Orfandade

O meu post anterior foi sobre viuvez. Especialmente sobre a viuvez que existe quando alguém deixa de amar o cônjuge, mas, por alguma razão, não se separa dele… 

Este é sobre orfandade. Especialmente sobre a orfandade de pai ainda vivo. Da orfandade causada pela (real ou pretendida) morte do amor e do carinho pelo pai…

O anterior, eu o escrevi com a ajuda de Machado de Assis. Este eu escrevo com a ajuda da Danuza Leão, em sensível artigo publicado na Folha de hoje (20/09/2009), e transcrito adiante.

Ao lê-lo, pensei, naturalmente, no meu pai – e senti enorme saudade dele, com quem briguei muito na vida.

Mas pensei também, e principalmente, nos meus filhos. Hoje tenho dúvida de que, quando eu morrer, meus filhos venham a sentir saudade de mim desse jeito limpo e puro.

Nas piores brigas com meu pai, nunca deixei de amá-lo, nunca me julguei no direito de faltar-lhe com o devido respeito, nunca acreditei que podia ofendê-lo, atirar-lhe pedras…

Que eu me lembre, meu pai nunca me disse que me amava. Também não me lembro de ter sido acariciado por ele, nem mesmo quando criança. Acho que o presente mais caro que ele me deu foi uma caneta Parker 51, quando entrei no Ginásio, passando o concorrido Exame de Admissão do Américo Brasiliense em Santo André (1955). Ele era franco, sisudo, severo, duro nas palavras. Mesmo quando ele ficou dois anos sem falar comigo, depois de me dizer, no auge de uma discussão sobre religião, que preferia que eu tivesse nascido morto a que eu realmente acreditasse naquilo que estava lhe dizendo – mesmo então, nunca tive dúvida de que, no fundo, ele me amava, e nunca imaginei que, ao dizer e fazer o que disse e fez, ele estivesse renunciando a mim. E nunca me passou pela cabeça dizer-lhe que, então, eu renunciava a minha condição de filho, que ele não era mais meu pai, e que dali para a frente eu seria órfão de pai vivo… 

É isso que me permite sentir uma saudade limpa e pura dele hoje.

Será que mudaram as gerações? Será que mudaram porque mudou o nosso jeito de educar os filhos?

Os filhos de hoje, se você lhes faz todas as vontades, é o melhor pai do mundo (testemunhado, muitas vezes, até mesmo publicamente, no Orkut). Mas se não lhes faz a vontade em um só quesito que seja, ou não lhes atende uma só das inúmeras solicitações de apoio financeiro que fazem, eles removem o testemunho que haviam dado no Orkut, declaram para quem quiser ouvir que você não é mais pai deles, e não têm o menor escrúpulo de desrespeitar você grosseiramente, até mesmo com ofensas sérias, achando-se no direito de criticar não só as suas ações, mas  as suas convicções, os seus valores, o seu caráter, como se eles fossem sumidades intelectuais e autoridades morais, e você, pobre coitado, um burro insensível, imoral, cheio de falhas de todos os tipos, que só sabe fazer besteira na vida…

De um tipo assim não se sentirá saudade, quando ele não estiver mais aqui.

Ou será que sim?

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Folha de S. Paulo
20 de Setembro de 2009

DANUZA LEÃO
Lembrando de meu pai


E nos dizia que por amor uma mulher deve fazer tudo, pois nada é mais importante na vida


HOJE ACORDEI pensando em meu pai. Não é todos os dias que a gente se lembra dos que já se foram; e de alguns, quando a gente lembra, não dá para falar, porque ainda dói muito. Mas um dia você acorda lembrando de alguém que significou muito na sua vida, mas que na época você não sabia, só foi saber depois.

Não sou muito de datas, mas durante anos lembrei do dia do seu aniversário, do dia de sua morte; o tempo foi passando e fui aos poucos me esquecendo desses dias. E pensando bem, lembrar dele no dia do seu aniversário, da sua morte, não tem nenhuma importância. Tanto não tem que hoje, que não tem nada a ver com essas datas, acordei lembrando muito dele.
Desde que éramos pequenas, volta e meia eu e minha irmã ouvíamos nosso pai falar, um pouco brincando, um pouco a sério: "vocês não me dão valor, não escutam o que eu digo, um dia vocês vão ver que eu tinha razão". É claro que entrava por um ouvido e saía pelo outro, e ele, felizmente, não percebia.

Talvez depois que as pessoas morrem tenhamos uma tendência a idealizá-las, e é exatamente o que sinto pelo meu pai. Mais do que uma questão de inteligência, ele teve, desde cedo, o dom de saber o que era a vida; sem ilusões, guardando mesmo assim um lado muito poético dentro dele. O que, aliás, nos confundia muito. Quando falava no amor, era de um lirismo total; quando ainda jovem, foi eleito Príncipe dos Poetas Capixabas, teve seus poemas publicados em Vitória, onde morávamos, e tinha até o físico de um poeta -um pouco no gênero Castro Alves. E nos dizia que por amor uma mulher deve fazer tudo, pois nada é mais importante na vida.

Mas veja como era complicado ser sua filha: logo que me casei, não existiam telefones no Rio. Ou você comprava -e era um bem que se declarava no Imposto de Renda- ou se conseguia por meio de pistolão. Como meu marido era dono de um jornal, não foi difícil conseguir um, e meu pai disse logo que o telefone tinha que ser no meu nome, pois se alguma coisa acontecesse, tipo o casamento não dar certo, o telefone seria meu. Ora, como compreender um pai com posições tão diferentes? Quando pedi que ele me explicasse como poderia me dar conselhos tão opostos, ele sem nenhuma paciência, disse "ah, mas será que vocês não entendem? Mas não faz mal, um dia vocês vão entender". Como ele tinha razão.

Era como se ele tivesse nascido sabendo onde a vida nos ia levar, como se tivesse o dom de prever o futuro; por experiência ou um dom muito especial e raro, sabia onde iríamos parar com nossas escolhas, nossos casamentos, nossos amores. E bem que tentou nos explicar como é a vida, mostrando que em circunstâncias exatamente iguais, uma hora se deve agir de um jeito, na outra de outro jeito, mas isso é difícil de explicar -e de entender. Talvez por saber demais, a vida para ele foi muito pesada.

Ah, meu pai sabia das coisas. O que eu não daria para sair hoje com ele para almoçar, comermos aquela moqueca de lagosta de que ele gostava tanto e falar de tudo que aconteceu em todos esses anos, depois que ele se foi.

Do quanto ele tinha razão em tudo que me dizia; que saudade de você, meu pai.

danuza.leao@uol.com.br

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Em Salto, 20 de Setembro de 2009

Uma resposta

  1. Palavras de muita sensibilidade, Eduardo.A saudade é algo que deve ser eternamente conservado e transmitido – de geração a geração. Seu significado, suas implicações, seus sujeitos e objetos. A fórmula de mantê-la é como você explicitou: o amor!

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