A "relativização" dos direitos individuais

Transcrevo aqui minha discussão com Kennedy Alencar

Kennedy Alencar defende, no artigo transcrito abaixo, a tese de que "numa sociedade civilizada, não deve existir um direito absoluto". O corolário dessa tese é de que a defesa de direitos absolutos caracterizaria a barbárie.

Alencar tenta provar a sua tese dando um exemplo de livro texto: "O direito à liberdade de ir e vir é relativizado quando um cidadão acusado de um crime é julgado e condenado à prisão num devido processo legal".

No exemplo dado, porém, não se trata de "relativização" dos direitos individuais (os chamados "direitos sociais" e de outras gerações, além da primeira, nem considero direitos).

A legislação de diversos povos, mesmo os mais antigos, foi construída em cima do "jus talionis": o direito de retaliação, o "olho por olho, dente por dente" mencionado na Bíblia. Assim sendo, o criminoso, condenado por transgredir o direito alheio, perdia os seus próprios direitos. Tradicionalmente, se alguém matava, era punido com a morte; se mutilava, era punido com mutilação equivalente. Hoje, aqui no Brasil, a punição é mais branda: prevê, mesmo para os crimes mais graves, como o assassinato, apenas a perda de liberdade de ir e vir (embora essa pena não se aplique a todos os crimes, como parece imaginar o Alencar).

Não se trata, portanto, de "relativização" de direito individual. Trata-se, isto sim, do princípio, perfeitamente defensável, de que a pessoa que comprovadamente viola direitos individuais de outrem perde o direito de invocar esses mesmos direitos.

Alencar poderia ter achado exemplos melhores.

Eu poderia imaginar que, no exercício de meu direito de liberdade de expressão (expressão entendida no sentido lato e envolvendo mais do que a liberdade de expressão do pensamento) eu deveria poder tocar trombone sem surdina em meu apartamento às 2 horas da madrugada. A legislação (ou ar normas reguladoras da legislação) da maior parte dos povos proíbe isso — porque nesse horário as pessoas em geral desejam exercer o seu direito de descansar sem perturbação. Seria este um melhor exemplo do que Alencar pretende seja a "relativização" dos direitos individuais?

Também não é. A tese da naturalidade dos direitos individuais parte do princípio de que eles são inerentes ao fato de ser humano. Isso significa que todos os seres humanos os possuem, em iguais condições, simplesmente pelo fato de serem humanos. Na prática, isso significa que o meu direito termina onde começa o do outro. Não sou só eu que tenho direitos: o o outro também tem. Logo, na prática, há que se harmonizar o exercício do meu direito com o exercício do direito do outro. Isso se faz mediante algum tipo de negociação ou acomodação tácita. Durante o dia, até digamos às 22 horas, eu posso exercer o meu direito de tocar trombone. Das 22 às 8 horas da manhã, você pode exercer o seu direito de descansar sem ser perturbado pelo meu trombone (ou pelas festas barulhentas do pessoal do andar de cima).

Em outras palavras: não se trata de "relativização": trata-se de uma tentativa de compatibilizar conflitos no exercício de direitos, ambos perfeitamente justificáveis.

Acho que foi um dos Marx (não o de O Capital, mas um daqueles outros, mais divertidos e menos perigosos) que disse que toda vez que alguém falava em cultura ele tinha a tendência a proteger o bolso em que estava a carteira. Eu, toda vez que alguém fala em relativizar direitos individuais tenho a tendência a sair e comprar uma arma.

Acho que foi isso que a população brasileira sentiu ontem ao sufragar de forma esmagadoramente majoritária o NÃO.

Em Campinas, 24 de outubro de 2005

[Abaixo, a transcrição do artigo de Kennedy Alencar]

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21/10/2005

"Sim" é melhor opção no referendo

Acontece no domingo (23/10) o referendo que pergunta se "o comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido" no Brasil. A resposta mais sensata é "sim". Assinalar "não" significa manter a atual legislação sobre o tema, que autoriza esse tipo de comércio.

Os que defendem "não" têm dois argumentos principais:

1) Não querem abrir mão de um direito individual. Alegam que o cidadão deve poder comprar um arma para se defender se julgar isso a melhor opção.

2) A incapacidade provada e inconteste do Estado brasileiro de dar uma segurança pública de boa qualidade à população não recomenda que ela se desarme enquanto os bandidos continuam armados até os dentes.

Numa sociedade civilizada (custamos muito a chegar até aqui e ainda temos bastante a caminhar), não deve existir um direito absoluto. O direito à liberdade de ir e vir é relativizado quando um cidadão acusado de um crime é julgado e condenado à prisão num devido processo legal, por exemplo.

Restrição a direitos é uma convenção da sociedade que, se democraticamente decidida, é legal e legítima. O referendo de domingo, portanto, está aí para conferir legalidade e legitimidade à restrição de um direito se a maioria julgar pertinente.

Um Estado sem restrição a direitos é um Estado do vale tudo. E ninguém tem o direito de fazer o que lhe dá na veneta em qualquer assunto de sua vida.

Quanto à falta de segurança pública, não será a manutenção do comércio de armas e munição que irá melhorá-la. Estatísticas mostraram redução de mortes por conta da campanha do desarmamento voluntário. Votar "não" é deixar tudo como está. E não está nada bom.

Bandidos continuarão armados vença o "sim", ganhe o "não". Mas, certamente, terão mais dificuldade para formar seus arsenais se houver uma proibição seguida de uma rigorosa fiscalização –esta uma cobrança imediata que deve ser feita às autoridades.

Votar "sim" é dar uma chance a um novo tipo de política pública. No desesperador quadro de violência do Brasil, é uma tentativa que merece uma chance.

Kennedy Alencar, 37, é colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre os bastidores da política federal, aos domingos.

E-mail: kalencar@folhasp.com.br

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