Achei em meus alfarrábios digitais uma série de mensagens trocadas ao longo de Agosto de 2005 nas listas Quatro Pilares e LivreMente, das quais era (ainda sou, imagino…) coordenador, sobre a questão do relativismo cultural e moral.
O que deflagrou a troca de mensagem foi um artigo sobre Violência Doméstica de autoria de Sharon Lafraniere, do New York Times, escrito em Lagos, Nigéria, e traduzido para o Português por Clara Allain e publicado na Folha de S. Paulo de 20 de Agosto de 2005.
Vou transcrever o artigo aqui e, em seguida, a troca de mensagens a que me referi, na qual estou inevitavelmente envolvido. Prefaciei a transcrição do artigo com a seguinte mensagem, admitidamente provocadora:
“Espancar mulher é norma na Africa… E os relativistas de plantão ainda continuam a afirmar que nenhuma cultura é superior — ou inferior — às outras”.
Eis o artigo:
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Folha de S. Paulo
20 de agosto de 2005
Violência Doméstica
Na região subsaariana, onde surra pode ser “pena” por desobedecer ao marido, luta por direitos engatinha: espancar mulher é norma tácita na África
Sharon Lafraniere,
do New York Times, em Lagos (Nigéria)
Foi uma discussão típica entre marido e mulher. Ela queria visitar seus pais, ele queria que ela ficasse em casa.
Eles resolveram a disputa de uma maneira típica — para algumas pessoas que vivem neste país, típica demais. Rosalynn Isimeto-Osibuamhe recorda o incidente, que aconteceu em dezembro de 2001. Seu marido, Emmanuel, a seguiu até a rua. Ele a espancou até ela desmaiar e então a deixou jogada na rua, perto do apartamento deles. A senhora Isimeto-Osibuamhe, que tinha 31 anos e estava casada havia cinco anos, havia ousado desobedecer a uma regra não escrita vigente nessa região do mundo: havia desafiado seu marido.
Pesquisas conduzidas em toda a África subsaariana indicam que muitos homens — e também muitas mulheres — vêem uma desobediência desse tipo como algo que justifica plenamente um espancamento.
Mas Rosalynn Isimeto-Osibuamhe, que possui diploma universitário e é fundadora de uma escola de ensino de francês, não concordava com esse padrão de violência doméstica tacitamente aceito na região.
Assim que voltou do hospital, ela fez as malas e deixou sua casa. Embora sua determinação nem sempre se mantenha firme e ela ainda não tenha se decidido pelo divórcio, ela ainda não retornou.
Em entrevista concedida diante de sua sala de aula de francês, Isimeto-Osibuamhe explicou: “Ele acha que não tenho direitos próprios. Se eu digo “não”, ele me bate. Eu falo: “Não é isso o que eu quero da vida'”.
A violência é algo que atinge as mulheres de todas as sociedades. Mas existem poucas regiões em que os abusos são mais comuns e mais largamente aceitos como tais do que a África subsaariana.
De acordo com o estudo mais recente, conduzido em 1993, uma em cada três mulheres nigerianas relatou ter sido fisicamente agredida por um parceiro homem. A mulher do vice-governador de uma Província do norte da Nigéria disse a jornalistas no ano passado que seu marido bate nela constantemente, em parte porque ela assiste a filmes na televisão.
Uma das indicadas do presidente Olusegun Obasanjo — que dirige o país desde 1999 — para integrar uma comissão nacional de combate à corrupção teria sido morta por seu marido em 2000, apenas dois dias depois de ter pedido proteção ao comissário estatal de polícia.
Obong Rita Akpan, que até o mês passado foi a ministra nigeriana dos Assuntos Femininos, declarou, em entrevista, que na Nigéria “é comum as mulheres serem tratadas por seus maridos como sacos de pancada”.
“O homem nigeriano acredita que a mulher é inferior a ele. Desde a primeira infância, os meninos têm preferência sobre as meninas. Mesmo quando os homens se casam por amor, eles ainda pensam que a mulher está abaixo deles e ainda fazem o que bem entendem”, completou Obong Akpan.
Numa pesquisa conduzida em Zâmbia em 2004 — e financiada com recursos dos EUA — quase metade das mulheres que foram entrevistadas disse ter sido espancada por seu marido ou parceiro. Trata-se da mais alta porcentagem entre nove países em desenvolvimento, em três continentes, abarcados na pesquisa.
