A Folha de S. Paulo lança hoje, através do seu Caderno + (Mais), um debate interessante em cima da questão da corrupção.
O debate vai, naturalmente, além da questão da corrupção em si e de sua percepção pelos brasileiros, e envolve uma discussão interessante, não só de legislação anti-corrupção e de medidas jurídicas e políticas para impedir e punir a corrupção, mas, também, de questões morais e éticas importantes. Os textos, em seu conjunto, são um excelente livro-texto para um curso, de Ética.
Transcrevi alguns dos artigos aqui, abaixo, numa ordem diferente da em que apareceram no jornal. Começo com os que são mais genericamente filosóficos. Deixo para o fim os textos com menor densidade filosófica, mas que discutem questões interessantes, como, por exemplo:
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O brasileiro admite ser menos corrupto do que é na realidade?
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Os mais ricos admitem ser mais corruptos do que os mais pobres?
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Ou será que os mais ricos admitem mais corrupção porque a praticam mais?).
Deixo de fora os textos que apenas mostram como tanta gente paga propina no Brasil, ou como é fácil, em São Paulo, tirar um documento totalmente falso para alguém que nunca existiu.
Pretendo, no futuro, a essa coletânea de textos para debater alguns dos temas temas.
Mas já levanto algumas questões:
a) Corrupção é algo que se dá exclusivamente na esfera público-governamental? Por exemplo:
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Parece claramente ser corrupção quando um funcionário ou agente público deixa de levar o público em conta para privilegiar o privado, em interesse próprio?
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Será também corrupção quando uma ONG usa dinheiro recebido do governo (ou mesmo recebido em doação de pessoas físicas e jurídicas privadas) para finalidades alheias àquelas para as qual foi o dinheiro foi solicitado?
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Será também corrupção quando uma igreja usa o dinheiro de ofertas dadas incondicionalmente para, digamos, comprar um avião que vai ajudar os líderes a fazer o seu trabalho – ou para comprar uma rede de televisão que ajuda a expandir o alcance da igreja?
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Será também corrupção quando um executivo desfalca a empresa (privada) que representa ou dirige, ou seria este caso apenas um roubo comum cometido por alguém que estava em posição privilegiada?
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Será, por fim, corrupção pagar alguém para guardar lugar para a gente na fila do INSS, ou passar em sinal vermelho tarde da noite quando a rua está deserta, ou rodar pelo acostamento em congestionamento?
b) Corrupção é um problema exclusivamente legal-jurídico-político ou é um problema também ético-moral? Certamente há muitas ações que consideramos moralmente erradas (e alguns gostariam de coibir pela lei) e outras que consideramos certas (e alguns gostariam de tornar legalmente obrigatórias), que nenhuma lei proíbe ou torna mandatórias. Mentir é uma ação geralmente considerada errada, do ponto de vista moral. Mas mentir, em condições normais, não é crime. Mentir só se torna crime naquelas situações (que envolvem o que normalmente se chama de “falsidade ideológica”) em que a lei exige que o cidadão diga a verdade. Um funcionário público que mente, com o intuito de enganar, para um jornalista está comentendo alguma sorte de corrupção? (Estou pressupondo que não haja nenhuma lei que exige que um funcionário público diga a verdade para a imprensa). É verdade que um Presidente da República que mente para o público, através da imprensa, e depois se constata que de fato mentiu, deliberadamente, pode perder a confiança do público – pelo menos de parte dele. Clinton mentiu até mesmo em juizo sobre Barbara Lewinsky. Mentira em juizo é perjúrio, e, portanto, crime. Mas se tivesse mentido apenas para os jornalistas, seria cabível considerá-lo corrupto e tentar impedi-lo de continuar no cargo?
