Que será de nossos pertences digitais quando morrermos?

Inicialmente publicado no Blog das Editoras Ática e Scipione.

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Quando meu pai morreu, já lá vão mais de vinte anos, meus irmãos e eu decidimos, no dia mesmo em que ele foi enterrado, dar um destino aos seus pertences pessoais, poupando nossa mãe da incumbência. Na verdade, os filhos a assumiram porque duvidaram que a mãe fosse capaz de executá-la, dada a ligação afetiva que tinha com muitos desses pertences que, embora pessoais, também foram dela, pelo menos em algum sentido. Refiro-me a coisas como roupas, livros, revistas, discos, instrumentos musicais (ele tinha vários: violão, flauta transversal, teclado, acordeão…), etc. E, naturalmente, havia o que chamo genericamente de papéis: cartas recebidas, rascunhos de artigos que pensava publicar um dia, cópias datilografadas ou duplicadas de artigos publicados, esboços de sermões que ele pregou ou pretendia pregar, anotações sobre coisas que precisava fazer, endereços, números de telefone, etc. Encontrei até rascunhos de cartas que ele pretendeu me enviar mas, por alguma razão, não enviou, num período difícil em que ficamos quase dois anos sem falar um com o outro.

Meu pai não era um cidadão do mundo digital. Na verdade, em 1991 pouca gente era. Por isso, ele não tinha nenhum bem digital ao qual precisássemos dar destino.

Abrindo um parêntese, eu mesmo, na verdade, em 1991, estava apenas no vestíbulo desse universo. Comecei a ter acesso a ele quando, em 1987, assumi a direção do Centro de Informações em Saúde (CIS) da Secretaria de Estado da Saúde (SES) e tive de me comunicar com freqüência com a Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, Suiça, para transmitir os relatórios mensais de incidência e prevalência de moléstias infecciosas e outras informações que a OMS requeria (ainda requer) de cada estado membro das Nações Unidas. Dr. Salah S. Mandil, diretor da área de Suporte a Sistemas de Informação da OMS, me arrumou um e-mail no sistema das Nações Unidas e eu tive de achar um jeito de conseguir acesso aos computadores do International Computer Centre (ICC) da sede européia das Nações Unidas, no Palais des Nations, em Genebra, antiga sede da Liga das Nações, nos quais os sistemas da OMS eram hospedados. Foi assim que me iniciei ao mundo digital, com bem mais de quarenta anos. Um perfeito imigrante digital. Fim do parêntese.

Hoje, quase todo mundo que vive em uma cidade é (em grau maior ou menor) cidadão do mundo digital — e, por isso, possui algum bem digital. Chamo de bem digital coisas como:

· Contas de E-mail, com a respectiva senha (é díficil encontrar quem não tenha pelo menos uma hoje — muita gente tem várias, eu sendo culpado reincidente desse sério desvio de conduta…).

· Caixas Postais, acessíveis por uma conta de e-mail, que armazenam uma quantidade significativa de e-mails, localmente (isto é, nos computadores da própria pessoa) ou remotamente (em algum site de WebMail na Web, como HotMail, GMail, Yahoo! Mail, UOL Mail, etc.).

· Nomes de Usuário, Senhas, Tokens, Cartões com Codigos Numéricos, etc. que dão acesso a sites diversos (inclusive a contas bancárias, a serviços de telefonia pela Web, como Skype, a serviços de mensagens instantâneas, como Messenger, etc.).

· Áreas (às vezes chamadas de perfis) em sites de mídia social (como FaceBook, Orkut, LinkedIn, WordPress, Blogger, Twitter, YouTube, Flickr, Picasa, Slideshare, etc.), acessíveis mediante nomes de usuário (ou e-mails) e senhas, que armazenam uma quantidade significativa de fotografias, vídeos, slides, mensagens, conversas instantâneas, comentários, artigos, registros de onde a pessoa esteve ou do que estava fazendo em determinado momento, relatos de seu estado mental em determinadas ocasiões, curtições, elogios, protestos, brigas pessoais (na frente de todo mundo), etc.

Arquivos digitais, em geral não protegidos, contendo textos, fotografias, imagens, vídeos, músicas, etc., armazenados em discos rígidos ou “memória flash” de computadores, telefones digitais, tocadores de música, câmeras de fotografia ou de vídeo, reprodutores de vídeo, etc. da própria pessoa ou de terceiros, ou, alternativamente, em discos rígidos portáteis, CDs, CD-ROMs, DVDs, “memory cards”, “pen drives, disquetes, etc. (facilmente perdíveis, acessíveis e copiáveis).

· Áreas em espaços virtuais fornecidos gratuitamente (como Windows Live SkyDrive, GoogleDocs ou iCloud) ou alugados, e acessíveis por nomes de usuários (ou e-mails) e senhas, que armazenam “na nuvem” (como se diz hoje) toda sorte de documentos pessoais ou mesmo profissionais dos usuários.

· Direito sobre domínios em sites que registram domínios, aqui no pais ou no exterior (como, por exemplo, registro.br, mydomain.com, name.com, dominios.pt, etc.).