Na África do Sul, pesquisadores do Conselho de Pesquisas Médicas estimaram no ano passado que, em média, uma namorada ou mulher é assassinada por seu parceiro a cada seis horas. Seria o maior índice de mortalidade resultante de violência doméstica jamais constatado. Um relatório das Nações Unidas concluiu no ano passado que na capital do Zimbábue, Harare, a violência doméstica é responsável por mais de seis em cada dez casos de homicídio julgados nos tribunais.
Apesar disso, segundo as organizações de defesa dos direitos das mulheres, a maioria das mulheres mantém silêncio sobre os abusos que sofre.
Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) constatou que mais de um terço das mulheres da Namíbia relata sofrer ou ter sofrido abusos sexuais ou físicos de um parceiro homem, uma violência que muitas vezes resulta em ferimentos físicos. No entanto, seis em cada sete vítimas ou mantêm silêncio sobre os maus-tratos ou revela o que aconteceu apenas a uma amiga ou a um parente.
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Ela teve pais progressistas pelos padrões nigerianos: seu pai batia em sua mãe de vez em quando, mas também incentivou sua filha a concluir seus estudos e a trabalhar
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O motorista Kenny Adebayo não tem dúvida: “Você fala para sua mulher que ela põe muito sal na comida; todo dia a comida está salgada, todo dia; um dia você fica sentido e bate nela”
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Conta que, desde que saiu de casa, seu marido já lhe bateu uma dúzia de vezes; em uma dessas vezes, a derrubou no chão da igreja; ela se angustia, pois não sabe se ele pode mudar
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Normalmente não é fácil encontrar ajuda. Na Nigéria, o maior país africano — cuja população já se aproxima dos 130 milhões de habitantes –, existem apenas dois abrigos para mulheres que são vítimas de maus-tratos. Os dois foram abertos nos últimos quatro anos. Nos Estados Unidos, em contraste, existem cerca de 1.200 abrigos desse tipo. Além disso, muitas mulheres concordam que as transgressões de uma mulher casada justificam que o marido a espanque.
Cerca de metade das mulheres entrevistadas em Zâmbia em 2001 e 2002 disse que o marido tem o direito de bater em uma mulher que discute com ele, que queima a comida, sai sem a autorização do marido, não cuida bem dos filhos ou simplesmente se nega a fazer sexo com o marido.
Para o motorista Kenny Adebayo, 30, em Lagos, não há dúvidas. “Você fala para sua mulher que ela põe sal demais na comida. Todo dia a comida está salgada demais, todo dia, todo dia. Um dia você fica sentido e bate nela. Nós, homens africanos, odiamos ser desrespeitados.”
O código penal nigeriano que está em vigor no norte do país — onde a maioria dos habitantes professa a religião muçulmana — permite especificamente aos maridos disciplinar suas mulheres, como também autoriza que pais e professores disciplinem as crianças, desde que não lhes causem danos físicos graves.
As leis relativas à agressão física poderiam ser aplicadas, mas a polícia normalmente vê o espancamento de mulheres como exceção. Leis para punir a violência doméstica foram propostas em seis das 36 Províncias nigerianas, mas foram adotadas em apenas duas delas — o equivalente a 5% de todas as regiões administrativas do país.
As ativistas que militam na defesa dos direitos das mulheres dizem que a onipresença dos maus-tratos é um sintoma do baixo status da mulher na África subsaariana. Nessa região, as mulheres costumam ter nível de instrução inferior ao dos homens, trabalham mais horas por dia. Além disso, carregam três vezes mais peso do que os homens, transportando lenha, água e sacos de milho sobre a cabeça.
Rosalynn Isimeto-Osibuamhe não se enquadra nesse perfil padronizado. Bem falante, ostentando um corte de cabelo moderno e carregando um livro de sociologia na bolsa, ela fala em tom de voz confiante. Sua agenda é cheia de planos para os diversos projetos que ela quer empreender. “Sou uma organizadora”, afirma ela, em uma série de entrevistas. “Sou uma líder.”
Mas esse aspecto peculiar de sua formação em relação à média das mulheres de seu país não a poupou de ser espancada interminavelmente durante os oito anos que durou, de fato, seu casamento com seu marido, Emmanuel. Isimeto-Osibuamhe teve pais progressistas pelos padrões nigerianos. Seu pai batia em sua mãe de vez em quando, mas também incentivou sua filha, a mais velha dos sete filhos do casal, a concluir seus estudos e, mais tarde, a trabalhar como executiva de marketing, professora de francês e apresentadora de um programa de TV educativo em francês.