c) O texto de Hélio Schwartsman levanta a questão dos principais tipos de teoria ética: deontologismo (com sua ênfase no dever) e conseqüencialismo (tipo de teoria do qual o utilitarismo é o principal expoente). O debate entre esses dois tipos de teoria pode ser discutido em resposta à seguinte pergunta: Há como considerar imoral uma ação que não faz mal a ninguém, que não tem nenhuma conseqüência nociva? Há como considerar imoral uma ação que apenas faz bem? Mentir para a Gestapo, durante a Segunda Guerra, negando ter visto judeus na vizinhança (quando se sabe até mesmo onde eles estão), é imoral? Mentir para um doente terminal, dizendo que há esperança de cura (quando se sabe que não há), é imoral, se a conseqüência é benéfica para o paciente? Para o deontologista, como Kant, mentir é sempre errado, em quaisquer circunstâncias, porque estamos vinculados a um imperativo categório que nos impõe o dever de sempre dizer a verdade, irrespectivamente das circunstâncias… Para o conseqüencialista, são as conseqüencias que determinam o que é certo ou errado. Mas, nesse caso, uma ação que não faz mal a ninguém nunca pode ser considerada imoral.
Está posta a questão. Convido o debate.
Eis os textos da Folha.
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Folha de S. Paulo
4 de Outubro de 2009
Paradoxos morais
Complexidade inerente às escolhas éticas ajuda a entender por que brasileiros ao mesmo tempo se dizem ciosos das leis e reconhecem praticar desvios
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Setenta e quatro por cento dos brasileiros declaram sempre obedecer às leis, mesmo que isso possa custar-lhes uma boa oportunidade. Não obstante, 83% admitem já ter cometido pelo menos uma ação ilegítima, de um cardápio que traz desde sonegação de impostos até estacionar em fila dupla.
A conclusão mais óbvia é que há gente mentindo. Outra, menos flagrante e de maior interesse, é que o comportamento ético constitui uma característica que resiste a abordagens puramente racionais -daí nossa indisfarçável ambiguidade ao lidar com escolhas morais.
Numa simplificação grosseira da história da filosofia, existem duas matrizes de teorias éticas. A primeira, que podemos chamar de deontológica, tem como expoentes os sistemas de inspiração religiosa e Immanuel Kant (1724-1804).
Aqui, são as ações e os princípios em que elas se fundam que importam. Regras como “não matarás” ou “não mentirás” valem incondicionalmente, seja porque estão amparadas por Deus, pelo imperativo categórico ou outra entidade abstrata.
No polo oposto está o consequencialismo, cujos grandes defensores incluem Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-73). Basicamente eles dizem que não existem princípios externos que possam validar ou invalidar nossos atos. A única forma de julgá-los é por meio das consequências que produzem: são boas as ações que engendram bons resultados.
É da condição humana flutuar entre essas duas matrizes, já que, tomadas em suas formas puras, ambas parecem incapazes de dar respostas razoáveis para nossas “necessidades sociais”. A impossibilidade de mentir em qualquer caso preconizada por Kant me levaria, por exemplo, a revelar para um assassino onde sua próxima vítima se esconde.
Já o consequencialismo me obrigaria a aceitar como moralmente válido o ato do médico que mata o sujeito saudável para, com seus órgãos, salvar a vida de cinco pacientes que necessitavam de transplantes.
Na tentativa de estabilizar um pouco a situação, diferentes filósofos combinaram em diferentes proporções elementos deontológicos e consequencialistas. Os resultados, entretanto, sempre podem ser reduzidos a novas aporias.
Instinto moral
Mais recentemente, estudos éticos vêm recebendo apoio de outras ciências, como a psicologia e a biologia evolutiva. É nessa categoria que entra o trabalho de Marc Hauser consubstanciado no livro “Moral Minds” (Mentes Morais).
A tese da obra de Hauser é que a faculdade moral é um “instinto”. Não chega a ser um código penal, mas um conjunto de princípios elementares, comuns a toda a humanidade -coisas como não matar, não casar com a filha etc.-, e maleáveis o bastante para comportar variações culturais.
Tal instinto pode ser modulado pelas emoções, como sugeria David Hume [1711-76], e pela razão, como queria Kant. Não matamos o motoboy que arranca o espelhinho de nosso carro tanto porque a maioria de nós tem repulsa ao assassinato (emoção) como também por temermos as consequências legais do gesto (razão).
É principalmente na série de experimentos mentais conhecidos como “problema do trem” que Hauser busca apoio empírico a suas ideias.
Vamos a dois exemplos: Denise é passageira de um trem cujo maquinista desmaiou. A locomotiva desembestada vai atropelar cinco pessoas que caminham sobre a linha. Ela tem a opção de fazer com que o comboio mude de trilhos e, assim, atinja um único passante. Ela deve acionar a alavanca?
