Sobre a arte de desaprender

Está terminando o congresso de que eu vim participar aqui em Lincolnville, perto de Northport, perto de Camden, perto (2h de distância) de Portland, em Maine. Um dos lugares mais bonitos que eu já tive o privilégio de visitar, no alto de um morro, vendo uma baía do Atlântico que é toda sinuosa e cheia de volteios, dando a impressão de ser mais um conjunto de lagos do que parte do mar. O ambiente é agreste. Coelhos, esquilos, tâmias (chipmunks), tartarugas estão por todo lugar. À noite, no chalé, escuto um monte de piados, miados e chiados que nunca escutei.

O congresso foi sobre "1:1 Computing"Um Computador por Aluno, ou, Um Computador por Criança. Ou, como eu prefiro, “Anytime, Anywhere Learning” (que é o nome da fundação que organizou o evento, comandada por meu amigo Bruce Dixon, educador australiano). Conheço o Bruce desde 2003. Na verdade, lembro-me do dia que nos vimos pela primeira vez: 31 de Março de 2003, no Opus Hotel, em Vancouver, Canada. Quem nos aproximou foi o Greg Butler, também educador, também australiano, meu amigo há mais tempo (desde 2000) e do Bruce há muito mais tempo.

Ao me convidar para o congresso o Bruce especificamente me solicitou que fosse um provocador, um perturbador da ordem, um fator desestabilizador, alguém que tira os participantes de sua zona de conforto. Fiz um pouco disso nos dois primeiros dias do congresso, mas hoje, no painel final, deixei de lado os slides que havia preparado e falei extemporaneamente, na base da “inspiração do Espírito”. Teve gente que adorou, mas teve também quem não gostou.

Meu primeiro ponto foi o seguinte. Parti de uma afirmação feita pelo Bruce em um congresso anterior de que participamos juntos. Disse ele que o pior cenário possível, na área de tecnologia aplicada à educação, seria a gente conseguir colocar um computador nas mãos de cada aluno, e a educação continuar do mesmo jeito que antes, não mudando nada em termos de conceito, visão, teoria e prática (englobando visão de educação e conceito de aprendizagem, teoria e prática de currículo, metodologia, e avaliação, bem como novos ambientes de aprendizagem, nova forma de gestão, etc.). Um cenário como o contemplado pelo Bruce é, para a educação escolar, pior do que um cenário em que os alunos não têm computador. A MENOS QUE os alunos possam levar os computadores para casa e usá-los em seu tempo extra-escolar – para qualquer finalidade que lhes seja de interesse, porque daí eles estarão aprendendo, não-formal e extra-escolarmente.

Esse o meu primeiro ponto.

Meu segundo ponto foi o seguinte. Todo mundo na área de tecnologia aplicada à educação fala sobre a necessidade de mudanças na educação escolar e vai além: afirma que não bastam mudanças parciais, incrementais, graduais, reformadoras, evolutivas – as mudanças precisam totais, sistêmicas, em paralelo, transformadoras, revolucionárias. E todo mundo afirma que essas reformas, que mudam o paradigma, e vão levar a educação escolar para além do modelo industrial, são urgentes…

No fundo, todos nós sabemos que é verdade o que diz Jay Allard:

“Para mudar o mundo, precisamos imaginá-lo diferente do que é hoje. Se, nessa visão, usarmos muito do conhecimento e da experiência que nos trouxeram até aqui, terminaremos exatamente onde começamos… Para ter um resultado diferente, temos de olhar as coisas de uma perspectiva radicalmente diferente.” (J Allard, Ex-Vice-Presidente da Microsoft, Business Week, 4 Dez 2006, p.64).

No entanto, quando se vê o que os proponentes de mudanças transformadoras na educação pretendem fazer, quase nada é radical e a mudança total, sistêmica, etc. passa longe. O paradigma continua o mesmo.

Ou vejamos.

Exemplo 1.

Todo mundo diz que o professor será o “gateway”, o portão de entrada, para a nova educação e insiste que, antes de tudo, precisamos criar novos programas de desenvolvimento profissional para professores, para que eles consigam transformar a escola atual em uma escola diferente. Mas quem garante que a escola do futuro, transformada, terá professores, como os conhecemos? Na realidade, quem garante que a educação do futuro terá escolas, como as conhecemos? Ivan Illitch vinha, já há muito tempo, insistindo na desescolarização da sociedade. E ele propôs isso muito antes de a tecnologia transformar a nossa sociedade em uma sociedade da informação, do conhecimento, da aprendizagem – na verdade, em uma sociedade aprendente (learning society).

Exemplo 2.

Todo mundo fala na necessidade de desenvolver “conteúdo digital” para que os alunos do futuro tenham materiais com os quais trabalhar através de suas maquininhas. Mas na maior parte dos casos o conteúdo digital não passa do mesmíssimo conteúdo dos nossos livros impressos atuais, só que em formato eletrônico, às vezes até digitalizado. É apenas para isso que serve a tecnologia digital, para que a gente leia na tela o que antes lia em papel?

