Elucubrações Perigosas…

Há 25 anos [1990, a contar de 2015 – 30 anos a contar de hoje, 2020] escrevi um artigo com o título “How Far Can a Doctrine Change Without Becoming Something Else?” [“Até que ponto é Possível Mudar uma Doutrina sem que ela se Torne Algo Diferente?]. Esse artigo, que foi publicado nos Proceedings of the Second Assembly of World Religions [Anais da Segunda Assembléia de Religiões Mundiais], Los Angeles, EUA, 1990), e que foi disponibilizado aqui neste blog, no ano passado [2014] neste URL http://liberalspace.net/2014/05/26/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/.

Quase 70 anos antes, em 1923 (quase 100 anos antes, a partir de hoje, 2020), J. Gresham Machen, na época professor do Seminário Teológico de Princeton, escreveu um livro chamado Christianity and Liberalism [O Cristianismo e o Liberalismo] em que argumentava que o Liberalismo Teológico (contra o qual ele se batia) tinha ultrapassado o limite (ao qual, muito tempo depois, eu fiz referência): o Liberalismo havia se tornado “something else” — não era mais Cristianismo, era uma outra religião: uma religião imanentista, sem o sobrenatural; secular, sem o sagrado; focada na ética de Jesus, na regra áurea, na visão de que “o céu é um lugar aqui na Terra” e que, portanto, o Reino dos Céus não será nada mais do que a Terra Transformada (por nós, naturalmente).

Quando escrevi o artigo em 1990 não havia lido o livro de Machen ainda (embora já houvesse escrito sobre Machen). Hoje, quando já o li e reli, sinto uma semelhança enorme entre o que ele diz e a resposta que tentei dar à pergunta que fiz no título do meu artigo. Foi a consciência de que o “How Far” [Até que Ponto] tem um limite, e que esse limite pode ser ultrapassado, e muitas vezes é, que me fez concluir, por volta de 1970, quando desisti de ser pastor (teria de ser ordenado naquele ano, ou logo a seguir), que Bultmann (inter alia: muitos outros com ele) havia ultrapassado esse limite, e que eu poderia até continuar sendo bultmanniano, mas não seria mais cristão… Ergo… devia procurar outra coisa para fazer. Como, por exemplo, ser teólogo, em vez de pastor… (embora eu soubesse, da história que escrevi no seminário sobre o movimento Fundamentalista, que teólogos também podem perder o emprego por heresia).

(Um parêntese. Os conservadores e principalmente os fundamentalistas não admitem que um teólogo que estuda as doutrinas do Cristianismo possa não ser cristão. Da mesma forma que as feministas não admitem que um homem possa escrever sobre o feminismo, que os negros não admitem que um branco possa escrever sobre os negros e sua cultura, que um “straight” possa escrever sobre os gays, etc. Faltaria ao não-cristão, ao homem, ao branco, ao heterossexual aquilo que hoje se convencionou chamar de “lugar de fala” para discorrer, respectivamente, sobre o Cristianismo, o Feminismo, o Movimento Negro, o Movimento Gay. Eu discordo totalmente dessa tese. Já escrevi sobre tudo isso sem ser gay, negro, mulher e mesmo quando não me considerava mais cristão. Fim do parêntese.)

A triste conclusão dessa linha de pensamento é que, ou se é conservador ou ortodoxo, ou, então, rapidamente se deixa de ser cristão para adotar uma “religião secular”, que hoje se manifesta, entre os evangélicos, como “religião de auto-ajuda”, “teologia da prosperidade”, etc. No extremo, a “esquerda teológica”, a teologia da libertação et alia deixaram de ser alternativas cristãs para se tornar outras religiões, seculares, políticas, em alguns casos (não todos) revolucionárias em linha marxista. O mesmo vale (no meu entender) para teologias feministas, teologias negras, marrons, amarelas, vermelhas, verde-e-amarelas, teologias LGBT, etc.

Ainda bem (para ele) que Machen morreu (cedo) antes de ver que o Liberalismo Teológico contra o qual ele se bateu tão corajosa e valentemente, e perdeu (pois teve de sair da igreja e do Seminário que ele amava — fato que lhe causou uma morte prematura, provavelmente por desgosto), era uma versão muito “light and soft” de algo que hoje se tornou “heavy and hard”.

O que me impediu de continuar liberal, por volta de 1990, foi honestidade intelectual, de um certo tipo: a convicção de que isto não é aquilo, de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, e que não se deve fazer de conta que uma coisa é a outra.

