São duas da manhã. A Chácara Klabin está bem silenciosa.
Por causa disso se ouvem bem alguns ruídos que, fosse o bairro mais barulhento, se perderiam em meio a barulhos mais fortes. De vez em quando passa um carro na minha rua. Mas dá para ouvir o ruído de carros passando na Avenida Ricardo Jafet, a uns bons 500 metros daqui. Como estou no décimo andar, dá para ouvir bem o som dos motores e dos pneus em atrito com o asfalto. Os ruídos dos caminhões e dos ônibus são naturalmente mais audíveis, mas ouvem-se até mesmo os barulhos mais suaves, quase ininterruptos, dos automóveis.
Infelizmente, não dá para ouvir o ruído do Riacho do Ypiranga correndo sobre as pedras. Passa aqui do lado, entre as duas pistas da Ricardo Jafet, Foi às margens dele que Dom Pedro, o primeiro, proclamou nossa independência, dizendo, mais ou menos na linha do que Patrick Henry disse 50 anos antes nos Estados Unidos, “Independência ou Morte”. (O que Patrick Henry disse é um dos motos – o principal – deste space).
Os ruídos veiculares competem com vários outros ruídos. O da geladeira, o do ar condicionado… Mas dá bem para notar a diferença, em grande parte por causa da regularidade do ruído da geladeira e do ar condicionado. O aparelho de ar condicionado fica na sala. Mas como o apartamento não é muito grande, e o aparelho é bem potente, dá para refrigerar o quarto, se a gente deixar a porta aberta.
Por incrível que pareça, de vez em quando, algumas noites, bem tarde, ouço o apito de um guarda noturno, Gosto desse apito, Lembro-me de quando era criança, e as casas tinham uma plaquinha com as letras maiúsculas GN – de Guarda Noturna. Meu avô, José (Juca) de Campos foi guarda civil noturno, que é como os chamavam em Campinas em meados do século passado. E me deu de presente o seu apito de guarda – bem como o seu espelhinho de dentista amador e o seu relógio de bolso de colete, com as iniciais JC gravadas, de forma rebuscada, na parte de trás. Abrindo o relógio, na parte de trás, havia um JC feito com a letra dele, cortado no metal com algum material de ponta, do jeitinho que ele rubricava as coisas (ou iniciava a sua assinatura).
Mas voltemos para a noite. Motocicletas virtualmente não se ouvem a essa hora da noite. Felizmente. Iria ser um inferno escutar barulho de motocicleta quando se quer dormir. Mas acabou de passar um carro aqui na frente de casa – acelerando. Deve ter saído de algum prédio aqui perto. Estava assim tipo passando da segunda para a terceira… Até isso dá para perceber quando nenhum outro ruído atrapalha. Fico imaginando quem estaria saindo a essas horas, e por quê. Seria uma emergência? Ou seria alguém indo embora que chegou bem mais cedo, festou um pouco, caiu no sono e só acordou agora, apavorado pela hora?
Escutei agora o ruído de um avião. O que pareceu estranho foi que, a essas horas, não há tráfego aéreo em Congonhas, aqui perto. Assim, o avião deve ter passado lá nas alturas. Só com o silência da noite foi possível ouvi-lo.
Dei-me conta agora de que ouço um chiado constante, parecido com o canto baixinho de uma cigarra, que não sei de onde vem. Talvez seja a água passando pelos canos, ou a eletricidade circulando pelos fios, ou os bitzinhos voando pelo ar do meu computador para o roteador no escritório, a partir de onde eles passam a trafegar pelos cabos coaxiais da Net… Ou pode ser que o zumbido esteja nos meus ouvidos, vá lá saber… A gente vai ficando velho e pode ter uma colônia de mosquitinhos dentro do chamado ouvido interno…
Desde que me lembro, sou notívago. Gosto de dormir tarde. E o interessante é que não sou de levantar tarde. Levanto-me cedo. Gosto dessa hora, quando tudo é silêncio e eu tenho a casa totalmente para mim… Gosto de trabalhar a essas horas. Não é raro eu ir dormir duas horas da manhã ou mais. Quando fazia meu doutorado, nos EUA, dormia um pouquinho (uns 45 min, no máximo uma hora) depois do jantar (que lá é cedo, cerca de 17h30), e, depois, ia até as 3 da manhã estudando, escrevendo (fazendo meus trabalhos, minha tese…). Para me levantar às 6h e ir dormir às 2h ou 3h, só cochilando um pouquinho entre um e outro. Cochilo de gato (catnap) é como os anglófonos chamam esse soninho supostamente fora de hora.