Cerca de 90% dos mais de 60 mil voluntários que responderam ao questionário de Hauser cederam à razão utilitária e disseram que sim. É melhor perder uma vida do que cinco.
Hauser então coloca uma variante do problema. Frank está sobre uma ponte e avista um trem prestes a abalroar cinco alegres caminhantes. Ao lado dele está um sujeito imenso, que, lançado sobre os trilhos, teria corpo para parar a locomotiva, salvando os passantes. Frank deve atirar o gordão?
Aqui, a maioria (90%) responde que não, embora, em termos racionais, a situação seja a mesma: sacrificar uma vida inocente em troca de cinco.
Hauser sustenta que nosso “software” moral opera com parâmetros como tipo de ação (se pessoal ou impessoal, direta ou indireta), consequências negativas e positivas e, principalmente, a intencionalidade. No fundo, o que difere a ação de Denise da de Frank é que o sacrifício do passante solitário é uma espécie de efeito colateral (ainda que antevisto) de uma ação que visava a salvar cinco pessoas. Já atirar o gordão é um ato intencional, um homicídio, ainda que por um bem maior.
É claro que o interesse pessoal também entra na conta. Se os cinco passantes são membros de minha família, vou hesitar menos antes de atirar o sujeito ponte abaixo. De modo análogo, serei capaz de encontrar razões “racionais” para justificar pecadilhos, por exemplo, de elisão fiscal: já dou muito dinheiro para o governo e vai tudo para a corrupção.
Decididamente, não é fácil ser humano.
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Do quanto somos (im)perfeitos
Desconfiança generalizada em relação a a outras pessoas contrasta com o elevado padrão moral assumido individualmente pelos brasileiros
RENATO LESSA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Acrer em números, parece ser mais seguro emprestar seu carro a um amigo filiado ao PMDB do que a outro pertencente às hostes petistas. Com efeito, 93% dos respondentes simpáticos ao PMDB acham moralmente errado avançar um sinal de trânsito (ou furar um semáforo, o que vem a ser mais ou menos a mesma coisa). O escore petista limita-se tão somente a magros e preocupantes 71%.
Já os apoiantes do PSDB são os mais tolerantes no que diz respeito a fornecer dados inverídicos para a Receita Federal. Isso a despeito -ou a propósito, sabe-se lá- da fúria fiscalista que o consulado de seu partido impôs ao país, no século passado.
Para além do pitoresco -inevitável em qualquer tentativa de varredura de atitudes e opiniões em meio à população heteróclita-, há matéria para reflexão. Para já, gostaria de considerar os seguintes aspectos: a definição conceitual de corrupção, os marcadores de ética e moralidade, os perfis de admissibilidade quanto a práticas ilícitas e a distinção entre autopercepção e avaliação pública.
O que é corrupção
Para 43% dos respondentes, o termo refere-se a um conjunto de práticas fixadas na esfera pública. Para 21%, corrupção está associada a comportamentos individuais -levar vantagem, traição, deslealdade etc.
Um terceiro conjunto, de 19%, associa o conceito a “roubar bens/dinheiro”.
Quando questionados a respeito de que instituições concentram com maior ênfase práticas corruptas, os respondentes elegem os poderes Executivo e Legislativo, federal e estaduais. Há, contudo, alguma estratificação nessas respostas.
Quanto maior a escolaridade, maior a desconfiança institucional: o Poder Executivo federal é mencionado negativamente por 83% dos que possuem educação fundamental; aqueles com educação superior marcam 92%. A mesma progressão pode ser encontrada de acordo com variações da renda familiar e de classificação econômica.
Variações à parte, é possível dizer que a desconfiança é pesada e generalizada. Os campeões da pureza, tais como a Igreja Católica, as Forças Armadas e a imprensa, são julgados como corruptos por, respectivamente, 53%, 54% e 61% do total dos entrevistados.
Não é pouco. Ainda que algum viés de classe se manifeste na avaliação dos poderes públicos, a concentração das desconfianças gerais nesse âmbito parece reeditar o clássico juízo de Louis-Antoine-Léon Saint-Just: “Qualquer povo tem apenas um inimigo poderoso, e este é o governo”.