Pode haver mais bens digitais – mas parece-me que esses são os principais.

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Antes de discutir que será desses nossos bens digitais quando morrermos, é bom ressaltar alguns fatos acerca deles, relevantes para o seu uso enquanto estamos vivos, que muitas pessoas desconhecem ou não consideram importantes.

1) BENS DIGITAIS TÊM DONO, ISTO É, PERTENCEM A ALGUÉM

Em primeiro lugar, bens digitais, embora intangíveis (porque são bens no espaço virtual), certamente têm dono — embora, em alguns casos, possa ser difícil definir quem é dono de determinada coisa.

Porque bens digitais têm dono, eles pertecem a alguém. Por isso, daqui em diante vou falar em “pertences digitais” em vez de “bens digitais”.

Vamos começar com um exemplo fácil de entender.

FaceBook, hoje usado por mais de um décimo dos sete bilhões de habitantes do planeta, é um ambiente (que alguns preferem chamar de plataforma) criado na Web por um pequeno grupo de rapazes liderado por Mark Zuckerberg (vejam http://www.facebook.com/zuck). Como FaceBook ainda não colocou ações na Bolsa de Valores, esse ambiente pertence aos proprietários originais (embora possa ter havido, por exclusão ou inclusão, modificação no grupo).

Agora, o conteúdo que os usuários colocam no FaceBook é, em princípio, propriedade de quem o colocou lá.

Embora você seja dono das informações que coloca no FaceBook, você, ao colocar essas informações lá, dentro das sofisticadas regras de privacidade que governam cada item ali colocado, você concede o direito às pessoas autorizadas de compartilhar aquelas informações com os seus contatos (lá chamados de amigos), com contatos de seus contatos, ou com o público em geral (sempre sendo possível “bloquear” o acesso a elas de pessoas que você não quer que as vejam).

Se FaceBook um dia fechar, ou resolver não mais permitir que os usuários deixem lá suas informações sem alguma forma de pagamento, provavelmente você será informado com antecedência para que tenha tempo para tomar as providências que julgar cabíveis. Espero que isso nunca aconteça, porque tenho uma quantidade enorme de informações lá. Fico grato a FaceBook por me permitir fazer uma cópia de tudo que tenho lá, para guardar nos meus discos rígidos. De vez em quando atualizo essa cópia — ou melhor, faço outra, atualizada.

2) OS DONOS SÃO RESPONSÁVEIS PELO USO DE SEUS PERTENCES DIGITAIS

Em segundo lugar, os proprietários de pertences digitais (como os proprietários de pertences não-digitais, como automóveis) são responsáveis pela seu uso, inclusive por parte de terceiros, podendo ser responsabilizados civil e criminalmente por mau uso desses pertences que infrinja direitos de terceiros.

Se você coloca lá no seu perfil uma afirmação que é injuriosa ou caluniosa para com uma outra pessoa, você, não o FaceBook, será chamado a responder pelo que disse (embora, como imagino que o FaceBook tem mais dinheiro do que você, o suposto injuriado vai provavelmente tentar colocar o FaceBook também como réu de um eventual processo).

Artigo recente no jornal A Folha de S. Paulo mostrou que tudo que você tuitar pode ser usado contra você no tribunal… Veja-se http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3001201116.htm. E os tribunais já registram vários divórcios baseados em conteúdo de e-mails ou até mesmo SMS. Portanto, cuidado com tuitadas , e-mails e SMS inconsequentes…

E, em outro exemplo, se você cria uma conta no FaceBook com um perfil fictício: nome e demais dados falsos? Neste caso, você, que criou a conta, continua responsável por ela, mesmo que seja uma pessoa diferente daquela que está caracterizada no perfil. Eles têm jeito de descobrir quem fez o que lá.

3) OS DONOS SÃO RESPONSÁVEIS PELA CONSERVAÇÃO DE SEUS PERTENCES DIGITAIS

Em terceiro lugar, entre as responsabilidades que os proprietários de pertences digitais têm, especialmente quando esses pertences são importantes, está a de mantê-los em perfeito estado de conservação e de fazer backups (cópias de segurança) regulares deles. Isso deveria ser óbvio, mas nem sempre é.

Saiba, porém, que o FaceBook também mantém backups de tudo que aparece lá. Assim, é bom que você saiba que, mesmo que você elimine algo de seu perfil, provelmente FaceBook mantém uma cópia do que apareceu no seu perfil, ainda que tenha ficado lá por muito pouco tempo, e pode oportunamente (ou mesmo inoportunamente) ressuscitar.

4) OS DONOS SÃO RESPONSÁVEIS PELO DESTINO QUE DEVEM TER OS SEUS PERTENCES DIGITAIS DEPOIS DE SUA MORTE

Em quarto lugar, e aqui chegamos ao nosso assunto, entre as responsabilidades que os proprietários de pertences digitais têm está a de dispor o que será feito deles quando eles, os proprietários, morrerem.

O jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de 2/11/2011, discutiu esse assunto. Eis uma matéria:

“HERANÇA DIGITAL EM TESTAMENTOS

A. Qual é o procedimento para fazer um testamento com dados digitais?

O usuário faz um levantamento de todos os bens digitais que tem. Depois de produzir um documento detalhado, ele estipula o que deve ser transmitido para quem no testamento.

B. Se eu não fizer um testamento, quem poderá se apossar dos meus bens digitais?

Caso o testamento não seja feito, muitos dos direitos vão ser transmitidos automaticamente. Os herdeiros naturais são os familiares mais próximos. O Código Civil estipula que os filhos de uma pessoa são os primeiros na sucessão.

C. Nesse caso, o serviço digital é obrigado a fornecer dados digitais para os herdeiros?

Se houver uma ordem judicial nesse sentido, sim, mesmo que os termos de uso do site estipulem que a privacidade do usuário seja mantida. ‘Contratos, em geral, servem só para complementar o que a lei não dispõe’, diz o advogado Renato Ópice Blum.”

(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201104.htm. Vejam-se também as matérias correlatas em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201102.htm e http://www1.folha.uol.com.br/fsp/tec/tc0211201103.htm).

Isso significa que, os nossos pertences digitais são valiosos, e nós queremos que sejam preservados, precisamos nos preocupar com quem vai receber a (em alguns casos difícil) incumbência de herdá-los.

Disse que essa incumbência pode vir a ser difícil em alguns casos, porque penso no meu caso: só de artigos de blog, tenho, em meus vários blogs, para lá de 750. Pago, anualmente, para a WordPress, um certo valor para poder usar o endereço http://liberalspace.net no meu blog principal. Além disso, possuo mais de 150 domínios, registrados em vários registradores. O registro de cada um desses domínios precisa ser renovado anualmente, e eles vencem quase todos em datas diferentes… A maior parte deles está em renovação automática. Para mudar isso, quem herdar meus domínios terá de saber qual meu nome de usuário, qual a minha senha, etc…

Em 21/8/2006 escrevi sobre esse assunto em meu blog pessoal. O artigo se chamava “O que será dos meus hard disks?”. Veja-se http://liberalspace.net/2006/08/21/o-que-sera-dos-meus-hard-disks/.

Ali especulo o seguinte:

“Se os nossos herdeiros resolverem, em respeito à nossa privacidade, simplesmente reformatar tudo, sem ler nada, nossos segredos estarão preservados mas, além de morrermos fisicamente, a maior parte do que pensamos e sentimos (e que deixamos registrado em arquivos .doc de Microsoft Word, .ppt de Microsoft PowerPoint, .pst de Microsoft Outlook, ou então na história preservada de nossos papos pelo (agora) Windows Live Messenger (ex MSN Messenger), nas fotos .jpg que tiramos, nos filminhos .wmf ou .mpg que produzimos ou simplesmente guardamos) também se perderá… A reformatação de tudo isso deixará ferido para sempre o nosso orgulho: ninguém se interessou o suficiente pelo que fomos, pensamos e sentimos, pelas coisas que achávamos importantes, para querer preservar alguma coisa do estava armazenado em nossos hard disks.

Por outro lado, se resolverem fuxicar a nossa vida, podem encontrar coisas que os deixarão surpresos – quando não indignados. É incrível quão pouco os nossos parceiros, os nossos filhos, os nossos netos, os nossos outros parentes, conhecem da gente. Fazemos blogs – mas poucos dos parentes os lêem sistematicamente. O meu está no Live Spaces (antigo MSN Spaces) [agora no WordPress]. Mas também escrevemos uma quantidade enorme de textos que não colocamos em blogs. Escrevi livros, capítulos de livros, artigos, prefácios, posfácios, etc. que ninguém de minha família jamais leu. Tenho milhares e milhares de slides, correspondentes a palestras que ministrei, em arquivos de Microsoft PowerPoint que ninguém de minha família jamais viu. Participo de dezenas de listas de discussão, nas quais escrevo, diariamente, dezenas de mensagens, de que ninguém de minha família jamais tomou conhecimento. Envolvi-me em brigas homéricas em algumas dessas listas, e nessas brigas nem sempre me comportei de forma impecável (em termos de elegância no trato e na linguagem) – e minha família nunca ficou sabendo delas. Troquei e-mails pessoais com gente que ninguém de minha família conhece – e com gente que minha família nem imagina que exista e que seja importante para mim. O mesmo vale pelos papos pelo Windows Live Messenger.  Se minha família fosse fuxicar os meus hard disks, quanta surpresa teria… Seria um redescobrir do marido, do pai, do avô – na verdade, um descobrir, porque nunca tomaram conhecimento desse meu eu, para eles, desconhecido, mas que é conhecido, às vezes bem conhecido, por meus companheiros de listas, de e-mails, de papos no Messenger… E que em muitos aspectos é o meu eu mais íntimo!”

Enfim, é isso.

Escrito em São Paulo, 17 de Novembro de 2011, e transcrito aqui em 28 de Dezembro de 2011

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