Educação e Felicidade

Artigo que publiquei em 19/07/2011 no Blog das Editoras Ática e Scipione, no endereço http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/educacao-e-felicidade.

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As competências não cognitivas, como a sensibilidade, as emoções, a criatividade, os valores e as atitudes não parecem relevantes ao trabalho pedagógico realizado na escola convencional.

Nos mais de 30 anos em que fui professor de Filosofia da Educação para as primeiranistas do curso de Pedagogia da Unicamp (95% dos alunos eram mulheres), fiz um levantamento com as minhas turmas sobre possíveis objetivos para a escola. O levantamento foi adaptado de algo que fazia meu colega Morris J. Weinberger, daUniversidade de Bowling Green, em Ohio. Vi o levantamento quando ele passou um ano sabático na Unicamp, em meados da década de 70 (acho que em 1976).

O levantamento listava 20 possíveis objetivos para a escola de Educação Básica e pedia que as alunas hierarquizassem individualmente esses objetivos segundo sua preferência, depois de discutir durante cerca de 30 minutos com as colegas. Aquele que fosse o principal objetivo da escola ficaria em primeiro lugar na resposta do aluno – e, claro, o objetivo colocado em vigésimo lugar não seria algo que a escola devesse perseguir, na opinião de quem estivesse respondendo ao levantamento. Na sequência, fazia-se a média da classe.

Estes são alguns dos possíveis objetivos listados para a escola:

  • “Ensinar o aluno a pensar criticamente”;
  • “Contribuir para que os alunos alcancem autonomia na vida”;
  • “Ajudar o aluno a se conscientizar dos problemas sociais e a aprender a lutar por uma sociedade melhor e mais justa”;
  • “Conseguir que o aluno assimile bem os conhecimentos apresentados e obtenha bom rendimento nas provas”;
  • “Contribuir para que o aluno possa entrar numa boa universidade e oportunamente arranjar um bom emprego”.

“Ajudar os alunos a alcançar a felicidade” sempre apareceu em penúltimo lugar nas respostas de minhas alunas. Só perdia para o objetivo que aparecia consistentemente em último lugar: “Ajudar os alunos a alcançar sucesso financeiro (enriquecer)”.

Vou deixar a questão do enriquecimento de fora. No tocante à felicidade, porém, considero essa consistente colocação em penúltimo lugar do objetivo relacionado à felicidade uma aberração muito séria. Uso o termo conscientemente. E me indago, sem encontrar uma resposta clara, acerca do que teria levado as alunas a essa aberração.

A educação, quando entendida como um processo mediante o qual nos desenvolvemos como seres humanos, tem que ver com a construção de capacidades que tornam possível que:

  • Sonhemos nossos próprios sonhos;
  • Transformemos nossos sonhos em projeto de vida consistente e defensável;
  • Realizemos esse projeto de vida, tornando-o “vida vivida”.

Quando conseguimos fazer isso, sentimo-nos realizados, bem-sucedidos na vida. Em outras palavras, sentimo-nos felizes. Logo, o principal objetivo da educação, entendida esta como processo de desenvolvimento humano, é que alcancemos a felicidade. O resto é meio.

Confesso que esse entendimento da educação e do desenvolvimento humano é derivado mais da cultura grega clássica do que da cultura cristã que dominou o Ocidente por tanto tempo. Por isso esse entendimento chega a soar um pouco pagão, talvez quase hedonista (embora em nenhum momento se faça referência a prazer). Esse entendimento parte do pressuposto de que o homem está aqui nesta Terra para conquistar, nesta vida, a felicidade, entendida como autorrealização, porque essa felicidade é sua por direito.

