No final do segundo texto de Ferreira Gullar, citado na postagem anterior, ele toca em mais um assunto instigante. Diz ele, no último parágrafo do artigo de 21/3/2010 na Folha de S. Paulo:
“Por coincidência, naquele mesmo domingo em que abordei aqui este assunto, um jornal do Rio publicou uma entrevista com Marina Abramovic, artista performática que está se exibindo no MoMa. Um dos principais elementos de sua exibição são mulheres e homens nus. Ela fez questão de explicar que não se trata de teatro, "onde tudo é mentira, pois os atores fingem que são personagens e o sangue é tinta vermelha". Já na performance, é tudo verdade, tudo é real: se houver sangue, é sangue mesmo. E assim ela confirma o que afirmei sobre a arte contemporânea que, ao contrário do que a arte sempre fez, não cria nada: mostra o real. Ou seja, o que já conhecemos e não nos basta. Em matéria de nus mostrados em museus, prefiro o Davi, de Michelangelo, ou a Vênus de Cnido, que, em vez de me constrangerem, me deslumbram.”
Ele sugere aqui a arte não só deve provocar emoções em nós, mas que essas emoções devem ser do tipo certo (a definir). Em outras palavras: algo que nos provoca constrangimento (com ver no palco um bando de homens e mulheres nus), ou pior, algo que nos causa nojo e vergonha, não seria arte – porque o sentimento, no caso, não é do tipo que a arte deve provocar.
Para Ferreira Gullar, um dos sentimentos que a arte deve evocar é deslumbramento.
A Adriana Portella Hollenbeck, em um comentário, no Facebook, ao meu post anterior, concordou:
“Eu gosto da palavra DESLUMBRAMENTO, que ele sabiamente usa. O que deslumbra as pessoas varia muito, mas me custa acreditar que ainda que atinjam seu objetivo muitas das obras contemporâneas venham a deslumbrar quem quer que seja. Podem transmitir a mensagem que for e vão fazer parte da categoria ARTE por motivos diversos. Daí a me causarem deslumbramento, há uma distância enorme. Chorei sozinha em Nova York, parada feito besta olhando pra Noite Estrelada. Mesmo choro do Quarto Amarelo em Chicago, mesmo choro dos primeiros Monets vistos no Rio. Posso até chorar com as fotografias das penitenciárias, mas o choro é outro e não faz bem. Subverter e/para enriquecer são outros conceitos interessantes. Os que não se permitem subverter não entendem de arte alguma. Para eles sobra a arte de quarto de hotel, repetidas gravuras, impressas infinitas vezes. Mortas.”
Respondi no Facebook:
“Não gosto muito do termo deslumbramento, não (ele traduz o que em Inglês?). Para mim deslumbramento tem um sentido um pouquinho pejorativo — sugere que a pessoa está impressionada por algo que não justificaria a impressão que causa. "Ela está deslumbrada por ter sido indicada para o Oscar", por exemplo. Encanta-me a emoção que a arte pode produzir – a capacidade de me fazer chorar, rir, sentir sentimentos bonitos e nobres, sentir raiva, ódio, tudo no momnto apropriado. A arte é uma forma consciente e deliberada de manipular nossas emoções. Mas é uma manipulação consentida, e, por isso, legítima. Leio o livro porque quero; vejo o filme porque quero… A emoção é uma "emoção racional", porque quem produz o objeto de arte em regra sabe que vai provocá-la e trabalha, coerente e conscientemente, para o fazer. Não me lembro de ter sentido esse tipo de emoção profunda, entretanto, observando um quadro ou uma escultura. Não creio que jamais tenha chorado vendo um quadro ou uma escultura (embora haja muitos que admire). Nem mesmo ficado tão impactado por um quadro ou uma escultura que uma sensação profunda tenha permanecido comigo por algum tempo depois. A arte que especialmente me toca e encanta (encantamento [enchantment], talvez seja um termo melhor do que deslumbramento) é a literatura. Para mim, a palavra, a narrativa, o texto são capazes de produzir mais emoção do que qualquer imagem ou efeito visual. É verdade que o cinema fica numa área intermediária entre o texto, a literatura e a imagem, o visual. Junta os dois numa narrativa audiovisual. Mas o cinema sem a palavra (ainda que escrita, como na época do cinema mudo) não seria grande coisa (IMHO). ‘No princípio era a palavra…’ (‘en archè ên ho lógos…’).”