Ela tinha apenas 16 anos quando conheceu Emmanuel. Como ela, ele se formou na universidade, tornando-se contador. Esbelto e bonito, ele a estapeou apenas uma vez durante os anos de namoro deles. Isimeto-Osibuamhe achou que tinha sido um deslize, uma aberração.
Mas não foi. Hoje com 35 anos, Isimeto-Osibuamhe afirma que, desde que eles se casaram, em 1997, Emmanuel a espancou mais de 60 vezes. Ele a espancou quando ela estava grávida do filho deles, que hoje tem 6 anos. Ele atirou uma lanterna nela. Em outra ocasião, ela contou, ele segurou uma faca contra sua cabeça, enquanto um amigo implorava para que não a matasse.
Emmanuel Osibuamhe, 36, hoje afirma ter errado ao bater em sua mulher. Entretanto, durante as duas horas de entrevista que concedeu, em seu escritório, ele insistiu que Rosalynn o conduziu a isso ao provocá-lo propositadamente. Caminhando de um lado a outro da sala, ele foi ficando cada vez mais agitado, recordando como sua mulher, nas suas palavras, desafiava a sua autoridade.
“Você não pode se imaginar batendo em sua mulher?”, perguntou. “Não pode se imaginar sendo levado a esse ponto? Mas há pessoas que empurram a gente para além do que a gente é capaz de suportar. Aí você se vê fazendo coisas que não devia. Pelo amor de Deus! Você é o homem, é o chefe da casa. Você precisa ter uma família que lhe obedeça.”
Para Emmanuel Osibuamhe, isso significa aceitar que ele é o chefe da família e é quem toma as decisões finais. Também significa que todos os bens devem estar em seu nome e, afirmou, que sua mulher tem de pedir a sua autorização para poder visitar a família dela.
Quando Isimeto-Osibuamhe finalmente procurou ajuda, as pessoas que ela procurou pareciam concordar com a visão de seu marido. Ela foi à polícia. “Me disseram que não sou menininha”, ela lembrou. “Se eu não quisesse continuar casada, deveria me divorciar”, foi outro argumento que afirma ter ouvido.
Ela contou a seu sogro, que lhe respondeu que “espancar a mulher é normal”. Ela contou ao pastor da igreja, que a aconselhou a não deixar seu marido tão irritado. “Ele me disse que, seja o que fosse que meu marido dissesse, deveria aceitar.”
Isimeto-Osibuamhe finalmente encontrou apoio no Projeto Alerta para a Violência contra as Mulheres, a organização sem fins lucrativos que mantém um dos dois abrigos nigerianos. Ela passou semanas no abrigo. Escreveu um relato detalhando a violência que sofreu e o intitulou “Um grito de socorro”.
Briget Osekwe, responsável pelo programa da organização, disse que os arquivos do grupo contêm 200 casos como os de Isimeto-Osibuamhe. Mesmo algumas mulheres que são economicamente independentes, como Isimeto-Osibuamhe, disse ela, hesitam em divorciar-se de seus maridos, por temerem ser alvos de repúdio social.
“Nesta sociedade uma mulher precisa fazer tudo o que pode para fazer seu casamento dar certo”, disse Josephine Effah-Chukwuma, que criou o Projeto Alerta em 1999. “Se o casamento fracassa, a culpa cai sobre a mulher.”
Isimeto-Osibuamhe conta que, desde que saiu de casa, seu marido já lhe bateu uma dúzia de vezes. Em uma dessas vezes, a derrubou no chão da igreja. Ela se angustia porque não sabe dizer se é possível que ele mude. Ela se preocupa em saber como vai criar seu filho, que hoje vive com os avós, no caso de se divorciar. “Será que eu deveria ficar em casa por causa do menino, correndo o risco de ser morta?”, indagou. Em outro momento, porém, ela pediu à repórter que não deixasse de colocar seu sobrenome ligado ao do marido.
Isimeto-Osibuamhe encontrou uma nova maneira de extravasar seus sentimentos, criando e apresentando um programa justamente sobre violência doméstica na televisão local.
Ela conta que, depois do primeiro dia em que o programa foi ao ar, recebeu uma enxurrada de telefonemas de mulheres em situação semelhante à dela. Ela espera defender a causa dessas mulheres através de uma fundação que criou, chamada Família Feliz.
“O homem africano acha que sua mulher é um bem que lhe pertence, como um carro, um sapato — algo que ele pode pisotear”, disse Isimeto-Osibuamhe.
“Nossos homens precisam ser educados. Nossos pais, nossas mães e nossos filhos, também. Toda a nossa sociedade precisa passar por uma reforma.”