Os gregos tinham um conceito, representado pelo termo eudaimonia, que exprimia perfeitamente esse sentido da vida, para o qual a educação deveria decididamente contribuir: autorrealização. Para que alguém a alcance, afirmavam eles, precisa, acima de tudo, aprender a ser humano…

1.) Autoconhecimento
Para aprender a ser humano o homem precisa, primeiro, conhecer-se a si próprio. O autoconhecimento envolve a capacidade de identificar e reconhecer, em si próprio:

  • Os pontos fortes (strengths), ou talentos, e os pontos fracos (weaknesses), ou áreas a monitorar;
  • Os seus interesses, gostos, preferências, atitudes, paixões, valores, áreas de sentido ou importância especial;
  • O seu pertencimento a grupos significativos, como, por exemplo, a família, a vizinhança ou comunidade local, a comunidade dos amigos e colegas, os que partilham ideias religiosas, políticas ou filosóficas afins, a etnia, a nação, o continente, ou mesmo o planeta, que ajudam a dar sentido à vida.

2.) Criatividade
Criatividade é a capacidade de imaginar coisas que não existem e de encontrar formas de criá-las, de encontrar soluções novas e originais para problemas, recentes ou antigos, de encontrar problemas onde nenhum era visto etc.

3.) Tomada de decisão
A capacidade de tomar decisões envolve reconhecer situações que exigem uma escolha, identificar e avaliar as opções e alternativas, e selecionar a melhor alternativa com base em valores, interesses pessoais ou sociais e objetivos de vida.

4.) Gestão estratégica da vida
A capacidade de gerir estrategicamente a vida envolve a definição de um projeto de vida, incluindo aspectos pessoais, sociais e profissionais, além da determinação dos passos básicos necessários para transformá-lo em realidade.

5.) Construção da identidade
O processo de construção da identidade desemboca na capacidade de se ver e reconhecer como ser humano único e irrepetível e de respeitar e apreciar os demais seres humanos pelas semelhanças e diferenças que exibem em relação a si próprio.

6.) Busca de autorrealização
Por fim, tudo isso culmina com a autorrealização, que é a determinação de persistir sempre na tentativa de realizar o projeto de vida, vivendo de tal modo que se possa, um dia, fazer jus à sensação de ver seus objetivos alcançados, de ter cumprido seu dever consigo próprio, de ter alcançado sucesso, de ter vivido a vida em sua plenitude. A felicidade é isso.

A busca de autorrealização é compatível com dificuldades e mesmo fracassos em determinados pontos da jornada. Ela envolve a capacidade de perceber quando o projeto de vida definido precisa ter correções de rumo, ou ser até mesmo substituído, e de identificar as razões que tornam as mudanças necessárias, mas tudo isso sempre sem perder de vista que o fim principal do ser humano é se realizar nas múltiplas dimensões em que a vida se desdobra, e que incluem, pelo menos, a vida pessoal, social e profissional.

*

Isso posto, é preciso reconhecer que a escola, como a conhecemos, aquela que podemos chamar de escola convencional, não parece ter muito a ver com nossa felicidade. Pelo contrário. Muitos de nós nos sentimos entediados e frustrados na escola. A escola convencional organiza suas atividades em aulas, e aulas são quase universalmente consideradas coisa extremamente chata.

Gostaria de sugerir duas razões para esse estado de coisas:

Em primeiro lugar, a felicidade tem componentes cognitivos (como a consciência de que você conseguiu realizar o seu projeto de vida, que é a face racional do seu sonho), mas também tem componentes não cognitivos: a sensação de autorrealização, o sentimento de satisfação pelo sucesso alcançado, o prazer que advém do reconhecimento de que você viveu a vida que queria viver em sua plenitude.

A escola convencional, porém, só foca o cognitivo. E não foca nem mesmo as competências cognitivas, preferindo apenas encher as cabeças de seus alunos de informações e conhecimentos. Como disse uma vez Sir Ken Robinson, a escola parece pressupor que seus alunos só têm cabeça, não têm coração nem corpo… E quer fazer da cabeça de seus alunos, como um dia disse Rubem Alves, umas cabeçonas obesas, com pouca agilidade… (Professores universitários, segundo Sir Ken Robinson, parecem achar que o único uso relevante de seus corpos é levar sua cabeça a conferências e congressos…).

As competências não cognitivas, a sensibilidade, as emoções, a criatividade, os valores, as atitudes, nada disso parece relevante ao trabalho pedagógico que tem lugar na escola convencional.

