É compreensível que a Europa, ao ver os Estados Unidos saírem de uma posição de relativa obscuridade para assumir, ao final da Primeira Guerra mundial, a posição de grande potência mundial, ao final da Segunda Guerra, a posição de maior potência mundial (posição apenas ameaçada pela União Soviética) e, ao final dos anos oitenta, a posição de única “hiperpotência” mundial, se sentisse envolvida por um sentimento de inveja e ressentimento. Isso, apesar de os Estados Unidos haverem duas vezes salvado a Europa, em especial a França, da catástrofe.

É compreensível, portanto, que hoje, os países que menos conseguem esconder a sua inveja e o seu ressentimento dos Estados Unidos, que se expressam num anti-americanismo radical, sejam a França, a Alemanha e a Rússia. A França, ressentida por ver suas pretensões de ser potência mundial, pelo menos no âmbito político, cultural e lingüístico, sendo realizadas nos Estados Unidos, uma ex-colônia européia que, a liberando duas vezes, acabou por humilhá-la (é comum que nos ressintamos contra os que nos fazem bem, às vezes mais do que contra os que nos fazem mal). A Alemanha, por ter sido duas vezes derrotada. Nada mais é necessário. E a Rússia, por ter perdido a Guerra Fria e ter deixado de alcançar a hegemonia mundial que aspirava a conseguir e por ter capitaneado um experimento político, econômico, militar, social e cultural desastroso, o comunismo.

Apesar de hoje em dia os desinformados, por ignorância ou intencionalmente, persistirem em dizer que o mundo inteiro está contra os Estados Unidos, os únicos dois países da União Européia que não apóiam os Estados Unidos no esforço de guerra contra o Iraque são… a França e a Alemanha. A Rússia faz coro com eles. TODOS os outros países da União Européia, e todos os outros que contemplam ingressar na União Européia [escrito em 2003], estão do lado dos Estados Unidos. Jacques Chirac achou até mesmo que podia repreender os países que aspiram a ingressar na União Européia [escrito em 2003] por manifestarem seu apoio aos Estados Unidos. Ficou com a cara no chão. Recebeu críticas desmoralizadoras de todos os cantos. E nem mesmo a Alemanha ficou de seu lado nesse episódio. A repreensão voltou para cima dele como um bumerangue.

Não podemos nos esquecer de que os Estados Unidos nunca demonstraram desejo imperialista de conquistar e dominar política e militarmente o mundo, como o fizeram aquelas nações que um dia foram potências européias e que ficaram conhecidas pela sua vocação colonizadora e imperialista: a França, a Alemanha e a Rússia — para não mencionar a Inglaterra, e, num plano menor (nos séculos mais recentes), Portugal e Espanha. A Europa inventou o imperialismo e o colonialismo, as duas pragas do século XIX, e o comunismo, o nazismo e o fascismo, as três grandes ilusões totalitárias do século XX.

A Europa arruma os problemas que, depois, os Estados Unidos são chamados a consertar e arranjar.

O problema sério que hoje existe entre Israel e os palestinos não foi criado pelos americanos: foi criado pelo anti-semitismo europeu. Os Estados Unidos, frequentemente acusados de assumir uma postura imperialista unilateral, estavam, no início do governo Bush (atual), dispostos a manter uma postura eqüidistante do conflito Israel-palestinos. Quando as tensões se elevaram lá, e os Estados Unidos não intervieram, foram acusados de pelos europeus de… isolacionistas! Se correr, o bicho pega, se fica, o bicho come…

O problema dos Bálcãs foi criado pelos europeus. Quando a coisa ficou séria, chamaram os Estados Unidos para colocar ordem na casa.

A guerra do Vietnam foi uma herança de quem? Da França e sua política colonialista e imperial. Quando esta não agüentou mais lidar com o problema, os Estados Unidos tiveram de intervir.

