Originalmente publicado no Blog das Editoras Ática e Scipione.
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1. Introdução
Sócrates morreu no domingo. Não o grego, naturalmente, que morreu já faz tempo. Quem morreu esta semana foi o Sócrates Brasileiro (com “b” maiúsculo): o homem do futebol arte, o capitão daquela seleção brasileira que muitos consideram a melhor de todos os tempos — mas que, entretanto, perdeu a Copa do Mundo na Espanha.
Estava pensando sobre o assunto deste artigo quando soube que Sócrates, o homem, havia, como antes o jogador, encerrado sua carreira.
Eu lia um livro genial quando fiquei sabendo da notícia: The Goal, de Eliyahu Goldratt. Foi a partir de uma discussão interessante no Facebook que alguém me sugeriu a leitura dele. Não é um tratado ou um ensaio: é um romance. Procurei na Internet algumas resenhas, achei-as interessantes, e comprei o livro. Foi um excelente investimento. Gosto de romances que não apenas entretêm, mas que, ao contar bem uma história, também ilustram uma filosofia de vida. Melhor do que isso: ilustram a busca por uma filosofia de vida interessante.
Aos poucos, Sócrates e The Goal se juntaram…
2. A Meta
É difícil descrever o enredo do livro quando já é complicado traduzir o título. “Goal” é o quê? “Goal” é gol (“o grande momento do futebol”, como dizia um programa de rádio e de TV antigo). Foi esse título que me fez juntar mentalmente a morte de Sócrates com o conteúdo do livro. O termo “goal/gol” é usado no futebol para descrever a meta que os jogadores devem perseguir. A meta, no futebol, é representada por aquele retângulo delimitado por dois postes e um travessão que a bola deve ultrapassar para que um time faça pontos e, caso os faça em maior número que o time adversário, ganhe o jogo. Por isso, enquanto uma equipe tenta fazer a bola ultrapassar a meta da equipe adversária, esta busca protege-la. Tanto isso é assim que o goleiro era antigamente chamado de “guarda-meta”. E, quando se fazia um gol, dizia-se que a meta havia sido “vasada”.
Embora haja uma grande e interminável discussão sobre “futebol arte” vs “futebol resultado”, não há como discordar do truísmo que “futebol é bola na rede”, ponto final. Ganha o jogo, ao final, quem fez mais gols. Ou, em outro chavão, jogo bonito não ganha campeonato — nem a Copa, como descobrimos tristememente em 1982.
Apesar de que, muitas vezes, pode parecer mais gostoso ver nosso time jogar bonito do que ganhar, se o time perder o jogo, ficamos frustrados, porque o objetivo real do futebol é fazer mais gols do que o adversário. Como dizem os mais fanáticos, o objetivo é fazer gol, ainda que seja gol contra, em impedimento, de canela, sem querer, chorado, com a ajuda do morrinho artilheiro, ou então do juiz, etc.
O livro de Goldratt discute a história de uma empresa. E procura deixar claro que, se a empresa não sabe qual é a sua meta, não tem jeito de ganhar no jogo do mercado — a menos que tenha muita sorte e, ainda assim, quando isso acontece, a vitória é por pouco tempo.
A sugestão de Goldratt é simples e óbvia: a meta de uma empresa é (como todo empresário deveria saber) fazer dinheiro. Fazer dinheiro, “make money”, é diferente de simplesmente ganhar dinheiro. Alguém que acerta na Loteria ganha dinheiro. Fazer dinheiro, porém, é dar lucro, é gerar mais dinheiro do que se investe e gasta para gerá-lo. Para não conquistar a antipatia dos meus leitores de simpatias esquerdizantes, que acham que a meta de uma empresa é exercer sua responsabilidade social, contribuir para a melhoria do meio ambiente, contribuir para o crescimento econômico do país, fazer filantropia, etc., paro aqui o relato sobre o livro de Goldratt.
Mas fica a lição: nenhuma organização, nenhuma pessoa, e nenhuma atividade consegue ser bem sucedida se não souber qual é a sua meta.