Exemplo 3.

Os “smartboards” são anunciados como tecnologia da escola do futuro. Será que alguém realmente acredita que lousas digitais vão transformar radicalmente a educação? Afinal de contas, elas ainda são lousas! E para que serve uma lousa quando cada um tem um computador?

Em suma: não somos radicais o suficiente em nossa imaginação da escola do futuro.

Esse o meu segundo ponto.

Meu terceiro ponto foi o seguinte. Existe bastante observação pessoal, evidência de pesquisa, e argumento racional que comprova a tese de que as crianças (e os adultos talvez ainda mais) aprendem a maior parte das coisas que sabem, e que sabem fazer, e virtualmente a totalidade das coisas realmente importantes que precisam saber e saber fazer, sem que alguém as ensine (como professores ensinam as coisas na escola).

Uma criança pequena, nos primeiros meses, aprende a reconhecer padrões sofisticados de natureza visual e auditiva que lhe permitem reconhecer o rosto e a voz de seus pais, irmãos, demais parentes, e amigos próximos. Como ela aprende a fazer isso ninguém sabe, mas que ela aprende, aprende. E essa é uma competência importantíssima na vida: reconhecer padrões que nos permitem identificar a identidade dos outros por sua face e por sua voz. E ela a desenvolve sem que ninguém a ensine.

Uma criança pequena, no primeiro ano de vida, aprende a se equilibrar nas duas pernas e a andar, e, em pouco tempo mais, está correndo, saltando, subindo escadas, virando piruetas, etc. E ela aprende a fazer isso sem que ninguém a ensine.

Talvez o maior feito de aprendizagem de uma criança a pequena é aprender a reconhecer e a usar a linguagem. Ela aprende primeiro que determinados sons têm significado, e, logo depois, aprende a emitir esses sons com o significado certo. Leva algum tempo para que uma criança consiga dominar os músculos da face, especialmente os da boca e da língua, para emitir os sons de forma clara e precisa, e para que ela desenvolva um vocabulário que lhe permita se comunicar sem maiores problemas com colegas e com adultos. Mas ao final do seu quarto ano ela está bastante apta nesse mister. E aprende a usar a linguagem sem que ninguém a ensine.

Algumas crianças até conseguem se alfabetizar, lá pelos cinco anos, logo depois de dominar o básico da linguagem oral, sem que ninguém as ensine.

Alguém contesta isso? É inegável que a criança aprende tudo isso porque vive em sociedade, tem ajuda técnica e apoio emocional da família, etc. Mas quem aprende é ela, e o que a família faz não é ensinar em nenhum sentido que se assemelhe ao sentido de ensinar no contexto escolar. A família apóia e incentiva e, no que pode, facilita o seu aprendizado.

Imaginemos como alguém ensinaria uma criança a andar da maneira que se ensinam outras coisas na escola. Andar é um processo complexo, diria o professor, pois requerer força física nas pernas, equilíbrio e movimento através do espaço. Para andar, é preciso primeiro desenvolver a musculatura das pernas, para que elas possam sustentar o resto do corpo. Vamos fazer alguns exercícios para fortalecer, primeiro a perna direita, depois a esquerda. Agora vamos praticar o equilíbrio. Equilíbrio é um conceito interessante… [E assim vai]. Uma vez alcançado o equilíbrio, é preciso aprender a se movimentar, sem cair ao solo. Isso se faz deslocando o peso do corpo, primeiro, para uma perna, liberando a outra. Isso feito, a outra é levantada do solo e movida na direção em que se deseja andar. Isso feito, transfere-se o peso do corpo para a perna que acabou de ser movida, libera-se a outra, e faz-se a mesma coisa com a perna que havia ficado para trás, fazendo com que, no movimento, ela vá além da posição em que se encontra a primeira perna movimentada. Vamos praticar isso. Muito bem. Na aula que vem vamos discutir como o cérebro dá comandos para que transfiramos o peso do corpo para uma perna, para que levantemos uma perna, para que a movamos na direção desejada, etc. Esse é um assunto muito interessante. Mas para discutir isso teremos um professor convidado, especializado em neuropsicologia.

Será que a gente aprenderia a andar desse jeito?

Vou poupar os leitores de uma descrição semelhante de uma aula para ensinar a criança a falar… John Holt uma vez disse que se ensinássemos as crianças a falar, da mesma forma que ensinamos outras coisas na escolas, elas nunca aprenderiam…

Sugata Mitra, hoje da Universidade de New Castle, na Inglaterra, provou (quando ainda morava na Índia) que crianças indianas pobres, de 6 a 12 anos, aprenderam a usar o computador sem nenhum ensino. Tem provado muito mais, na mesma direção, desde então. Procurem na Internet o seu nome e o seu experimento original: “The Hole in the Wall”. Ele estava presente no congresso e fez uma palestra impressionante.