Mas os dois principais exemplos são as duas guerras mundiais, nas quais os Estados Unidos relutaram a entrar, só vindo a participar por insistência dos aliados e para salvar a eles e à sua causa.

Quem são os países belicosos? Basta contar o número de guerras entre a França e a Espanha, entre a França e a Inglaterra, entre a França e a Alemanha, entre a França e o Império Austro-Húngaro, entre a França e a Rússia, entre a França e a Itália, entre a França e suas colônias (na Indochina, na África) — quase todas elas, de resto, perdidas pela França. (Se há um país que deveria estar acostumado a perder guerras é a França — que só não as perdeu contra a Alemanha quando os Estados Unidos intervieram do seu lado).

A França, cuja cultura e língua um dia dominaram as cortes do mundo (inclusive a do Brasil), é forçada a ver hoje sua principal entidade científica (o CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique) adotar o inglês como língua oficial para suas publicações e reuniões…

Apesar disso, os europeus, em especial os franceses e alemães, se vestem de pacifistas e de culturalmente superiores.

No plano do pacifismo, os europeus se esqueceram de que “dar uma chance à paz”, quando se trata de Saddam Hussein, é dar uma chance a um ditador assassino e irresponsável, que não hesita em aplicar armas biológicas contra muçulmanos que habitam em seu próprio país (os cursos ao norte e os xiitas ao sul). A guerra, por outro lado, é uma chance para aqueles que já são, e no futuro poderão ser, suas vítimas. [Escrito em 2003].

No plano da cultura, os europeus esnobam os presidentes americanos, a quem chamam de “ator de segunda categoria” (Reagan), “pastor fundamentalista” (Carter), “cowboy a serviço da indústria petroleira” (Bush, filho) — quando não os chamam de bêbados, ignorantes e semi-analfabetos. (Ainda um dia desses recebi uma versão requentada da velha piada sobre um incêndio na Casa Branca e do lamento do Bush de que seus dois livros haviam sido queimados, antes mesmo de ele os colorir — piada que eu já ouvia nos próprios Estados Unidos, primeiro sobre Spiro Agnew, primeiro vice-presidente de Nixon, depois sobre Gerald Ford, segundo vice-presidente de Nixon).

Do esnobismo europeu sobre a cultura americana, então, nem se fala. A sociedade americana é vista como predominantemente racista e autoritária, uma sociedade na qual os imigrantes são oprimidos e em que tudo acontece em função dos ricos, que se tornam cada vez mais ricos, e em detrimento dos pobres, que se tornam cada vez mais pobres…

Se os Estados Unidos fossem isso que os seus inimigos fazem questão de acreditar, à revelia das evidências, o fato de que tantos querem ir para lá e de fato vão, e, chegando lá, não só não pensam em voltar como fazem de tudo para levar para lá seus parentes e amigos, só poderia ser explicado pela imbecilidade humana ou, então, por uma tendência inelutável para o masoquismo.

V. Antiglobalização e Anti-Americanismo

O anti-americanismo vem hoje freqüentemente disfarçado de antiglobalização. Os grupos (geralmente ONGs) que erigiram a globalização como o inimigo a combater, e que incluem as corjas de desordeiros e baderneiros que destroem propriedade, impedem o livre trânsito de pessoas, e virtualmente paralisam cidades, procurando, assim, impor pela força seu ponto de vista toda vez que há uma reunião dos líderes do mundo desenvolvido e de, como no caso de Davos, de outras pessoas eminentes que desejam discutir os destinos da economia mundial, — esses grupos, repito — não são contra a globalização, em si: são contra os Estados Unidos, o liberalismo político e o capitalismo, que nada mais é do que o liberalismo econômico.

As pessoas que compõem esses grupos são os órfãos do comunismo que, desde 1989, estavam à procura de uma causa. Encontraram a causa de sempre, o anti-americanismo, o antiliberalismo, o anticapitalismo — só que, eufemisticamente, a rebatizaram de antiglobalização. E os mais radicais dentre eles continuam a usar os mesmos métodos: a guerrilha urbana, só que agora globalizada.

