AIDS, o Grande Inquisidor e as certezas da classe médica

[Este artigo foi escrito em 1989. Até hoje não vi resposta convincente às questões que ele levanta]

É como leigo no assunto que venho tornar pública minha surpresa diante da absoluta certeza demonstrada por uma parte da classe médica de que o vírus HIV é de fato o causador da AIDS. Essa certeza parece ter se acentuado a partir do momento em que um professor alemão, radicado na Califórnia, resolveu questionar a ortodoxia dominante. “O HIV causa AIDS, sim!”, é, por exemplo, o título de um dogmatizante artigo do médico Drauzio Varella, publicado em O Estado de São Paulo de 27/04/89.

A reação à entrevista dada ao Fantástico pelo professor Peter Duesberg não se dignou sequer a levar a sério as idéias por ele externadas: partiu diretamente para argumentos “ad hominem”. Um dos médicos brasileiros que “repercutiu” (se me permitem o jargão jornalístico) a entrevista chegou quase a taxar o professor californiano de um mero “Zé Ninguém” em busca de notoriedade.

O Dr. Varella ataca somente o homem, deixando incólume a tese que este defendeu. Afirma, por exemplo, que o professor Peter Duesberg não é médico, nunca colocou mão em doente, nunca estudou o HIV em laboratório, nunca publicou no campo da AIDS. Além do mais “é nitidamente fascinado pelas câmeras”.

O Dr. Varella é forçado a reconhecer que o professor Duesberg é um Ph.D. e que andou fazendo umas pesquisas importantes na área dos retro vírus (ao qual pertence o chamado vírus da AIDS), mas sua descoberta mais importante é descrita como nada mais do que o desvendamento de “certos mistérios que envolvem a malignização de células da galinha”. C’est tout. Fini.

Contra o professor Duesberg o Dr. Varella afirma, ainda, que suas teses são desmobilizadoras, pois poderão levar muitas pessoas a não tomar tantos cuidados em relação à AIDS, e que poderão dar a impressão de que “nem os próprios cientistas sabem se a AIDS é transmitida por vírus ou não”. Contra essa impressão ele decreta: “Não existe polêmica no mundo científico: é o HIV que provoca AIDS, e ponto final”. O professor Duesberg acaba de ser colocado fora do mundo científico.

Eu, como leigo no assunto, mas razoavelmente interessado em encontrar sentido naquilo que os especialistas, reais ou auto-proclamados, afirmam, permito-me algumas considerações semi-epistêmicas sobre o assunto.

1) Parece-me um absurdo, em primeiro lugar, a utilização descarada da argumentação “ad hominem”. Tudo bem, o professor Duesberg não é médico. Mas e daí? Vamos analisar o que ele disse, não quem ele é. Afinal de contas, de vez em quando um não-médico também diz alguma coisa que faz sentido e que pode até ser verdadeira. Não me consta que os médicos detenham o monopólio do saber, nem mesmo na área restrita da medicina. Muito menos em áreas envolvendo pesquisas de ponta da biologia. O fato de não ter colocado as mãos em doentes de AIDS não desqualifica o professor Duesberg, a priori, para fazer afirmações sobre vírus, em geral, e o dito da AIDS em particular. E se o fato de supostamente “ser fascinado pelas câmeras” tornasse suas afirmações automaticamente inverídicas, não sei bem o que restaria de verdade dentro da comunidade médica, pois alguns dos defensores da ortodoxia vigente na área da AIDS no Brasil me parecem vítimas pelo menos igualmente graves da mesma fascinação, para não mencionar o encanto pelas páginas dos jornais.

2) Parece-me, porém, ainda mais absurdo criticar o professor Duesberg com base na alegação de que sua tese desmobiliza todo o esforço hoje sendo feito no sentido de reduzir a infecção pelo HIV. Ora, é isso, porventura, argumento que se apresente? Ainda que o Dr. Duesberg estivesse redondamente errado, a forma de combatê-lo seria mostrar que sua tese é falsa, não apelar para o seu potencial desmobilizador. Afinal de contas, o próprio professor Duesberg deixou claro, no Fantástico, para quem quis ouvir, que, mesmo que ele esteja certo em relação ao HIV, a mobilização é importante, porque a síndrome que se chama de AIDS está estreitamente relacionada a hábitos ou estilos comportamentais.

Mas vou além: ainda que o professor Duesberg estivesse propondo a tese de que a forma de contrair AIDS não tem nada que ver com o HIV nem com hábitos ou estilos comportamentais, e que, portanto, toda a mobilização atual é desnecessária, ainda assim, repito, a afirmação de que sua tese é desmobilizadora em nada a invalida.