Marcadores de ética
Os entrevistados foram submetidos a uma bateria de 32 ações hipotéticas condenáveis [genéricas, acrescidas de cinco ações de políticos, policiais e outros servidores] para revelar a ordem de suas aversões éticas e morais. O resultado agregado da simulação é curioso: há um padrão generalizado de repulsa às ações hipotéticas, com algumas variações significativas.
Vejamos: os menos educados e mais pobres demonstram maior rigorismo moral em todos os quesitos. Trata-se de variação, contudo, que não agride a sensação de certa homogeneidade.
Há, ainda, marcadores mais finos. Dois deles podem ser licenciosamente designados como “kantianos”. O resultado não é de todo mau, mas um tanto desequilibrado: 74% concordam com a ideia de obediência à lei como algo superior ao interesse privado (adeptos de um imperativo categórico moral).
Já apenas 56% concordam com o diagnóstico de que as pessoas estão dispostas a “tirar vantagens” umas das outras (ou tomá-las como meios, e não como fins). O desenho revela assimetria entre autoavaliação e avaliação dos outros como sujeitos morais. A destacar, ainda, os mais velhos e a malta da classe D/E como antropologicamente mais otimistas.
Admissibilidade
Os entrevistados foram convidados a revelar admissibilidade -ou não- com relação a “práticas ilegítimas”. De forma mais agregada, 83% dos respondentes admitem tê-las cometido, em diferentes escalas de gravidade (leve, média e pesada).
Trata-se de aspecto importante, pois revela forte adesão ao “ilegítimo”, a despeito das respostas anteriores dotadas de maior rigorismo. Nada de errado com isso: não somos animais socráticos, para os quais o conhecimento do bem conduz necessariamente a seu cumprimento.
No entanto, há distinções importantes: quanto maiores os níveis de educação e de renda familiar e mais elevada a classificação econômica, maior a admissibilidade. Para uma imagem mais nítida, 93% dos que possuem educação superior admitem envolvimento; o escore cai para 74% para os que têm educação fundamental.
E mais: se tomarmos o envolvimento com práticas ilegítimas pesadas, os mais educados ganham dos menos educados por uma razão de 2,5; os de maior renda ganham dos de menor renda com uma razão de 4 e os de classe A/B ganham dos D/E por uma razão de 6,5.
Há algo aqui, ressalvada a insinceridade dos mais pobres.
Talvez uma pálida reedição de velha máxima de San Tiago Dantas, para horror dos demofóbicos: o povo enquanto povo é melhor do que a elite enquanto elite.
Assimetrias do mundo
Não ficamos de todo “mal na fita”. Mas há coisas curiosas. O alto padrão de admissibilidade evapora-se quando os entrevistados são submetidos a 39 perguntas sobre diversos ilícitos. O que emerge é uma população ordeira que, no pior dos casos, admite delitos leves: contrabando, compra de produtos piratas, colar em provas etc.
É espantoso ver que 94% dos respondentes jamais ofereceram dinheiro para agentes públicos que, para 87%, jamais o solicitaram. Assim como Nelson Rodrigues duvidava dos vídeos dos jogos, eu duvido desses números.
Mas, como disse, não ficamos mal na fita. Há uma generalizada e consistente presença de marcadores morais e éticos. A variabilidade não elimina a evidência de que o piso é alto. Cremos saber o que é a corrupção e onde e quando se apresenta. No mais, desconfiamos dos outros.
Com efeito, 82% das pessoas dizem não admitir mudar seu voto por dinheiro, embora 79% estejam certas de que os brasileiros em geral estão dispostos a fazê-lo. É evidente a assimetria, já antes apontada, entre autoavaliação ética e moral e expectativa do comportamento dos demais. Os “demais” -outras pessoas, o governo, os políticos etc.- parecem ser, afinal, sempre piores. Enfim, somos falíveis e desconfiados, pero no assustadores.
RENATO LESSA é professor de teoria e filosofia política no Iuperj e na Universidade Federal Fluminense e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje.
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Mais ricos assumem mais ilicitudes
Índices dos que estudaram mais e ganham mais são maiores do que números dos que têm menor escolaridade e renda
DA REDAÇÃO
Os mais ricos, mais escolarizados, mais jovens e os que moram nas regiões Norte e Centro-Oeste foram os que admitiram mais fortemente ter cometido alguma prática ilegítima, de acordo com a pesquisa Datafolha.