Que não haja dúvida: da mesma forma que o comunismo era uma ideologia globalizada e globalizante (haja vista as Internacionais Comunistas e Socialistas, a intenção de reunir os trabalhadores do mundo inteiro em um só movimento, a interferência nos afazeres internos de países que eram julgados passíveis de “conquista”, etc.), o movimento organizado por seus órfãos também o é. Uma sofisticada rede de comunicação e logística organiza as chamadas “manifestações” e busca apoios de governos que têm simpatia pela “causa” (como o governo Lula, que subsidiou significativamente a realização do último Forum Social de Porto Alegre, agora que o PT não mais controla o governo do Rio Grande do Sul, que anteriormente era responsável pelo subsídio).

Os órfãos do comunismo são contra a globalização apenas quando ela assume um caráter liberalizante, que remove das mãos dos governos o controle da economia.

Ou vejamos. O comunismo (ou mesmo o socialismo de inspiração marxista) visava a colocar todos os meios de produção nas mãos do Estado. Para implantar o comunismo, portanto, era importante tomar de assalto o Estado, que deveria controlar toda a economia (e, na verdade, toda a vida política e social, pois o comunismo sempre foi um projeto totalitário).

Os anos 80 representaram, de um lado, o sucesso da economia liberal (nos Estados Unidos, com Reagan, e na Inglaterra, com Thatcher) e, de outro lado, o mais completo fracasso das economias comunistas (no leste europeu e na União Soviética). Com isso, o liberalismo econômico, ou seja, o capitalismo, ficou literalmente sem adversários. Tornou-se hegemônico. Em nível de governo, ninguém que tenha alguma importância no cenário mundial hoje duvida da eficácia das principais teses liberais.

Acontece que, quanto mais liberal o mundo, mais a economia sai do controle dos governos e passa para as mãos de agentes privados. Os órfãos do comunismo, portanto, se deram conta de que, para alcançar o seu projeto político, de vir a controlar a economia mundial, e, através dela, a vida das pessoas, não bastava tomar de assalto os governos, porque estes controlavam cada vez menos a economia. Decidiram lutar, portanto, no plano da “sociedade civil organizada”, pretendendo criar uma força política — o chamado “Terceiro Setor” — que se inseriria entre o governo e a iniciativa privada. Está aí a gênese das ONGs. Elas se pretendem representantes da sociedade (que persistem em chamar de civil, como se houvesse uma sociedade incivil ou acivil) — mas na maior parte não têm a menor representatividade, só se tornando conhecidas quando, através de seus aliados na mídia, conseguem alguma visibilidade. Muitas ONGs não passam de um punhado de pessoas lutando por subsídios governamentais ou “multilaterais” para levar adiante o seu “pet project”. Ninguém ali é eleito por ninguém, além de si próprio.

O chamado “Terceiro Setor” recebeu de pronto apoio da maior parte das agências e dos órgãos das Nações Unidas, em que se encastelam quantidades significativas de “órfãos do comunismo”, e que aspiram a se tornar um sistema de “governança global”.

A luta no plano da “sociedade civil organizada” se destina, portanto, não a combater a globalização, em si, mas, sim, a globalização de tendência liberalizante, ou seja, o capitalismo. E, naturalmente, os Estados Unidos, que personificam o capitalismo para a esquerda. Não tendo conseguido a vitória do comunismo, os seus órfãos procuram garantir que o inimigo do comunismo, o capitalismo, também não seja vitorioso: a meta é destruí-lo. Uma vez destruído, pretendem montar uma “governança global” controlada pelas ONGs em que, como na ONU, ninguém é eleito mas todo mundo se arroga em representante de uma parcela significativa da sociedade.