Um barulho mais alto, certamente de um caminhão, chegou até aqui. Não foi na minha rua, e acredito que não foi na Ricardo Jafet. Talvez tenha sido na Vergueiro, no rumo do cruzamento com a Avenida Prefeito Fábio Prado – a rua mais importante da Chácara Klabin. (A Ricardo Jafet fica no limite do bairro, e a Vergueiro o cruza, mas nenhuma das duas é rua do bairro: elas começam e terminam em outros bairros. A Fábio Prado, não. Começa e termina na Chácara Klabin. Tem duas pistas, cada uma com três faixas de rolamento (uma geralmente usada para estacionamento). Tem uma mediana, que em alguns pontos se alarga para formar a Praça Giordano Bruno. É nessa rua – na verdade uma avenida – ou em ruas que desembocam nela mas virtualmente na esquina, que ficam o Itaú e o Bradesco, a Drogaria São Paulo, a Padaria Iracema, a Kopenhagen, La Maison du Vin, o Nice Cup (uma coffee shop meio metida a besta que serve um delicioso pastelzinho de beringela com curry – desafio o leitor a encontrar outro lugar que sirva essa delicatesse), a Cinq à Sec, o Posto Shell (com sua nova coleção de lojinhas de conveniência – houve uma reforma recente), cabeleireiro, videolocadora, pet shop, imobiliária, pizzaria (também meio metida a besta), uma loja de móveis, uma loja de quadros e molduras, duas bancas de jornal, um Franz Café, e todo o comércio mais nobre do bairro. A Estação Imigrantes do metrô fica na Rua Saioá, que termina na Fábio Prado, e a Estação Klabin fica na Vergueiro, do lado do Liceu Pasteur (que perdeu um pedaço bom do terreno para a construção da parte subterrânea da estação). Lá trabalha nossa amiga Barbara Dieu. (Gozado, não? Nunca vi alguém ter Deus como sobrenome. A Barbara tem, herdado do marido, um belga).
Mas estou abandonando o meu tema. É duro falar sobre o silêncio por muito tempo. Só um mestre como Nelson Rodrigues pode comentar o silêncio, do qual nunca se ouviu tamanho, que teve lugar no Maracanã em 16/7/1950.
É gozado… Silêncio é a ausência de ruído, de barulho. No entanto, a professora do primário diz: “Façam silêncio!” Deveria dizer: “Não façam barulho!”, porque barulho é o que a gente faz – o silêncio acontece quando a gente não faz barulho nenhum, mas é difícil imaginar como ele possa ser feito, ou como ele possa ter lugar (como acabei de escrever) – ou, a despeito do Nelson Rodrigues, como ele possa ser ouvido. A gente “ouve” silêncio quando a gente não ouve (agora sem aspas) ruídos e barulhos.
Apesar do que acabei de dizer, as pessoas gostam de usar expressões como “A Voz do Silêncio”. Um colega meu da UNICAMP escreveu uma tese de doutoramento em 1974, com o título “A Voz do Intervalo”. Recém-chegado dos Estados Unidos, ainda sentindo o peso de uma filosofia analítica para a qual a clareza e a precisão lingüistica eram valores supremos (e as metáforas e figuras de linguagem muito pouco apreciadas), tive dificuldade para entender a tese. Só aos poucos percebi que ele estava procurando analisa
r as pausas na fala, as pausas no discurso… A Voz do Intervalo. Bonito. Deve estar aposentado também, o Luiz Orlandi. Fui suplente da banca dele, naquela época de escassez de doutores na UNICAMP. Não tive como recusar, apesar de não ter, naquela época, nenhum interesse no tópico. Quem diria que, trinta e tantos anos depois, eu estaria escrevendo uma crônica sobre o silêncio – porque, invertendo a perspectiva, os ruídos da noite nada mais são do que intervalos do silêncio que é “default”.
Bon silence.
Em São Paulo, na Chácara Klabin, 21 de Março de 2010