Seria possível acordo quanto às seguintes teses?
a) A arte está diretamente relacionada à produção ou evocação de emoções;
b) Não é qualquer emoção que vale, mas apenas determinados tipos de emoção (a definir mais precisamente);
c) A emoção que a arte produz ou evoca provavelmente estava presente no artista que criou a obra de arte, embora indivisivelmente misturada com a racionalidade requerida para fazer com que a obra de arte produzisse / evocasse a mesma emoção nos outros;
d) O tipo de emoção de que se trata é algo próximo do encantamento, do deslumbramento, da fascinação, da reverência [“awe”] diante do belo;
e) A modalidade de arte que é capaz de produzir esse tipo de emoção varia muito de indivíduo para indivíduo, uns sendo encantados mais pelas artes visuais do que pelas artes que exigem o uso da palavra.
Aproveito para tocar num outro assunto, que sempre me causa irritação.
Ayn Rand, em um de seus “Horror Files”, conta uma história verídica, passada em um museu cuja identificação não vem ao caso, em uma manhã qualquer. Ao abrir o museu, o diretor ou curador ou responsável constatou o desaparecimento de uma escultura. Nenhuma busca a localizou. No interrogamento dos empregados, o homem responsável pela limpeza durante a noite admitiu ter jogado fora a escultura – por pensar que era lixo e nunca imaginar que pudesse ser arte.
Admito, sem vergonha e constrangimento, que nunca fui à Bienal de São Paulo – e nunca pretendo ir. O que já li sobre ela é que me leva a essa conclusão. Exemplo de “obras de arte” já exibidas lá: um vaso de plantas reais adubado por estrume artificial ao lado de um vaso de plantas artificiais adubado por estrume real. Recuso-me a ir a qualquer tipo de exibição que considere isso arte. É lixo. Se fosse a pessoa responsável pela limpeza do local durante a noite, jogaria a arte fora (a privada seria um local adequado para dar sumiço à coisa).
Esse não é o único exemplo que poderia citar. Há muitos outros. Mas esse, para mim, é paradigmático do que é a falsificação da arte.
Por fim, um ponto que já discuti muito com a Adriana no passado. Embora a arte eminentemente realista de alguns pintores seja quase indiferenciável de uma fotografia, é arte porque produz, em quem a contempla, essa emoção de encantamento ou deslumbramento que alguém seja capaz de tal grau de competência que produz uma pintura que leva muitos a considerarem como fotografia. A fotografia realista, em si, não me parece arte – embora não hesite em considerar arte alguns tipos de fotografia.
Muito assunto para discussão. E não nos esqueçamos da controvérsia entre Monteiro Lobato e Anita Malfatti… Aproveito para transcrever um texto elucidativo, embora não concorde muito com ele. Sou fã do Lobato, inclusive nessa briga… (embora até minha mulher brigue comigo por causa disso!).
———-
http://www.urutagua.uem.br//007/07vale.htm
Resumo
O artigo investiga o porquê de o escritor e crítico Monteiro Lobato ter atacado violentamente a pintora expressionista Anita Malfatti em seu artigo "Paranóia ou mistificação?", por ocasião da exposição individual da artista em 1917. O fato teve grande repercussão e serviu como um dos motivos que levaram os jovens modernistas a organizarem a Semana de Arte Moderna no teatro Municipal de São Paulo, em 1922. Parece que o motivo foi pessoal, afinal, Lobato também queria ser um grande pintor.
Palavras-chave: arte, moderno, crítica
Abstract:
This article researches why the writer and critic Monteiro Lobato has raided hardly on the expressionist painter Anita Malfatti in his article called "Paranoia and mystification?" by her individual exhibition in 1917. That fact resulted in a great repercussion and it was one of reasons for the young modernists organized the Modern Art Week at Municipal Theater of São Paulo, in 1922. It seems the reason was personal, because Lobato also wanted to be a great painter.