Aqui chegamos à educação.
3. A Meta da Educação
Qual a meta da atividade que chamamos de educação?
Hoje a gente houve várias sugestões: formar cidadãos, preparar trabalhadores do conhecimento para a economia digital, etc.
Prefiro, entretanto, uma visão diferente… Para usar uma expressão bonita da Viviane Senna, a meta da educação é fazer com que as pessoas “dêem certo”. Ou, para usar uma expressão que foi incluída pela Microsoft na sua missão, fazer com que as pessoas realizem seu pleno potencial. Ou ainda, como eu mesmo venho dizendo aqui neste blog, fazer com que as pessoas se desenvolvam, plena e integralmente, como seres humanos.
Essas três formulações são bonitas, nobres e, estou convicto, corretas. Mas não bastam, porque é preciso que se esclareça o que queremos dizer quando afirmamos que uma pessoa “deu certo”, ou “realizou seu pleno pontencial”, ou “se desenvolveu plena e integralmente como ser humano”?
Quando Goldratt afirma que a meta de uma empresa é fazer dinheiro ou dar lucro, todo mundo entende claramente o que ele quer dizer, mesmo que não concordo ou que não saiba o que uma empresa precisa fazer para alcançar essa meta.
Mas quando a gente diz que a meta da educação é fazer as pessoas darem certo, realizarem seu pleno potencial, ou se desenvolverem como seres humanos, não há uma clareza comparável de entendimento. Parece que fica faltando explicar alguma coisa.
E aqui chegamos à filosofia. Mais cedo ou mais tarde a gente chega a ela.
4. A Contribuição da Filosofia
Pegando uma sugestão dos principais filósofos gregos clássicos (Sócrates, Platão e Aristóteles), gostaria de sugerir que uma pessoa dá certo, ou realiza o seu potencial, ou se desenvolve como ser humano, quando se torna uma “pessoa virtuosa” (no sentido técnico que vou tentar esclarecer).
Muitos vão me acusar de estar trocando seis por meia dúzia, por que, afinal de contas, o que queremos dizer quando chamamos uma pessoa de virtuosa?
Mas os gregos tinham uma resposta para essa questão…
Para chegar à resposta dos gregos, precisamos, como Jack o Estripador, ir por partes…
Primeiro, os gregos (que eram muito lógicos — na verdade, eles inventaram a lógica…), sabiam que, para responder à pergunta “O que é uma pessoa virtuosa?” tinham de esclarecer antes o que é uma pessoa e o que é a virtude…
Assim, refletiram sobre o que significa ser uma pessoa.
Uma pessoa, concluíram, é um ser que é capaz de pensar, sentir (emocionar-se, por exemplo) e agir. Para agir, ele tem de ser capaz de escolher e decidir. Essas competências (ou “faculdades”) de pensar, sentir, escolher, decidir e agir compreendem a mente (ou “alma”) da pessoa.
(Algumas pessoas, como, por exemplo, as pessoas humanas, têm, além de sua mente, um corpo. Isso não é novidade. Outras, porém, como quem sabe os anjos e os deuses, não teriam um corpo, por não terem necessidade dele. Mas deixemos de lado esses detalhes).
Virtude, por seu lado, é aquilo que é bom (ou certo) na ação ou na conduta.
(A propósito, os gregos davam enorme importância a três coisas que consideravam “transcendentais”: o verdadeiro, o belo e o bom. O verdadeiro deve reger os nossos pensamentos; o belo, os nossos sentimentos; e o bom, a nossa ação ou conduta. O leitor pode notar que os gregos gostavam de deixar tudo muito bem “amarradinho”).
Uma pessoa virtuosa, portanto, é uma pessoa que, em suas ações, faz o que é bom ou certo, ou que pauta sua conduta por aquilo que é bom ou certo.
Mas como é que descobrimos o que é bom ou certo em nossas ações e em nossa conduta?