Alain de Botton, filósofo suíço, disse em entrevista à Folha de S. Pauloem 16/7/2011:

‎”Se uma pessoa for a uma boa universidade, como Harvard, Oxford ou Cambridge, e pedir aconselhamento sobre moral, ou se disser que quer aprender como viver, vão encaminhá-la para uma instituição psiquiátrica. As universidades acreditam que todos somos adultos racionais, que precisamos apenas de informação e dados, não de ajuda.”

Essa citação sugere que a felicidade tem que ver com a realização de nosso projeto de vida. Para definir um projeto de vida e transformá-lo em realidade precisamos fazer escolhas e, como vimos em artigo anterior, escolhas têm que ver com valores. Valores são algo de que a escola foge como o diabo da cruz. A escola, sob uma pretensa adesão à ciência, têm se preocupado com fatos, não com valores que possam orientar as escolas e as ações. É isso que a citação de Alain de Botton sugere.

Em segundo lugar, a felicidade é algo que se alcança através da ação consciente e intencional.  Há os que dizem, com verdade, que a felicidade não é apenas uma linha de chegada, mas também todo o processo que leva a essa linha. O caminhar é tão importante quanto o destino, porque, ao desejar chegar a um determinado lugar, ao desejar transformar um projeto de vida em realidade, desejamos, também, os meios que nos levarão lá, os processos que permitem que o projeto de vida se concretize em nossa vida.

A escola convencional não dá quase nenhuma importância ao fazer, ao saber fazer, ao desenvolvimento de competências e habilidades. Na escola tradicional espera-se que o aluno fique passivamente quieto e que preste atenção ao que diz o professor. Assim sendo, há um claro descompasso entre a vida e a escola, entre a busca da felicidade e o que se aprende nos bancos escolares, entre aspectos cognitivos e aspectos vitais de nossa vida (para tomar emprestada uma frase de Hugo Assmann).

Ser feliz (diferentemente de estar contente) é uma condição duradoura, não um estado momentâneo. É feliz aquele que, sobre o alicerce de seus valores, é capaz de definir seu projeto de vida e transformá-lo em realidade. Em outras palavras, feliz é aquele cujos valores determinam os seus sonhos e que é capaz de transformar os seus sonhos em realidade. A felicidade existe – não é uma quimera.

O objetivo maior de nossa vida não é sobreviver: é alcançar a felicidade. Viver a vida em sua plenitude é ser capaz de fruir a vida, ser feliz… O papel fundamental da educação é nos ajudar a viver a vida que, com base em nossos valores, escolhemos para nós mesmos.

O que nos traz a felicidade é, portanto, a realização de um projeto de vida defensável, alicerçado em valores: não o mero alcançar daquilo que simplesmente queremos.

*

Tomando emprestada uma ideia de Karl Popper, o que torna a vida o valor supremo é o fato de ela ter duração limitada e desconhecida: pode terminar a qualquer hora… Os jovens em geral não se dão conta disso: pensam que têm todo o tempo do mundo. São os mais velhos que em geral percebem que seu recurso mais valioso não é dinheiro ou qualquer outro: é tempo. Tempo de vida.

O tempo é um recurso interessante… É igual para todos: um dia tem 24 horas para todo mundo, rico ou pobre, culto ou inculto, britânico, suíço ou brasileiro. No entanto, uns conseguem fazer muita coisa em um dia, outros veem os dias passar sem conseguir fazer grande coisa…

Administrar o tempo não é tornar-se escravo do tempo, mas tornar-se senhor dele. Administrar o tempo não é ficar obcecado com o relógio: é definir prioridades e levá-las a sério. Tem tempo, não aquele que não faz nada, mas aquele que sabe administrar prioridades e fazer o que realmente importa para ele, no quadro de seu projeto de vida.

Não somos donos de boa parte de nosso tempo – pois o vendemos (em troca de dinheiro). Mas a importância do dinheiro está no fato de que ele também nos permite comprar tempo.  A solução do dilema está em conseguir ganhar dinheiro fazendo o que realmente importa.