Dos entrevistados, 83% reconheceram ter cometido alguma irregularidade. Destes, 7% assumiram ter cometido 11 ou mais das 37 propostas na pesquisa e foram classificados como infratores graves ou pesados; 28% disseram ter cometido entre cinco e dez atos ilegítimos e são infratores médios; 49% reconheceram quatro ou menos atos desse porte e são os infratores leves.
Entre os mais ricos, 97% reconheceram ter cometidos atos ilegítimos, sendo, desses, 17% infratores graves, 42% médios e 37% leves. Entre os mais pobres, 76% afirmaram ter praticado ilicitudes, sendo 4% graves, 19% médias e 54% leves. O reconhecimento de infrações aumenta conforme cresce o rendimento do declarante. Entre os que ganham de 2 a 5 salários mínimos, a taxa é de 87% e, entre os que ganham de 5 a 10 mínimos, é de 95%.
Na estratificação por escolaridade, a admissão de ilicitudes chega a 93% entre os de nível superior, a 91% entre os de nível médio e a 74% entre os que têm o ensino fundamental.
Os jovens são os que mais assumem suas infrações: 93% entre 16 e 24 anos, 91% entre 25 e 34 anos, 82% entre 35 e 44 anos, 80% entre 45 e 59 anos e 59% entre os mais velhos.
No Norte/Centro-Oeste, a taxa é de 90%, contra 85% no Sudeste, 81% no Nordeste e 77% no Sul. Nas capitais, as taxas ficam em 87%, contra 81% no interior.
Por religião, os espíritas são os que assumem mais erros (97%), contra 82% dos evangélicos e 81% dos católicos. Entre os que se dizem sem religião, 92% admitiram ter cometido infrações. Neste grupo, estão os que mais assumiram faltas pesadas, com taxa de 12%.
Na divisão por sexo, 86% dos homens admitiram faltas, contra 80% das mulheres; 11% deles assumem faltas graves, contra 3% delas.
A taxa dos que admitem ilicitudes entre os que estão empregados ou trabalham é de 87%, 12 pontos acima dos 75% que estão desempregados ou não trabalham.
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A Escandinávia é aqui
Capacidade de discernimento e alta “consciência ética” reveladas pela pesquisa não dão ao brasileiro o benefício da dúvida, “apenas o peso da responsabilidade”, diz antropóloga
LÍVIA BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Corrupção não é apenas tema de política, de polícia e de Justiça. É, também, um tema de cultura no sentido antropológico do termo. Diz respeito aos limites e às fronteiras classificatórias que as diferentes sociedades estabelecem entre as ações humanas e suas respectivas avaliações sobre estas. Isso nos leva diretamente a questões de moral e ética, pois ambas implicam teorizações e julgamentos sobre formas de se comportar.
A pesquisa Datafolha apresenta um vasto panorama do que nós, brasileiros, pensamos sobre corrupção e comportamentos éticos e moralmente corretos, além do que afirmamos fazer em diferentes situações.
O que de imediato nos salta à vista, a partir das respostas dadas, é a clareza que os brasileiros possuem sobre o que é ético e moralmente correto e sobre o que vem a ser corrupção. Apesar das profundas desigualdades econômicas e sociais que transpassam nossa sociedade, os brasileiros de diferentes faixas etárias, de gênero e de renda, níveis de escolaridade e filiações partidárias pensam igual e “corretamente” a respeito desses temas. Em um total de 37 perguntas, que variam entre pagar para obter uma carteira de motorista até oferecer uma caixinha por fora, passando por falsificação de documentos, 18 alcançaram taxas de pelo menos 90% de respostas iguais entre todos os grupos, algumas atingindo a marca de 97%; 13 ficaram entre 80% e 89% de concordância e 6 tiveram respostas que variaram entre 63% e 79%.
Deve-se ressaltar que essas taxas correspondem a respostas “absolutamente certas” do ponto de vista ético e moral no contexto cultural das sociedades contemporâneas e estabelecem uma clara distinção entre o público e o privado, classificando como “errada” a transgressão destas fronteiras.
