Os candidatos e as pesquisas

Transcrevo da Folha de S. Paulo de hoje, 20/10/2010. Vale a pena ler. Faz pensar.

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MARCELO COELHO

O ópio dos candidatos

AINDA NÃO tinham inventado a telenovela, a megassena, o futebol e o crediário quando Marx chamou a religião de “ópio do povo”. E ele teria certamente reformulado um pouco suas opiniões se tivesse visto, por exemplo, os sorteios de carro 0 km nas festas de Primeiro de Maio.

Ainda assim, vale lembrar que a mistura entre política e religião, de que a campanha eleitoral no Brasil não é o exemplo mais extremo, tende a trazer muitos riscos para a democracia e para a paz. Para a minha paz de espírito, pelo menos.

Não digo isso apenas para repetir o velho princípio da “separação entre igreja e Estado”. Invocado dessa maneira, sem mais explicações, fica bastante abstrato.

Acho que dá para mostrar onde está o perigo dessa mistura. É que, a meu ver, política envolve compromisso e negociação. Não me refiro à detestável barganha de cargos no governo.

A menos que você queira transformar toda disputa em motivo para derramamento de sangue e em guerra pura e simples, política se faz com um mínimo de entendimento com o adversário. Você aprova determinados pontos de uma lei, mas não todos. Você admite que perdeu certa eleição. Você concorda em jogar para mais adiante alguns detalhes polêmicos, privilegiando aqueles sobre os quais é possível um acordo no momento.

A lógica da religião abomina, por natureza, esse tipo de atitudes. Cardeais num concílio podem discutir seus temas de teologia e chegar a consensos relativamente provisórios, adiando ou contornando assuntos espinhosos: estarão fazendo política entre eles, por certo.

Mas, quando determinado assunto se torna expressão de fé, não há como esperar que o religioso admita soluções de compromisso. Quanto mais religiosa for uma sociedade, menor o terreno para a transigência.

A separação entre igreja e Estado não nasceu pronta da cabeça de algum filósofo iluminista -foi a solução que se encontrou depois de que guerras religiosas entre católicos e protestantes ameaçaram dizimar, por mais de um século, países como Inglaterra, França e Alemanha.

E, se atualmente a grande maioria dos católicos e dos protestantes aceita conviver em um mesmo Estado ao lado de muçulmanos, israelitas, umbandistas, adeptos do candomblé e ateus, isso se deve ao fato de que foi possível, contra o desejo de muitos deles, chegar a um equilíbrio.

Ninguém, ou quase ninguém, dirá que o outro é seguidor do diabo, por mais que secretamente queira pensar assim. Pois, nesse caso, não há convivência possível: o diabo tem de ser destruído.

Não vou entrar na polêmica do aborto. Já escrevi a favor de sua descriminalização, apoio um plebiscito e entendo que se possa ser contra o aborto sem invocar nenhum dogma religioso. Embora a questão seja importantíssima para tantas igrejas, envolve considerações que ultrapassam, ou que são mais básicas, do que o ensinamento religioso.

A fé que eu gostaria de contestar, a esta altura da campanha eleitoral, é a fé nos marqueteiros e nas pesquisas de opinião. O maior obscurantismo não está na condenação ou na defesa do aborto. Está no fato de dois candidatos seguirem, como ovelhinhas, o que lhes recomenda a última estatística.

Convenhamos que nem Dilma nem Serra são pessoas religiosas. Que quando um comunga e a outra se persigna, estamos diante de um ritual que não engana ninguém. Serra e Dilma apóiam a lei vigente, que permite o aborto em casos específicos. Os dois, portanto, não são sempre contra o aborto; estão a léguas de distância dos eleitores que desejam conquistar.

Se fosse para fazer tudo o que os religiosos querem, os dois teriam de condenar a pílula, a camisinha e o divórcio. Simplesmente esses temas não apareceram no debate.

Se fizessem uma pesquisa sobre pena de morte, sobre construção da bomba atômica, sobre proibição da nudez nas praias brasileiras, o que diriam esses candidatos?

É fácil saber qual a religião de cada eleitor. Mas quantos homossexuais há no Brasil? Quantas pessoas já tiveram um aborto na família? Como se dividem suas preferências eleitorais? As pesquisas eleitorais não chegam a esse detalhamento.

As pesquisas, acho que já escrevi isso, são o ópio dos candidatos. A inteligência do país inteiro fica embotada nesse processo.

coelhofsp@uol.com.br

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Em São Paulo, 20 de Outubro de 2010

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