Key-words: art, modern, criticism
O presente artigo tem sua origem a partir das seguintes indagações: "O que levou Monteiro Lobato a falar tão mal da obra de Anita Malfatti? Ele entendia de arte a ponto de fazer tal crítica?" É importante relembrar o ocorrido, pois trata de um episódio importantíssimo para a cultura brasileira: o estopim do Modernismo.
É claro que Monteiro Lobato, no ápice de sua erudição e no cargo que exercia no tradicional e respeitável jornal O Estado de São Paulo, tinha plenas condições de exercer a função de crítico; até porque, na época, um jornalista se fazia por talento ao lidar com as palavras, e não simplesmente porque possuía um diploma do curso de jornalismo.[1] Em seu artigo "Paranóia ou mistificação? A propósito da Exposição Malfatti", publicado em 20 de dezembro de 1917 – fato que, paradoxalmente, imortalizaria a obra da artista – Lobato declara sua total preferência pela arte clássica:
"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processo clássicos dos grandes mestres. (…)"
Na seqüência dessa afirmação, Lobato cita, entre outros, Praxíteles, Rafael, Rembrandt, Rubens, Rodin, como modelos a serem seguidos, revelando razoável conhecimento de História da Arte. Mas é assim imediatamente definida por ele a outra "espécie de artista":
"formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. (…)"
Seu repúdio às novas tendências artísticas, as chamadas Vanguardas Européias – fonte da técnica desenvolvida por Anita – , fica claro nesses trechos:
"Essas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia."
e mais:
"Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. (…) Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador."
Essa "arte efêmera" à qual se refere Monteiro Lobato era, em seu artigo, considerada fruto ou de paranóia ou de mistificação, tal qual se encontram desenhos desconexos nas paredes dos manicômios. Talvez essa tenha sido a maior ofensa para Anita: ter sido chamada, mesmo que indiretamente, de louca, psicótica, possuidora de um "cérebro transtornado". Nem mesmo alguns elogios ao seu talento serviram para aplacar a ofensa, porque há momentos em que Lobato se rende ao seu talento: Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum; mas logo aponta o aspecto caricatural de sua obra: Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama de arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
Embora os trechos aqui transcritos não dêem a dimensão real das palavras que provocaram a reação de desolamento de Anita, ainda assim, convém investigar os reais motivos que levaram o escritor Monteiro Lobato a ser tão ríspido em sua crítica, o que resultou em um trauma que ela carregou para o resto de sua vida.
Encontrei parte da resposta nos estudos de Mário da Silva Brito[2], um incansável pesquisador do Modernismo brasileiro, que compilou importantes documentos da época.
Primeiramente, é preciso ficar claro que o conjunto das obras de Anita, expostas no salão da Rua Líbero Badaró, 111, assustou também aos próprios familiares e amigos próximos da pintora e, principalmente, ao então diretor do jornal o Estado de São Paulo, Nestor Pestana. E foi este quem encomendou a Lobato a crítica. Ao que foi relatado em depoimento a Paulo Duarte, Nestor Pestana, amigo pessoal da família de Anita, depositava nela grande expectativa. Contudo, frustrado com o que vira na exposição, em virtude de seu extremo conservadorismo, teria confiado ao articulista Monteiro Lobato, a crítica em tom de "pito"[3], aproveitando-se do fato de Monteiro Lobato, apesar de jovem, ser "velho de sensibilidade"[4]
Foi o casamento perfeito entre o desgosto de Pestana e a hostilidade de Lobato às estéticas modernas. Segundo Mário da Silva Brito, o conhecimento de Lobato acerca de arte limitava-se às lições acadêmicas e tradicionais. Sérgio Milliet, notável modernista, anota que a crítica de Lobato se baseia na concepção primária de uma pintura fotográfica, numa escultura naturalística, o que se origina por certo da ingênua convicção dum progresso contínuo, na superioridade de nossa civilização ocidental sobre as demais.[5]
Silva Brito ainda relembra-nos de que o tom mordaz de Lobato está mais para a caçoada do que para sátira. Lobato confessara em vários contos e artigos que suas "observações zombeteiras" não passavam de vinganças pessoais. Mas o que haveria de vingança pessoal no caso Malfatti? Eis a descoberta que pode completar a resposta às nossas indagações iniciais: Monteiro Lobato, além de escritor e jornalista, era também pintor, ou como diz Silva Brito, "queria ser pintor", tanto que a primeira edição de sua obra Urupês teve ilustração por seu próprio punho. Na verdade, era um pintor com traços acadêmicos, tradicionais mas que, apesar disso, não atingiu o êxito no campo das artes plásticas, o que resultaria no seguinte comentário de Menotti del Picchia[6]: Lobato é um grande contista com fama de mau pintor.[7] Assim sendo, parece ser consenso entre alguns de seus contemporâneos que Lobato, além de defender um estilo abraçado convictamente, alimentava um certo "despeito"[8] pelo sucesso de novos talentos, e em particular, os modernos.