Ser produtivo, portanto, não é estar sempre ocupado. (Na verdade, gente muito ocupada em geral não é muito produtiva). Ser produtivo é saber administrar o tempo, ter prioridades, ter sentido de direção, saber para onde se vai.

Administrar o tempo, em última instância, é planejar estrategicamente a vida. Quem dentre nós tem um projeto de vida, ou seja, realmente sabe o que deseja e espera da vida? Quem dentre nós tem um plano para onde deseja estar na vida daqui a 5, 10, 20, 50 anos? “Quem não sabe para onde vai nunca vai chegar lá – ou acaba indo para qualquer lugar” – vide Alice no País das Maravilhas.

A importância da administração do tempo está em que, quando acaba o nosso tempo, acaba a nossa vida. Quem administra o tempo ganha vida, ainda que viva o mesmo tempo que os outros. Prolongar a vida não é algo sobre o qual tenhamos muito controle. Mas ganhar mais vida, administrando o tempo, está ao alcance de todos!

Para planejar estrategicamente a vida o primeiro passo é determinar onde estamos e escolher aonde queremos chegar. Escolher aonde queremos chegar é definir um projeto de vida. A natureza da educação tem a ver com mudança: transformar o ser incompetente, dependente, inautônomo, arresponsável que nasce em um adulto capaz, competente, livre, autônomo para escolher sua vida e responsável pelas escolhas que faz.

Muitos de nós tentamos mudar os outros, ou as instituições, antes de entender que a mudança começa conosco: em realidade, só conseguimos mudar a nós mesmos. A educação deve ser voltada para a vida, nos capacitar para viver a nossa vida. Isso envolve a construção de competências, habilidades, valores, atitudes – e a aquisição de conhecimentos e informações. Mas a competência central é a de planejar estrategicamente a vida – para a qual a administração do tempo é essencial. Sem essa competência, ninguém será realmente feliz.

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Transcrito aqui em São Paulo, 12 de Agosto de 2011

4 responses

  1. BOA NOITE PROFESSOR,MEU FILHO ESTA ESTUDANDO NA ETEC GUARACY SILVEIRA,ELE ESTA ELABORANDO UMA ATIVIDADES PRATICAS SUPERVISIONADAS,ONDE OS ALUNOS TERÃO A DESENVOLVER SOLUÇÃO PARA A AREA EDUCACINAL NO BRASIL,A PAUTA DELE É
    EDUCAÇAO COMO MERCADORIA,ISTO QUER DIZER O CONCEITO DE ESTUDO A SER APENAS APLICADO COMO NUMEROS OU ESTATISTICA E NÃO COMO SE DEVERIA( DIREITO EDUCACIONAL )MELHOR ASSISTENCIA NA AREA EDUCACIONAL.
    ENTÃO EU PESQUISANDO PELA INTERNET LI SEU BLOG,COM A SUA FILOSOFIA EDUCACIONAL(MUITO INTELIGENTE)PARABÉNS.VENHO A TE PEDIR HUMILDEMENTE SE O SENHOR TIVER ALGUM TEMPO SE PODERIA DAR OPINIÕES SOBRE O ASSUNTO AO MEU FILHO ,ELE TEM 15 ANOS E ADORA O ASSUNTO O SENHOR COM SUE SABIA FILOSOFIA SERIA UMA EXCELENCIA EM DAR ACESSORIA A ELE .MUITO OBRIGADA PELA ATENÇÃO MÃE SILVANA SANTOS.
    FONE CONTATO(011-80963970)OU EMAIL DELE(GUSTAVO_COPPOLA.K1@HOTMAIL.COM)
    FICAREI MUITO GRATA.

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  2. Conheci seu blog, professor Eduardo Chaves, e o salvei nos meus favoritos. Esse artigo publiquei no meu Facebook. Quero ter a disciplina de ler melhor os outros, com certeza. Aprenderei a enriquecer meu saber como professor e tutor-orientador de EAD.
    Obrigado, Eduardo Chaves.

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  3. Pingback: Os Views dos Meus Artigos Aqui, « Liberal Space: Blog de Eduardo Chaves

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