Resposta dos gregos (que considero difícil de melhorar): pensando, isto é, refletindo, discutindo, criticando e sendo criticado. Nesse processo, é possível (eles estavam convictos disso) descobrir algum critério que nos permita distinguir a ação boa, ou conduta correta, da ação má, ou conduta incorreta. Digamos que um critério como este seja próximo do que é procurado: uma ação é boa ou correta se é generalizável, isto é, se eu, ao contemplá-la, posso desejar que qualquer outra pessoa, mesmo um inimigo meu, em circunstâncias semelhantes, faça a mesma coisa. (Essa é uma versão meio kantiana e afirmativa da lei áurea cristã: não fazer aos outros aquilo que não queremos que eles nos façam).
Aqui os gregos constataram um fato importante sobre a natureza humana. Mesmo que eu saiba (por concluir, através de um processo de reflexão, discussão, etc.) que determinada ação é certa, e, portanto, deve (ou pode) ser realizada, ou que é errada, e, portanto, deve (sem o “pode”, aqui) ser evitada, esse conhecimento é suficiente para que eu faça o que é certo e deixe de fazer o que é errado?
Resposta: não. Saber o que é certo e o que é errado é condição necessária, mas não suficiente, para fazer o certo e não fazer o que é errado. Há uma lacuna, ou “gap”, entre saber o que é certo e fazer o que é certo, entre saber o que é errado e não fazer o que é errado.
Os gregos também descobriram que esse “gap” pode ser de dois tipos:
a) Em alguns casos, a pessoa sabe o que é certo e o que é errado, mas não quer fazer o certo e evitar o errado;
b) Em outros casos, a pessoa sabe o que é certo e o que é errado, quer fazer o certo e evitar o errado, mas não consegue.
Em ambos os casos, a pessoa não tem nenhum problema no plano cognitivo: ela sabe o que é certo e o que é errado.
No primeiro caso, porém, a vontade da pessoa, o seu querer, não está alinhado com a sua cognição. Ela sabe que uma determinada ação é certa, mas não quer faze-la. Ou ela sabe que uma determinada ação é errada, mas ainda assim quer faze-la.
Consequentemente, ela não vai ser uma pessoa virtuosa: ela não vai fazer o que é bom ou certo.
Se o objetivo da educação é fazer com que as pessoas se tornem virtuosas, ou a educação acha um jeito de fazer a pessoa mudar o que ela quer (mudar a sua vontade) ou ela terá fracassado.
Note-se que não basta que a educação consiga que a pessoa faça ou que é certo e deixe de fazer o que é errado. Isso pode ser conseguido constrangendo-a ou mesmo obrigando-a (caso tenhamos como fazer isso) a fazer o certo e a não fazer o errado. Mas, nesse caso, ela não estaria escolhendo e decidindo ser virtuosa: estaria apenas agindo certo e deixando de agir errado por coação, física ou mental. A sua vontade, o seu querer, estaria inalterado, ainda desejando não fazer o certo e a fazer o errado. Assim que a coação fosse removida, possivelmente ela iria deixar de fazer o certo e fazer o errado.
O desafio da educação aqui é como agir sobre a vontade da pessoa, para alterá-la, na verdade, para conseguir que a pessoa mesma, de forma livre e espontânea, e, portanto, consentida, mude sua vontade.
Esse é um desafio enorme para a educação.
No segundo caso, o problema é outro. Nesse caso, a vontade da pessoa é fazer o que é certo e deixar de fazer o que é errado. Mas ela não consegue.
Até o apóstolo Paulo, que conhecia o pensamento grego, sabia que há um fosso difícil de transpor não só entre saber o que é certo e o que é errado e fazer o que é certo e não fazer o que é errado, mas também entre querer fazer o certo e não querer fazer o errado, e, de fato, fazer o certo e não fazer o errado. Ele disse algo assim: o bem que eu quero, esse eu não faço, e o mal que eu quero, esse eu faço… (Ver Romanos 7:19).
