Em geral pensamos em riqueza com sendo a posse de bens materiais. Alguns têm um conceito até mesmo mais estreito, associando a riqueza à posse de bens financeiros, em última instância, dinheiro.
Alvin Toffler, em seu mais recente livro, publicado nos últimos dias, Revolutionary Wealth (Riqueza Revolucionária), procura mostrar que devemos entender riqueza de forma mais ampla. No que segue, vou tecer algumas considerações inspirado pela leitura desse livro. Mas a maior parte do que vou dizer é elaboração minha. (Na realidade, uma boa parte do que vou dizer aqui está contido, numa versão embriônica, em meu artigo “Justiça Social, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernandez de la Mora”, originalmente publicado em 1991, e disponível no meu site pessoal na versão original e na versão revista e ampliada).
Riqueza, diz Toffler (p.19), no seu sentido mais amplo, é qualquer coisa que satisfaz nossas necessidades ou quereres (needs or wants). Um sistema de riqueza, por sua vez, é a forma pela qual a riqueza é criada – seja ela financeira ou não, material (tangível) ou não.
Aqueles que, como eu, vêm defendendo a idéia de que o desenvolvimento que importa alcançar não deve ser definido em termos puramente econômicos, mas deve abranger aspectos políticos e sociais, sendo um desenvolvimento propriamente humano (noção originalmente proposta pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, então diretor do PNUD das Nações Unidas, em seu livro Reflections on Human Development (Reflexões sobre o Desenvolvimento Humano), e trabalhada posteriormente pelo economista indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, em seu livro “Development as Freedom” (“Desenvolvimento como Liberdade”), darão boas vindas a essa noção de riqueza – porque ela traz consigo uma nova concepção de pobreza – e de como combatê-la.
Segundo a noção de riqueza proposta por Toffler, a pessoa que tem saúde, que tem educação, que tem o respeito daqueles que ela respeita, que tem uma família que a ama, a ajuda e lhe dá apoio (ou que tem outros bens intangíveis de que ela precisa ou que quer) – essa pessoa tem considerável riqueza, mesmo que ela seja desprovida de bens materiais e financeiros.
A esquerda provavelmente vai dizer que Toffler está relativizando a riqueza, tentando mostrar que o pobre na verdade não é tão pobre se tem esse tipo de riqueza. E isso em parte é verdade. Não é relativização da riqueza: é uma ampliação do conceito. Mas essa noção ampliada de riqueza não é totalmente estranha. Muitos pobres (no sentido de desprovidos de bens materiais e financeiros) de vez em quando respondem, quando se lhes pergunta como vão, que felizmente estão bem, ricos de saúde. O que Toffler está argumentando é que na Sociedade do Conhecimento, em que o conhecimento – não mais a terra, não mais o dinheiro, não mais os bens materiais – é a principal fonte de geração de riquezas, o próprio conceito de riqueza precisa ser revisitado. E, conseqüentemente, o conceito de pobreza.
O desejo, afirma Toffler, é, em última instância, a fonte primeira da riqueza – porque é o desejo que define aquilo de que precisamos ou que queremos. O desejo é a mãe da necessidade e do querer. Se riqueza é qualquer coisa que satisfaz nossas necessidades ou quereres, há uma relação estreita entre desejo e riqueza.
Aqui entra uma vertente interessante, porque o desejo é, como gostam de dizer os socializantes, em grande parte, construído socialmente. E sempre há, em qualquer momento da história, e em qualquer tipo de sociedade, os que se propõem gerenciar o desejo dos outros.
Aqui entra a famosa tese de Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. O que o Protestantismo promoveu, quando surgiu no cenário no século XVI, foi, de certo modo, a liberação do desejo.
O Catolicismo sempre foi crítico da riqueza e defensor da pobreza (material, financeira). Os padres, frades, monges fazem voto de pobreza. O Catolicismo sempre levou muito a sério a tese de que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. O Catolicismo colocou a usura entre os pecados capitais. E o Catolicismo procurou defender esse seu ideal de pobreza tentando gerenciar o desejo: promovendo o asceticismo, o anti-desejo. Para o Catolicismo, não é bom que tenhamos um número elevado de desejos – porque vamos tentar satisfazê-los e, assim, ficar ricos… Para o Catolicismo, o certo é suprimir o desejo. O homem ideal para o Católico é o que, no plano material, necessita de pouco, quer quase nada: o asceta, o monge que vive da esmola alheia… Pobreza franciscana — o conceito ainda está conosco.