Todavia, há quem defenda essa postura de Lobato, entendendo que sua crítica era proveniente de sua formação positivista, determinista e liberal (Cf. PENTEADO, 1997), oriunda de leituras fundamentais para sua formação ainda na Faculdade de Direito de São Paulo, dentre elas Spinoza, Fichte, Hegel, Voltaire, Taine, Spencer, Darwin e Nietzsche. Isso justifica seu repúdio à "influência estrangeira exacerbada", por meio da crítica aos "ismos" importados (CAMARGOS, 1999). A autora ainda pondera sobre Lobato:
"Na verdade, para ele, o artista brasileiro não se encontrava suficientemente amadurecido para apreender criticamente os modelos artísticos das vanguardas européias. E, sem esse amadurecimento, corria o sério risco de cair no imitativismo puro e simples." (Idem, p. 135)
O criador do símbolo nacionalista desprovido de idealizações românticas, a personagem Jeca Tatu, tinha uma convicção nacionalista voltada para uma realidade à qual as elites davam as costas. Nesse afã de buscar a verdadeira identidade nacional, sem influências estrangeiras, longe das cidades litorâneas como o Rio de Janeiro ou próximas ao litoral, como São Paulo, Lobato voltou-se para o interior. A partir disso, Lobato passou a defender a idéia de que a modernidade era o progresso, o saneamento, o acesso à educação e à cultura, não a reprodução de movimentos artísticos europeus, que ele considerava apenas modismos passageiros. Por outro lado, o grupo de modernistas tinha uma preocupação similar, contudo sem repudiar a influência estrangeira européia, nem a influência negra, nem a indígena, como é possível notarmos na antropofagia oswaldiana, tão bem articulada em Macunaíma, de Mário de Andrade, e tão bem sintetizada na obra de Tarsila do Amaral.
A diferença entre Lobato e os modernistas é de questão formal, como assevera Antônio Cândido (1985:120):
"No campo da pesquisa formal os modernistas vão inspirar-se em parte, de maneira algo desordenada, nas correntes de vanguarda na França e na Itália" (…) aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro."
Eis o ponto de divergência entre a modernidade de Lobato e a dos modernistas: a forma de expressão. Se a preocupação desses dois pólos era eminentemente o Brasil, sua identidade, sua nacionalidade, seu povo e sua língua, eles seguiam por caminhos distintos. Lobato era a favor de uma forma, no que tange à pintura, tradicionalista. As novas formas de expressão vindas dos emergentes artistas europeus agradavam àqueles que queriam, por meio de uma nova linguagem nas artes visuais e na literatura, fazer repensar o Brasil de um novo século, inserindo-o num mundo que valorizava cada vez mais a velocidade e a mecanização crescente. Ao contrário disso, a opção e a opinião de Lobato ficaram claras em seu artigo. E assim estava instaurada a polêmica que teve como ponto nevrálgico a obra da jovem e sensível Anita.
Embora o nome de Anita Malfatti tenha entrado para a história do Modernismo por causa desse episódio, tudo isso representou para ela, enquanto artista e também enquanto mulher – não podemos nos esquecer de que somente nessa época é que os nomes femininos começavam a adentrar um campo anteriormente quase que exclusivo dos homens – além do enorme choque psicológico, um grande prejuízo material: quadros já vendidos foram devolvidos e aulas de pintura foram canceladas. Apesar de tudo, Malfatti não parou de pintar, apenas recuou às suas lições acadêmicas anteriores: paisagens e naturezas mortas, ainda que impregnadas de ímpetos impressionistas.