As perguntas que obtiveram as porcentagens mais baixas tratam de “infrações” que podem ser consideradas “leves”, tais como comprar ingresso de cambistas e baixar música da internet, sinalizando para uma hierarquia moral entre os diferentes tipos de comportamento.
Quando os entrevistados são instados a responder sobre o próprio comportamento, em 39 questões, o quadro não se altera. Por exemplo, 94% dos respondentes afirmam que nunca falsificaram carteira de estudante para pagar meia-entrada, 70% nunca avançaram o sinal vermelho e 83% nunca pararam o carro em fila dupla.
Respostas “absolutamente certas”, proclamaria entusiasticamente qualquer apresentador de programa de TV de perguntas e respostas.
Contradição
Os dados sugerem a seguinte conclusão: ou vivemos na Escandinávia e não sabíamos e, portanto, devemos comemorar; ou o que fazemos na prática corresponde pouco ao que dizemos que fazemos e pensamos que deveria ser feito.
Consideremos os seguintes dados, entre outros que poderiam ser apresentados: a sonegação pode chegar a até R$ 200 bilhões anuais, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário; por causa da pirataria, 2 milhões de empregos formais deixam de ser criados, segundo a Frente Parlamentar contra a Pirataria; o Brasil está no 72º lugar entre 180 países em termos de corrupção, de acordo com a Transparência Internacional; ocorreram nada menos do que 225 escândalos políticos desde a década de 1980, todos devidamente esquecidos e arquivados no nosso imaginário e talvez na Justiça. Evidentemente, portanto, não estamos na Escandinávia.
Sobra-nos, assim, a espinhosa opção de admitirmos que nosso comportamento concreto conflita com as representações que fazemos de nós mesmos. Como, segundo as respostas dadas, sabemos discernir com clareza o que é ou não corrupção, o que é ética e moralmente correto independentemente do nosso grau de escolaridade, renda, de gênero e partido político, não temos sequer o benefício da dúvida, apenas o peso da responsabilidade.
Responsabilidade sobre o que fazemos e quem escolhemos para nos representar, que só aumenta quando imaginamos que políticos, servidores públicos e policiais -as figuras que mais povoam o imaginário da corrupção- não nasceram de chocadeira, não caíram de paraquedas em suas funções nem são de outro planeta.
Ao contrário, representam uma parte do que somos e provavelmente como muitos de nós se comportariam caso estivessem naquela posição, relativizando o próprio comportamento, transformando corrupção em favor, neutralizando a impessoalidade no trato da coisa pública e a meritocracia em favor do nepotismo.
Para quem pensa que corrupção e falta de ética são preocupações menores, não custa lembrar que elas matam como arma de fogo. É verdade que o sangue não escorre nas filas do INSS como no asfalto das grandes cidades.
As vidas se apagam silenciosamente e o branco do colarinho não traz as marcas do crime cometido. Mesmo liberados, por nossas autoridades máximas, a nos comportar como aqueles pegos com dólares na cueca e com caixa dois, com a justificativa de que “todos fazem”, isso em nada diminui nossas contradições nem nossa responsabilidade.
LÍVIA BARBOSA é antropóloga, diretora de pesquisa da ESPM e autora de “O Jeitinho Brasileiro” (ed. Campus).
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Corrupção é epidemia global
Levantamentos indicam percepção de ilícitos semelhante em outros países e sensação de que políticas públicas fracassam no combate à prática, que pode ser minimizada, mas não abolida
MARCOS FERNANDES
GONÇALVES DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
É comum, no Brasil, as pessoas acharem que o país está entre os mais corruptos do mundo ou até mesmo, no nível do puro senso comum, que o Brasil “é o país mais corrupto do mundo”. Há também uma sensação disseminada de que nossas instituições são corruptas. A falta de informação sobre o tema, combinada com certa dose de ceticismo, baseado este, infelizmente, em ocorrências reais e lamentáveis na história recente, levam o brasileiro a acreditar em tais mitos.
Todavia, temos que lidar com fatos, com dados empíricos para trabalhar qualquer questão social e política. O que os dados e pesquisas, então, indicam sobre a corrupção, sua percepção e seus aparentes danos sobre as instituições em outros países? Mostram que neste quesito não estamos sós e a verdade está lá fora, qual seja, a corrupção é uma epidemia social.