Uma religião desse tipo é um desincentivo à geração de riqueza, porque inibe o desejo. A riqueza, nesse contexto, é mal vista, é considerada um empecilho à santidade, porque ela é fruto da liberação do desejo.
A propósito, o Catolicismo procurou gerenciar o desejo não só por bens materiais e por dinheiro, mas também pelo sexo. O mesmo padre, frade, monge que faz voto de pobreza, faz voto de castidade, se compromete a suprimir (ou sublimar) o seu desejo sexual. O padre e a madre, o frade e a freira, o monge e a monja, devem procurar se tornar assexuados – suprimir ao máximo, tanto quanto é possível, o desejo sexual. O Catolicismo reconhece que esse asceticismo sexual não é para muitos. Assim, não condena totalmente o sexo: apenas o confina aos limites estreitos do matrimônio, transformando em dogma o dito paulino (aparentemente um asceta sexual convicto depois de sua conversão) de que é melhor casar do que “abrasar-se”, isto é, consumir-se em desejo. No lindo filme “A Noviça Rebelde”, quando Fräulein se descobre totalmente apaixonada pelo Capitão von Trapp, a primeira reação é fugir, não é lutar pelo seu amor contra a insípida baronesa, sua rival. Maria, a noviça rebelde, volta ao convento. A madre superiora, digna sucessora de São Paulo, diz a ela que a vida assexuada não é para qualquer um, e que ela pode servir a Deus mesmo se casando com o Capitão… Gerenciamento do desejo. Se alguém não consegue suprimir ou reprimir o desejo, que o libere, mas confinando-o, disciplinadamente, aos limites do casamento. E, no casamento, o sexo não é para ser desfrutado como fonte de prazer: o sexo é apenas o cumprimento de um suposto dever conjugal, com vistas à execução do mandado divino de crescer, multiplicar, e popular a terra…
O asceticismo católico foi além. Como a Igreja era a detentora do saber, e se arvorava na única intérprete confiável das Escrituras e, por conseguinte, da vontade divina, o Catolicismo promoveu, por muito tempo, durante a Idade Média especialmente (mas até hoje, em muitos lugares), um asceticismo cultural, uma apologia da ignorância. Ninguém precisa saber ler, porque, primeiro, não vai entender nada, pois os escritos estão todos numa língua (o Latim) que não é a do povo, e, segundo, porque a Igreja está aí exatamente para dar a religião já “mastigada” para os fiéis, verdadeiros bebês intelectuais. O Catolicismo da Idade Média e da Renascença nunca se preocupou em traduzir a Bíblia para a língua do povo, em colocar material de leitura nas mãos do povo – porque o conhecimento, nesse caso, revelaria a fraude que era o sistema de relíquias, de indulgências, de contribuições dadas à Igreja, em dinheiro ou espécie, para remover almas do Purgatório, para livrar antepassados, mesmo remotos, do fogo do Inferno… Foi só depois da Reforma Protestante que, com sua Contra-Reforma, o Catolicismo começou a enfatizar a educação – mas ainda assim, uma educação que começava pela catequese – e, não raro, parava aí.
O Protestantismo liberou o desejo. E a liberação do desejo se deu no plano conceitual. Não é pecado desejar ter bens materiais. Não é pecado desejar conhecimento, querer saber e entender cada vez mais, mesmo daquelas coisas que o Catolicismo considerava mistérios. Não é pecado ter desejos sexuais. Tudo isso é legítimo, e, portanto, permitido, se praticado dentro dos princípios da moral cristã.
Liberando o desejo, o Protestantismo liberou a riqueza – não só no seu aspecto financeiro, material, mas também nos outros aspectos destacados por Toffler. O que o Protestantismo estava dizendo – e essa mensagem era verdadeiramente revolucionária no século XVI – é que a chave para a uma vida bem sucedida e feliz não é suprimir o desejo, mas satisfazê-lo – dentro, naturalmente, de um referencial moral adequado. Ao liberar o desejo, e, assim, a riqueza, o Protestantismo também lançou a raiz de uma nova moralidade. O importante, aqui, é perceber que o Protestantismo introduziu um novo sistema de gerenciamento do desejo.