Em conferência proferida por Anita na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 25 de outubro de 1951, a artista desabafa:
"Em São Paulo, as exposições individuais, grandes e pequenas, já surgiam então sem interrupção. Muitos artistas como Pedro Alexandre, Almeida Júnior e Benedito Calixto não representavam surpresa alguma."[9]
A pintora ainda relembra a exposição de Lasar Segall, pintor com fortes traços expressionistas, realizada em 1913, sob a tutela do senador Freitas Valle, que em nenhum momento causou qualquer tipo de estremecimento no meio artístico e cultural da época (Cf. AMARAL, 1979:73). Quanto a esse fato, Mário de Andrade, contudo, afirmou que "a presença do moço expressionista era por demais prematura para que a arte brasileira, então em plena unanimidade acadêmica, se fecundasse com ela."[10]
Mas nem tudo foi desolação para Anita. Ela recebeu apoio incondicional dos modernistas, em especial de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade. Este, por sinal, foi o único que realizou uma defesa por escrito à crítica de Lobato. Assim, Oswald, como colunista do Jornal do Comércio, contrapôs-se à noção de paranóia propagada por Lobato:
"Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e de sua maneira, a vibrante artista não temeu levantar com seus cinqüenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. (…) A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia. (…) e a nós deu uma das mais profundas impressões da boa arte."[11]
O posicionamento de Oswald, num caminho inverso de Lobato, torna-se explicável à medida que sua postura era de luta pela renovação artística, atuando como divulgador de uma estética nova, completamente dissociada dos padrões pré-estabelecidos. Além disso, sua atuação não tem como ponto de partida uma transformação social, embora não se despoje disso, como é possível verificarmos nas palavras de Lúcia Helena (1985:32):
"Sua luta pela renovação artística, principalmente no ângulo em que ele se apresenta como representante maior de nossa arte alegórica, compreendendo que a arte não é uma forma imediata, mas dialetizada, de transformação social, e de que sua finalidade não é a "salvação das massas", isso também o coloca na postura dos que saudavelmente ampliam, para além das sofisticadas (ou, na maioria dos casos, infelizmente, grosseiras) teorias do reflexo, a compreensão das relações entre a arte e o social-político."
Já Mário de Andrade, embora não tenha escrito nada de imediato, deu seu ombro amigo, seu apoio pessoal e, por meio das cartas que trocaram, é possível notar o imenso carinho que havia entre eles. Esse carinho todo despertou uma secreta paixão em Anita por Mário, mas que nunca teria uma definição por parte dele. Ainda assim, mais tarde, em 30 de maio de 1942, em conferência proferida no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no Rio de Janeiro, Mário fez sobre ela uma defesa pública, indagando:
o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra, vinha nos mostrar quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o "Homem Amarelo", "A Estudanta Russa", "A Mulher de Cabelos Verdes". [12]
E em particular, a respeito de "Homem amarelo"[13] e "A estudanta russa", comentou Mário de Andrade: são quadros cheios dessa disponibilidade para o sofrimento que os sensitivos corajosos descobrem nas sombras projetadas à luz pelos seres e elementos.[14]
O fato é que Anita foi realmente audaciosa e que, no conjunto da vida e da obra, o seu fraquejar diante da dura crítica não apagou o legado deixado pelo ímpeto criativo revelado em obras como as que causaram a grande querela da exposição de 1917. Quanto a Lobato, embora jamais tenha conseguido adentrar o mundo das artes como pintor, deixou também inegável conjunto de obras para a literatura brasileira.
O aspecto irônico desse episódio é que, talvez sem a crítica de Lobato, o Modernismo brasileiro não tivesse acontecido, pelo menos naquele momento e da maneira como aconteceu. Nenhum movimento que envolva a arte moderna se deu de maneira tranqüila, sem impacto, sem sustos e sem choques. A aceitação da estética moderna no Brasil aconteceu paulatinamente ao longo do século XX, e teve seu ápice quando o mundo adentrava a fase pós-moderna. E ambos, tanto Monteiro Lobato, quanto Anita Malfatti deram sua contribuição para a construção da modernidade, cada um a seu modo.