Existem várias fontes de dados confiáveis para fazer uma avaliação de corrupção comparada entre países.
Duas delas são o “Barômetro da Corrupção Global” (GCB), desenvolvido anualmente pela Transparência Internacional (TI, ONG transnacional de combate à corrupção), e o Banco Mundial, com o banco de dados de governança e ações anticorrupção.
A primeira fonte de dados é desenvolvida com base em amostras estatisticamente robustas, confiáveis, de pessoas comuns, que relataram suas percepções e experiências com corrupção numa amostra atual de 73.132 indivíduos, envolvendo 69 países diversos em termos de nível de desenvolvimento, por exemplo Rússia, Dinamarca, Estados Unidos, Turquia, Islândia, Croácia, Líbano, Uganda, Argentina e Paquistão.
A segunda está calcada em pesquisas mais aprofundadas que relacionam reforma do Estado, governo eletrônico, estruturas de governança e impactos da corrupção.
Observa-se que a cobrança de propinas, especialmente associadas à “pequena corrupção” (suborno de servidores como policial, contínuo e fiscal, com quantias pequenas), é endêmica nos países estudados. Há dados que indicam um aumento da cobrança de propinas pequenas em 10% com relação a pesquisas passadas.
Há ainda uma percepção generalizada de que as políticas de combate à corrupção realmente não funcionam.
Esse ponto é importante, pois relata indiretamente uma descrença na lei, nas instituições formais do Estado e nos aparelhos de controle e fiscalização (e de investigação e punição).
Descrédito
É significativo a este respeito o caso da Coreia do Sul, onde 81% da amostra da população não acredita nas políticas de combate à corrupção em todos os níveis, da pequena corrupção à “grande corrupção”, aquela ligada ao financiamento de campanhas, partidos políticos e ao poder político de fato. O caso argentino é semelhante: 81% não acreditam que se farão políticas de combate à corrupção. Em Israel, 87% não acreditam nas ações de governo para o combate à corrupção.
Esses dados possuem um viés, é claro. Nesses países, recentes escândalos de corrupção podem ter moldado a percepção e as crenças das pessoas.
Mas os dados são consistentes ao longo dos anos.
Em segundo lugar, a crise de 2008 aparentemente aumentou a desconfiança nas corporações. De fato, desde a fraude da [companhia norte-americana] Enron, prenúncio de uma crise moral do capitalismo, a confiança das pessoas, em vários países, nas corporações (as principais instituições do capitalismo) despencou.
Há um dado novo revelado pelo GCB 2009: os indivíduos entrevistados declaram em massa que, como consumidores, dariam um “prêmio” para empresas de boa conduta. Aparentemente, a tendência de o consumidor rastrear a cadeia de produção considerando aspectos sociais e de sustentabilidade chega, digamos, à “sustentabilidade moral”.
Em terceiro lugar, as percepções sobre as instituições formais (partidos, Estado, polícia etc.) continuam negativas e isso é devidamente quantificado. Aqui a questão é interessante, pois o Brasil não é tão diferente de outros países, sejam mais ricos ou pobres, desenvolvidos ou subdesenvolvidos ou emergentes de grande porte (Índia e Rússia -não há dados para a China).
Na Índia, por exemplo, 58% da população considera os políticos entre os agentes públicos mais corruptos.
As pesquisas do Banco Mundial apontam para o mesmo problema: a corrupção mina a crença nas instituições formais. As pesquisas e estudos de caso mostram soluções para o problema. Mas as soluções devem se basear em premissas básicas sobre o comportamento humano.
Pesquisas em neuroeconomia, neuroética, ética experimental e psicologia moral indicam que, infelizmente, na média, as pessoas corroboram o ditado: “Todo mundo tem seu preço”.
O desenho prático de qualquer política de combate à corrupção deve levar em conta o que as ciências comportamentais têm a dizer sobre nós mesmos e como as regras devem ser construídas para que o jogo social se desenrole de forma a minimizar algo que sempre existiu: a corrupção.
MARCOS FERNANDES GONÇALVES DA SILVA é economista e coordenador do Centro de Estudos dos Processos de Decisão da Fundação Getulio Vargas.
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Em Salto, 4 de Outubro de 2009
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