Mas vamos por partes.
Primeiro, o Protestantismo condenou o asceticismo material, despecaminou a usúria, e, assim, liberou o desejo por bens financeiros e materiais. Dessa forma, engendrou as condições culturais que pariram o Capitalismo. Na verdade, em sua versão Calvinista, o Protestantismo colocou o sucesso material como um dos indicadores da eleição divina. O rico, na verdade, é abençoado por Deus com posses materiais e financeiras – e deve sempre procurar aumentar sua riqueza, desde que, naturalmente, ajude a promover a o Protestantismo. As missões surgiram daí: do investimento de gente rica interessada em apoiar a disseminação do Evangelho – em parte na esperança de que, fazendo isso, viria a ser mais abençoada materialmente ainda. O sucesso no plano material é indicativo de que Deus está do lado daquele indivíduo. Para o Protestantismo, a riqueza não é ruim, nem precisa ser vista como “neutra”. A riqueza é uma coisa boa, com a qual Deus recompensa aqueles que trabalham bastante e não são dados ao luxo ostentatório, que, na realidade, é um desperdício daquilo que Deus deu. Trabalho e vida frugal são a chave para o entendimento do Capitalismo.
(É interessante notar que o Protestantismo, ao condenar o luxo ostentatório, estava colocando um certo freio ao desejo… Não é pecado desejar dinheiro – mas é condenável transformar esse dinheiro em luxo ostentatório que, de certo modo, humilha a quem não o tem. O dinheiro ganho deve ser aplicado, reinvestido… Está aí a gênese do Capitalismo. É verdade que, ao tentar suprimir o desejo por bens materiais, o Protestantismo estava, de certo modo, dando um tiro no pé: o que alimenta a produção é o consumo, e, por conseguimente, é preciso fomentar o consumo. Aí está a gênese do marketing, da propaganda, da promoção do que se produz… Mas isso veio depois.)
Segundo, o Protestantismo condenou o asceticismo cultural. É essencial, já dizia Lutero, que o povo seja capaz de examinar as Escrituras por si próprio. Para isso, duas coisas são indispensáveis: primeiro, que haja escolas onde as crianças aprendam a ler e escrever em sua própria língua (para Lutero era o Alemão), e, segundo, que as Escrituras estejam traduzidas para a língua do povo. Lutero se ocupou de ambas as tarefas. A escola moderna é fruto do Protestantismo. E Lutero foi o primeiro a traduzir a Bíblia para a língua do povo. Sua tradução da Bíblia para o Alemão é ainda hoje uma referência. Para o Protestantismo, o conhecimento não é ruim, é bom. O desejo do conhecimento, do saber, do entendimento, é um desejo legítimo, que não deve ser suprimido ou reprimido: deve se promovido e realizado. E não apenas para um grupo restrito de iluminados, mas para todo mundo. E cada um, por mais simples e humilde, deve ser capaz de ler e interpretar as Escrituras por si só – “sob a inspiração do Espírito Santo”. Esse ato de desintermediação afastou, de pronto, a tese da Igreja Católica de que ela era a única mediadora do conhecimento para as massas. Para o Protestantismo, o leigo tem o direito de saber, de conhecer, de examinar e investigar por si próprio – para ver se aquilo que o padre, o frade, o monge, o pastor estão dizendo é verdade. Lutero tirou a controvérsia de dentro dos mosteiros e das faculdades de teologia e a colocou na rua: suas teses foram pregadas na porta da catedral – simbolicamente, do lado de fora, não de dentro.
Terceiro, o Protestantismo condenou o asceticismo sexual. O pastor pode e deve se casar. E, dentro do matrimônio, o sexo é liberado, não apenas para a procriação, mas pelo prazer e pela satisfação pessoal que ele traz. O Protestantismo, naturalmente, não liberou o sexo de forma geral, fora do casamento. Seria esperar demais. Mas o simples fato de ele afirmar, com todas as letras, que o sexo não é ruim, é bom, e que é algo para ser desfrutado sem vergonha, dentro do casamento, e não praticado escondido debaixo dos lençóis e no escuro, com o sentimento de quem está cumprindo um dever, e isso até por um ministro de Deus, esse simples fato já representou uma liberação significativa do desejo sexual – que, mais recentemente, foi grandemente expandida.