O resto é retórica. Dizer que lutam pelo combate à pobreza e à desigualdade social é só cortina de fumaça. Lutam, isto sim, para derrotar o capitalismo liberalizante, e, assim, contra a riqueza, ainda que essa luta possa significar mais pobreza e mais desigualdade – ou, então, a igualdade na miséria . E, naturalmente, lutam para chegar ao poder político.

Nessa luta, não se furtam de usar a mentira deslavada e de incorrer, eles próprios, em contradições.

Entre as mentiras deslavadas estão as afirmações de que o liberalismo econômico torna os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres em termos absolutos. As estatísticas estão aí para mostrar que isso não é verdade. Os pobres melhoram de situação em todo lugar em que o livre comércio domina. Que os ricos também melhorem, e que a desigualdade em termos absolutos assim aumente, não significa nenhum problema para os pobres — apenas para os intelectuais que defendem o igualitarismo absoluto, cuja causa (já mostrei em meu artigo “Igualitarismo, Justiça Social e Inveja”) são a inveja e o ressentimento.

Quanto às contradições, existem em enorme quantidade. Quando, recentemente, o governo Bush aumentou o nível de seus subsídios à agricultura, houve uma crítica generalizada. As contradições? Primeira: a Comunidade Européia, que se pretende, através especialmente da França, o contraponto da influência americana, oferece subsídios duas vezes maiores aos seus agricultores. Segunda: se os antiglobalistas são, como de fato são, contrários à liberalização do comércio, deveriam aplaudir a ação anti-liberalizante do governo americano, em vez de criticá-la. Mas não: eles defendem a abertura total do mercado americano e um fechamento cada vez maior dos mercados com os quais o mercado americano teria de interagir… Mas nenhum analista assinala isso na mídia.

O antigo Primeiro Ministro francês, o socialista Lionel Jospin, flagrantemente derrotado por Le Pen nas últimas eleições, afirmava, ainda quando no governo, que era preciso lutar por uma globalização “sob o controle dos Estados”…

Esta aí a raiz do problema. Os estados nacionais perderam espaço para a iniciativa privada com a globalização. Para os comunistas e socialistas de inspiração marxista é preciso combater ESSA globalização, colocando a globalização ou de volta debaixo do controle dos estados ou nas mãos da ONU. Ao mesmo tempo, tenta-se a controlar as Nações Unidas, o que não é difícil, porque qualquer “paisico” de nada, não raro governado por um ditador, tem, ali, na Assembléia Geral e nos diversos órgãos, um voto, que vale tanto quanto o dos Estados Unidos. Fala-se, agora, em “governança global”, sob as Nações Unidas. Seus vários órgãos baixam determinações que devem, supostamente, se tornar leis nos países membros — ou pelo menos nos países signatários de seus acordos.

Longe de ser o burro que seus inimigos pretendem, Bush demonstra descortino e visão ao se recusar a assinar o tratado de Kyoto (que nem os seus inimigos cumprem) e a retirar apoio do Tribunal Internacional (que, controlado pelos seus inimigos, fatalmente estariam processando os Estados Unidos e seus líderes a todo momento). No caso da guerra contra o Iraque, já deu mais satisfação do que devia à ONU: trata-se de dar prosseguimento a uma guerra em que os Estados Unidos foram atacados em seu território por terroristas que encontram abrigo em vários países islâmicos, dos quais o Iraque é hoje (agora que o Afeganistão do Talibã foi vencido) o que lhes dá cobertura mais ostensiva, além de já ter demonstrado seu espírito expansivo e belicoso no ataque ao Iran e ao Kuwait e de ter dado provas de que, podendo, não hesita em usar armas químicas e biológicas contra os que considera seus inimigos dentro do próprio país (os curdos e os xiitas). [Escrito em 2003].

É isso.

Em Cortland, OH, 14 de Janeiro de 2005. (Transcrito de matéria que escrevi, em Salto, SP, em 22 de Fevereiro de 2003, para um outro blog meu, que não existe mais.)