3) O Dr. Varella afirma que não teria havido “nada de mais” se o professor Duesberg tivesse restringido suas opiniões ao círculo “de sofisticada discussão acadêmica” e tivesse se limitado à “elegância do estilo científico”. O problema foi que ele levou suas idéias “aos meios de comunicação de massa”.

Essa técnica de argumentação me faz lembrar “O Grande Inquisidor”, do romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoiewsky. Por detrás do dito, o não-dito correria mais ou menos assim: “Nós, pesquisadores e médicos, sabemos, aqui entre nós, que o professor pode ter razão. Mas não é bom divulgar isso, porque vai fazer com que os costumes do povão voltem a se deteriorar. Toda a ‘indústria da AIDS’ pode ser desmontada se o povão acreditar no que diz o professor. As empresas farmacêuticas não vão fabricar mais tantas camisinhas, nem tantos ‘kits’ de testes anti-HIV, Elisa, Western Blot, etc. E nós, os protetores dos enfermos aidéticos, vamos perder nosso acesso à tribuna da imprensa, para não falar nas consultorias e nas verbas para pesquisa, etc.”. “O Grande Inquisidor” defendia postura idêntica: é importante fazer o povão acreditar em “mentiras pias”, que nos permitem controlá-lo melhor e tê-lo à nossa mercê.

Foi com base em posturas desse tipo que muito incrédulo mandou herejes para as fogueiras na Inquisição — não porque os hereges dissessem algo de que discordassem, mas porque os hereges o diziam abertamente, em praça pública (diante das câmeras de televisão, dir-se-ia hoje).

4) Em resumo, o que é que disse o professor Duesberg? Ele disse, fundamentalmente, o seguinte:

A) Não se tem conhecimento de nenhum caso de infecção virótica que se manifeste sete ou oito anos depois de a pessoa haver contraído o vírus e após ter desenvolvido os anti-corpos a esse vírus. As infecções viróticas geralmente se manifestam logo após o vírus ter sido contraído.

B) As pessoas que contraem o HIV, segundo a evidência disponível, desenvolvem anti-corpos (na verdade os testes verificam a presença não do vírus em si, mas de anti-corpos a ele), e ficam sem manifestação alguma da doença por vários anos — sete a oito, em média. Pode até dar-se o caso de algumas pessoas terem contraído o vírus e nunca virem a ter manifestação alguma da doença.

C) Esse fato, em si, é indicativo de que a causa da doença não é a presença do vírus no organismo. Este já foi tornado ineficaz, como demonstra a presença dos anti-corpos. Daqui a vinte anos, afirmou o professor Duesberg, a comunidade científica vai rir de quem um dia afirmou que um vírus contraído oito anos antes, e cuja ação já foi tornada ineficaz, pudesse ainda causar uma doença e, finalmente, a morte de uma pessoa.

D) O professor Duesberg afirmou que o que é hoje chamado de AIDS é uma síndrome de doenças, que possuem manifestações diferenciadas e provavelmente etiologias diferentes, dependendo dos grupos de comportamento de risco das pessoas que as contraem: homossexuais, viciados em drogas, etc. Mais perigoso para a saúde (inclusive imunológica) da pessoa é sua promiscuidade sexual, o conteúdo de suas seringas, do que ser homossexual ou usar agulha contaminada.

E) Afirmou, por fim, o professor Duesberg que remédios, como o AZT, que estão sendo utilizados contra a AIDS, em função da visão dominante quanto à sua etiologia, estão causando mais mal do que bem e que na verdade podem estar realmente matando os pacientes.

5) São essas afirmações que eu, como leigo neste assunto, gostaria de ver discutidas pela classe médica. E gostaria de ver argumentos reais, e não meros “argumentos” de autoridade. Para mim, dizer que fulano de tal, prêmio Nobel, ou diretor de um famoso hospital, não concorda com o professor Duesberg, não significa nada: quero ver alguém refutando as afirmações do professor. Seria pedir demais à classe médica?

E não adianta simplesmente reiterar a verdade recebida, dizendo, “O HIV causa AIDS, sim!”, por mais pontos de exclamação que possam ser colocados após o “sim”, nem dizer, como disse um outro entrevistado do Fantástico, que é um pesquisador contra 50.000. O problema não é de aritmética nem se resolve no voto.

Alguém se habilita a realmente responder ao professor de Berkeley?

Em Salto, 29 de março de 2006 (artigo escrito em 1989)

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