Seymour Papert, que também esteve no Congresso, e conversou por mais de uma hora com Sugata, uma vez escreveu que o necessário, nos dias atuais, em que as mudanças acontecem de forma extremamente rápida, não é conseguir que as crianças aprendam a fazer o que lhes foi ensinado. Quando elas forem fazer isso, provavelmente as circunstâncias já mudaram tanto que ninguém está interessado naquilo que elas aprenderam fazer. (Alguma empresa contrata alguém hoje porque tem letra bonita, porque sua caligrafia é boa?). O que é preciso é que as crianças aprendam a fazer o que não lhes foi ensinado, diz Papert. E ninguém sabe como lhes ensinar a fazer o que não lhes foi ensinado… Elas têm de aprender por si próprias, sem que alguém as ensine!

Angus King (ex-governador de Maine, que estava no Congresso) nos chamou a atenção para o fato de que a tecnologia não só está destruindo os limites de espaço e tempo que definem a escola atual, ela também está destruindo a estrutura de pessoal significativo na aprendizagem dos alunos. Quebrando as paredes e os muros da escola, quebrando o horário rígido da atividade escolar, criando a possibilidade de “anytime, anywhere learning”, a tecnologia colocou – na realidade, recolocou – à disposição da aprendizagem das crianças uma multidão de pessoas competentes, interessantes, motivadas, dispostas a ajudar os outros a aprender, começando com os pais e o restante da família imediata, passando pela comunidade mais próxima, e indo ao extremo de incluir os especialistas de qualquer parte do mundo.

Oscar Wilde uma vez disse que as coisas mais importantes da vida aprendemos sem que ninguém nos ensine (pelo menos da forma que se ensinam coisas na escola). Aprendemos a fazer amizades, a nos relacionar uns com os outros, a amar, a fazer amor, a assumir o comprimisso de ter e cuidar dos filhos, etc., sem que ninguém nos ensine da forma que a escola ensina outras coisas. Oscar Wilde não estava no congresso. E não conheceu a Internet…

Nesse contexto, meu ponto foi: por que não levamos isso a sério? Por que continuamos a pensar em construir escolas físicas parecidas com as que já temos? Por que continuamos a recrutar professores mal preparados, pagá-los mal (porque não sabem exercer o ofício), torná-los desmotivados, e, daí, termos a necessidade de, interminavelmente, tentar prepará-los em serviço?

Por que não nos dedicamos a criar novos ambientes de aprendizagem, ricos em oportunidades de aprendizagem mediada pela tecnologia, flexíveis para acomodar as diferenças individuais e os interesses e talentos de cada um? Por que não pensamos em algo radicalmente novo?

Por que não preparamos pessoas para atuar no apoio à aprendizagem das crianças, especializadas, umas em dar atenção e apoio emocional às crianças, outras em colocar desafios interessantes para elas, outras em ajudá-las a inventar desafios ainda mais interessantes, outras capazes de levar as crianças a explorar os seus potenciais, outras que a ajudem a encontrar as informações de que necessitam, outras que as ajudem a entender as informações que encontrem, outras que as orientem na escolha de um projeto de vida e nas competências que vão precisar ter para transformá-lo em realidade… Quantas funções nobres. E nenhuma delas envolve simplesmente transmitir informações às crianças ou lhes dar passo-a-passos que lhes permitem fazer coisas. Isso elas gostam de obter e fazer por si próprias…

Esse o meu terceiro ponto.

No conjunto, houve quem gostou, houve quem não gostou. Isso não me incomoda. O que me incomoda é que alguns continuaram a discutir algumas questões do congresso como se eu não houvesse dito nada.

Papert mais uma vez tem uma frase precisa e “to the point”. “Mudanças fundamentais ou melhorias incrementais… O problema não está tanto definir qual a opção certa. O problema está em por que não se discute a questão.”

Talvez a resposta esteja no fato de que mudança radical implica perdas, e perdas, mesmo daquilo que estamos convencidos de que precisa ser perdido, produzem dor, sofrimento, angústia, agonia.

Desaprender é, freqüentemente, muito mais difícil do que aprender.

Adquirimos nossas crenças, nossos hábitos, nossos costumes, muitas vezes de forma rápida, num processo semelhante ao de conversão. Converter-se é relativamente fácil. Desconverter-se, muito difícil – e bem mais doloroso.

Mas quando crenças e hábitos ficam arraigados em nós, tão arraigados que parece impossível viver sem eles, porque eles de certo modo definem a nossa natureza, paramos de aprender.

Para aprender o novo, precisamos, freqüentemente, desaprender  o velho.

Em Lincolnville / Northport, ME, 16 de Junho de 2010

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