_________________
Referências bibliográficas:
AMARAL, Aracy. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1979.
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins Fontes, 1974.
CAMARGOS, Márcia Mascarenhas. "Duas leituras de Lobato nos anos 20", Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Nº 52, pp. 135-138, 1999.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 7ª ed., São Paulo: Nacional, 1985.
HELENA, Lúcia. Oswald de Andrade e o Modernismo. In: Escrita e poder. Rio de Janeiro: Cátedra, Brasília: INL, 1985.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 23ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1978.
PENTEADO, José Robert Whitaker. Os filhos de Lobato. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997.
SILVA BRITO, Mário da. História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Fontes iconográficas:
Fig. 1 – Rua Líbero Badaró – www.prolam.sp.gov.br/dph/spimagem/spimag16.htm
Fig. 2 – "Lalive" – www.cyberartes.com.br/edicoes/126/artista.asp
Fig. 3 – "O homem amarelo" – www.baixadafacil.com.br/artesine/index-3.shtml
Fig. 4 – "A estudanta russa" – www.pitoresco.com.br/anita/anita27.htm
[1] O curso de jornalismo foi implantado oficialmente, no Brasil, somente em 1943 pelo Decreto-lei nº 5480, de 13 de maio de 1943, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas e pelo ministro da educação Gustavo Capanema.
[2] Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978
[3] Mário da Silva Brito, op. cit., p. 56.
[4] Depoimento a Sérgio Milliet, para o Diário Crítico, volume 4, São Paulo, Martins Fontes, 1947, p. 53.
[5] Sérgio Milliet, op. cit., p.54
[6] Nem por isso essa crítica de Menotti de Picchia gerou algum tipo de ressentimento; pelo menos é o que se pode observar em carta enviada ao então presidente da Academia Brasileira de Letras, Múcio Leão, em 14/10/1944, recusando um convite à cadeira que pertencera a Alcides Maya: "(…) Do fundo do coração agradeço a generosa iniciativa; em especial agradeço a Cassiano Ricardo e Menotti o sincero empenho demonstrado em me darem tamanha prova de estima." In: Urupês, 1978, s/p.
[7] Menotti Del Picchia, "Uma palestra de arte", Correio Paulistano, de 29/11/1920. Apud. Mário da Silva Brito, op. cit., p. 58.
[8] Cf. Mário da Silva Brito, op. cit., p.57.
[9] In: "A chegada da arte moderna no Brasil", conferência de Anita Malfatti na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 25/10/1951. In: Conferências de 51, p. 31, Apud. Aracy Amaral, 1979, p.72.
[10] In: Mário da Silva Brito, op. cit., p.42.
[11] Oswald de Andrade. "A Exposição Anita Malfatti", in: "Jornal do Comércio", edição de São Paulo, 11/01/1918. Apud Mário da Silva Brito, op. cit. p. 61.
[12] Mário de Andrade. "O movimento modernista". Aspectos da literatura brasileira, São Paulo, Martins Fontes, 1974, p.232.
[13] O referido quadro foi adquirido por Mário de Andrade na inauguração da Semana de Arte Moderna. Cf. Confer. cit., p. 31. Apud. Aracy Amaral, op. cit., p.93.
[14] Mário de Andrade, "A manhã", Suplemento de S. Paulo, de 31/7/1926. Apud Mário da Silva Brito, op. cit., p. 65
©Copyright 2001/2005 – Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar do Centro de Estudos Sobre Intolerância – Maurício Tragtenberg
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Av. Colombo, 5790 – Campus Universitário
87020-900 – Maringá/PR – Brasil – Email: rev-urutagua@uem.br
———-
Em São Paulo, 22 de Março de 2010
Pingback: Os Views dos Meus Artigos Aqui, « Liberal Space: Blog de Eduardo Chaves
Pingback: Top Posts of this Blog for all time ending 2014-04-14 with number of views « * * * In Defense of Freedom * * * Liberal Space