(Lembro-me aqui de um padre meio heterodoxo que havia em Campinas, o padre Milton Santana, da paróquia do Taquaral. Um dia fui assistir a um casamento na igreja dele – casamento de minha cunhada, pelo primeiro casamento, Teresinha. [A gente se separa da mulher, mas não da cunhada]. O Padre Milton, ao ler o texto bíblico da criação, que diz que “Deus viu que não era bom que o homem estivesse só”, fez um comentário lateral: “Notem que a Bíblia não diz que não é bom que o homem esteja só, exceto se ele for padre…”. Infelizmente, o padre Milton era minoria na Igreja Católica – continua sendo).
Enfim: o Protestantismo introduziu um novo sistema de gerenciamento do desejo – e, por conseguinte, um novo sistema de geração de riquezas, que culminou no Capitalismo. Não é de estranhar que, com poucas exceções, os países que enriqueceram mais rapidamente foram os países protestantes: Inglaterra, Estados Unidos, Suiça, Alemanha… Hoje outros países, católicos ou de religiões não cristãs, estão aprendendo a lição o que o Protestantismo ensinou ao mundo. Mas originalmente, a riqueza acompanhou os países de tradição protestante.
Diz Toffler (p.15):
“Obviamente, apenas a liberação e a promoção do desejo . . . não se traduzem, por si próprias, e automaticamente, em riqueza. Culturas que promovem o desejo e perseguem a riqueza não se tornam necessariamente ricas. Mas, por outro lado, culturas que pregam as virtudes da pobreza geralmente conseguem nada mais do que aquilo que exaltam”.
Pode parecer que tenhamos deixado de lado o conceito ampliado de riqueza sugerido por Toffler e nos limitado, como sempre, a um conceito de riqueza centrado nos bens financeiros e materiais. Mas isso não é verdade. A busca desimpedida do conhecimento e o desfrute de uma sexualidade saudável, não contaminada por complexos e repressões, são riquezas consideráveis, porque permitem que o desejo, expresso como necessidade ou como querer, alcance satisfação. O Protestantismo em geral tem recebido o devido crédito na área econômica, como o pai cultural do Capitalismo, mas tem não tem recebido o devido crédito na área da promoção do conhecimento e da sexualidade. Na verdade, em grande parte por causa do movimento puritano, surgido na Inglaterra e disseminado nas colônias inglesas na América, o Protestantismo tem sido considerado como um movimento retrógrado na esfera da sexualidade. É preciso resgatar a dimensão liberadora da sexualidade presente nas teses e, em parte, no comportamento dos reformadores, de que o sexo é bom, foi instituído por Deus, e que tem, entre as suas finalidades, o prazer.
Segundo Toffler, retomando os temas de seus livros anteriores – “Future Shock” (“Choque do Futuro”), de 1970, “The Third Wave” (“A Terceira Onda”), de 1980, e “Powershift” (“Mudança de Poder”), de 1990 – a humanidade conheceu, até recentemente, apenas dois grandes sistemas de criação de riqueza (correspondentes às suas duas primeiras ondas): o agrário e o industrial. Estamos vivendo hoje os primórdios do terceiro – e mais complexo – desses sistemas: aquele alicerçado no conhecimento – em que a riqueza deixa de ser exclusivamente financeira, material, e tangível, e passa a consistir, cada vez mais, de bens intangíveis: tempo, lazer, conhecimento, realização pessoal.
Nos próximos dias continuarei a explorar temas sugeridos pela leitura do livro do Toffler.
Ainda no vôo United 881, a 12 km de altura, em cima do Pacífico, já em 3 de maio de 2006.
(Em poucas horas meu neto Felipe completa dois dias de vida)
oi! muito bom seu comentario sobre o tofller…to fazendo um trabalho sobre a riqueza revolucionaria… par a discplina de glçobalizacao e relacoes internacioanais, e o seu tecto me ajudou bastante!
CurtirCurtir
Porque os países protestantes da Africa e os da América Latina Guiana, Jamaica não tiveram essa performance ?
CurtirCurtir
Pingback: Os Views dos Meus Artigos Aqui, « Liberal Space: Blog de Eduardo Chaves
Pingback: Top Posts of this Blog for all time ending 2014-04-14 (Summarized) « * * * In Defense of Freedom * * * Liberal Space