O que me impedia de me reconhecer fundamentalista ou conservador também foi honestidade intelectual, só que de outro tipo. Minha capacidade de pensar e refletir, aparentemente dada por quem me “projetou” (designed) assim, me impediu de reconhecer que a maior parte do que eles, fundamentalistas e mesmo conservadores, defendiam e continuam a defender fosse verdade (embora a hermenêutica deles seja mais honesta do que a dos liberais).

Nesse reconhecimento, continuei a ser bultmanniano, pois Bultmann disse, no ensaio “O Novo Testamento e a Mitologia”, que hoje abre o blog que recentemente criei para ele, o seguinte:

“We cannot use electric lights and radios, and, in the event of illness, avail ourselves of modern medical and clinical means, and at the same time believe in the spirit and wonder world of the New Testament” (É impossível usar a luz elétrica e o rádio [a televisão ainda não existia em 1941] e, em caso de doenças, servirmo-nos das descobertas médicas e cirúrgicas modernas, e, ao mesmo tempo, crer no mundo  de espíritos e milagres apresentado pelo Novo Testamento) [O blog Rudolf Bultmann: The Last of the Liberal Theologians está disponível, a partir de 6.1.2020, no seguinte URL: https://rudolfbultmann.wordpress.com/2020/01/06/rudolf-bultmann-o-novo-testamento-e-a-mitologia-1941/%5D

A questão é: será que há um “tertium quid”?

Se não houver, a gente ou tem de ser conservador / fundamentalista ou, então, deixar de ser cristão.

Se houver esse tertium quid, que não é nem, de um lado, conservadorismo / fundamentalismo, nem, de outro, liberalismo / modernismo, o que será ele?

Será que o tertium quid estaria em um Cristianismo totalmente não doutrinário, sem dogmas e sem ortodoxias? Ou será que isso já seria Liberalismo?

Seria algo ainda mais radical, parecido com o Cristianismo de Thomas Jefferson, que, da Bíblia, só aceitava o Novo Testamento, do Novo Testamento, só aceitava os Evangelhos, e dos Evangelhos só aceitava o que lhe parecia racional e filosoficamente defensável na mensagem de Jesus. Jefferson até publicou dois livrinhos, um maior do que o outro, contendo o “resíduo” — aquilo que sobrou quando ele aplicou à Bíblia a sua tesoura racionalista e liberal, e que veio a ser chamada de “A Bíblia de Jefferson”, um livro fininho, fininho…

Em São Paulo, 17 de Agosto de 2015; revisto em Salto, em 6 de Janeiro de 2020 e em 1 de Março de 2021.

Uma resposta

  1. Recebi a resposta abaixo de um leitor que deixo anônimo por não ter a autorização dele para indicar sua autoria. Se e quando a receber, coloco o nome dele aqui:

    ———-

    Olá, Eduardo.

    Tenho lido aos poucos o seu blog e admirado bastante. Seu texto “Elucubrações Perigosas…” mexe muito comigo e principalmente por isso escrevo esta reposta.

    O texto implica uma definição de “cristão” que não é esclarecida. O que é ser cristão? Quem tem o poder de dizer o que é e o que não é cristão?

    Não creio ser justo dizer que o que a igreja assim define, o é. Essa posição conservadora se esquece de que a igreja também erra.

    Soma-se a isso o fato de que não se fala mais em “cristianismo primitivo”, mas sim em “cristianismos primitivos”, devido a seu pluralismo.

    Parece-me também plenamente plausível afirmar que o núcleo da fé cristã — Jesus — era de certa forma um “liberal”. É possível ser liberal a partir da fonte. A demitologização pode ser entendida não como uma forma de tornar a mensagem palatável aos nossos dias, mas como maneira de entender o texto dentro de seu gênero literário, e.g. assim como se faz com um romance hoje (se não me engano, essa era a proposta da demitologização).

    Assim, fica difícil dizer que só cristãos conservadores são, de fato, cristãos.

    Sobre as teologias citadas, me parece plausível também encontrar elementos de libertação e feministas, por exemplo, nas escrituras cristãs, sem precisar apelar para o marxismo ou para a teoria feminista. Embora isso me pareça empobrecer a teologia.

    Além do mais, o método histórico-crítico é sem dúvida superior ao método de interpretação conservador.

    Embora eu não me importe com os rótulos, preocupando-me mais com o devir do que com o que já está constituído, sou fiel à minha tradição cristã e creio que como teologicamente progressista consigo levar muito mais a sério a mensagem cristã. Além disso, não quero deixar que apenas vozes conservadoras e fundamentalistas definam o que é cristão. O significado primeiro de cristão talvez esteja distante demais para recuperarmos, só podemos continuamente ressignificá-lo.

    Abraços,

    xxx

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