Se a pessoa, mesmo querendo, não consegue fazer o que ela sabe ser certo, e, mesmo querendo, não consegue deixar de fazer o que ela sabe ser errado, aqui também ela não se tornará uma pessoa virtuosa. Mas o problema é outro. Se há problema com a vontade, aqui, o problema é que a vontade é demasiado fraca para produzir a ação.
5. As Emoções e os Sentimentos
David Hume, filósofo sobre o qual escrevi minha tese de doutoramento nos idos de 1970-1972, escreveu sua primeira obra, que se tornou, oportunamente, sua obra prima, antes de completar 30 anos: A Treatise of Human Nature. Essa obra está dividida em três partes, que correspondem ao “Thought, Emotion and Will” (Pensamento, Emoção e Vontade) da filosofia clássica: “Of the Understanding, Of the Passions, Of Morals” (Do Entendimento, Das Paixões, Da Moral”).
Nesse livro ele diz algo que se tornou um ponto de vista importante na filosofia posterior.
“Reason is, and ought only to be the slave of the passions, and can never pretend to any other office than to serve and obey them” (A razão é, e apenas deve ser, a escrava das paixões, e não pode pretender nenhuma outra função além de servir e obedecer a elas).
Para Hume, a razão é incapaz de mover a vontade, ou, havendo a vontade, de produzir a ação — a menos que haja a intermediação do que ele chamava de paixões: as emoções e os sentimentos.
Em outras palavras: a razão me diz que é certo ou que é errado fazer determinada coisa, mas não é capaz de me fazer querer fazer o certo e evitar o errado, nem de capaz de, assumindo-se que eu queira fazer o certo e deixar de fazer o errado, de me levar a agir como eu quero.
Para mover a vontade ou fazer com que a vontade produza a ação, as emoções e os sentimentos são necessários.
Se Hume está basicamente correto, a educação, como um todo, precisa dar muito mais importância do que dá hoje (se é que dá alguma) à educação das emoções, dos sentimentos, da sensibilidade, porque esse aspecto da educação será indispensável para que uma pessoa possa “dar certo” na vida, ou “realizar seu potencial”, ou “se desenvolver como ser humano”.
6. Conclusão
No dia 25 de Outubro último o Instituto Ayrton Senna realizou um Seminário Internacional que teve o título de “Educação para o Século XXI”. A principal estrela do evento foi o James Heckman, professor de economia da Universidade de Chicago e ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2000. Ladeado por três ex-alunos, ele discorreu sobre a importância — para o sucesso na escola e na vida — das chamadas “competências não-cognitivas”. Não só elas seriam tão importantes quanto as competências cognitivas para explicar o sucesso na escola e na vida, como seriam importantes até mesmo para o desenvolvimento das competências cognitivas.
Vimos aqui que, se os filósofos gregos e David Hume estavam na direção certa, os desafios que a educação enfrenta são maiores do que a dicotomia cognitivo-não cognitivo deixa entrever. A dimensão não cognitiva abrange não só competências não-cognitivas como liderança, colaboração, persistência, resiliência, etc. Ela envolve também a educação das emoções, dos sentimentos, da sensibilidade, e da vontade.
Esse complexo de “educações” está estreitamente relacionado com a formação de hábitos, desde que a criança é muito pequena… É nessa fase que se desenvolvem, muito antes que a criança possa entendê-las racionalmente, atitudes e posturas básicas perante os outros, perante a vida, perante a natureza, perante as coisas, que farão com que a criança oportunamente venha a ter respeito pelo verdadeiro, pelo bom e pelo belo, sem os quais, mesmo que venha a saber, no plano cognitivo, o que é certo e o que é errado, dificilmente vai querer fazer o que é certo: por que não posso bater nele? por que não posso levar comigo o que é dele? por que não devo falar quando os outros estão falando? por que não devo chamar de você alguém que merece o meu respeito e a minha consideração?
Suspeito que, nesse caso, relações interpessoais sadias e afetivas, e os bons exemplos que elas produzem, são muito mais eficazes do que hoje passa por trabalho escolar.
Escrito em São Paulo, 5 de Dezembro de 2011, e transcrito aqui em 28 de Dezembro de 2011
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