(Tradução de Clara Allain)
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O meu comentário provocador recebeu a seguinte resposta de alguém chamada Darlana, de algo chamado PET Educação, da UnB:
“O homem nigeriano acredita que a mulher é inferior a ele. Desde a primeira infância, os meninos têm preferência sobre as meninas. Mesmo quando os homens se casam por amor, eles ainda pensam que a mulher está abaixo deles e ainda fazem o que bem entendem”, completou Obong Akpan.
Considerar inferior o que é diferente é o que causa este tipo de relação….
Darlana
PET Educação UnB”
Respondi assim:
“Darlana:
(Presumo que esse nome seja de uma mulher)
O indivíduo não bate na mulher porque ele acha que ela é inferior a ele: bate porque acha que é dono dela.
Se você for para a África, se casar com um africano desses, e ele lhe descer o sarrafo diariamente, por motivos como o que a comida que você fez ficou um pouco salgada, espero que continue ainda achando as culturas todas iguais. E boa sorte. Espero que sobreviva. Vai precisar da sorte que lhe desejo.
–Eduardo”
Darlana retorquiu:
“Quem disse que ele batia na mulher por considera-la inferior foi o entrevistado da materia que você enviou…não fui eu…
E ainda acredito que essa postura de rotular as pessoas como superior e inferior é muito prejudicial a bons relacionamentos. Minha bisavó apanhou muito de meu bisavô por causa da comida mal feita… Meu marido lava, passa cozinha e limpa casa… Os tempos mudam… As pessoas mudam… Mas não me considero superior a minha bisavó… Apenas diferente.
Darlana”
Eu respondi:
“Darlana,
Se você olhar lá embaixo nesta série de mensagens, o que eu falei foi:
“E os relativistas de plantão continuam a afirmar que nenhuma cultura superior — ou inferior — às outras”.
Em nenhum momento falei que pessoas são superiores umas as outras.
Mas já que você mencionou, há um aspecto básico em que todos os seres humanos são iguais: em sua humanidade e na dignidade de que ela é merecedora — até que o ser humano se animalize.
Feita essa marcação de posição em favor de uma igualdade em dignidade, em tudo o mais os seres humanos diferem um dos outros e são superiores e inferiores uns aos outros. O Robinho é superior a mim quando se trata de jogar futebol. Eu sou superior a ele no que diz respeito a conhecimento filosófico. O Marcelo Anthony é superior a mim em aparência física (seja lá como ela for definida), o Cafu em resistência física (seja lá como ela for definida), o Gustavo Borges em altura e em capacidade natativa (se posso usar essa expressão). Negar essas coisas é afrontar a realidade.
Lastimo que sua bisavó tenha apanhado de seu bisavô por comida mal-feita. Provavelmente muitas mulheres apanhavam assim naquele tempo. E você tem sorte de viver em uma cultura em que os maridos se dispõem a lavar, passar, cozinhar e limpar a casa. Minha pergunta era: você prefere viver numa cultura como aquela em que sua bisavó vivia (ou em que as mulheres africanas vivem) ou em uma cultura como a nossa (apesar de também ter vários defeitos). Se você fizer a opção que eu imagino que você fará, você a fará porque nossa cultura, em que maridos (alguns, pelo menos) ajudam suas mulheres nos afazeres domésticos em vez de bater nelas por não realizarem esses afazeres de forma bem-feita, é superior à cultura em que vivia sua bisavó (e em que vivem as mulheres africanas).
Foi só isso que eu disse. Cuide bem de seu marido. Ele merece.
–Eduardo”
Um outro membro da lista, chamado Roberto, da Universidade Federal da Bahia, interveio na discussão:
“Eduardo, Darlana,
Os absolutistas de plantão costumam afirmar que há culturas superiores e inferiores. Esse é o primeiro passo que permite julgar culturas, estabelecer um etnocentrismo que posterioremente justifica a intervenção em cultura de outros e, historicamente chegar até geonocídio. Foi o que aconteceu com os nazistas e pode acontecer conosco, vide mais abaixo o livro de leitura sugerido.
Eduardo: Robinho não é superior a você ao jogar futebol. Robinho tem uma habilidade superior a sua em algumas maneiras (pode ser quase todas) de jogar futebol. Você é muito mais que alguém que joga futebol. É importante não confundir as coisas.
Se pegarmos isoladamente, a nossa cultura permite o espancamento de crianças, ou chantagens emocionais para educação. Parte dos nossos índios brasileiros têm uma paciência extraordinária e nunca espancam crinaças. Logo eles tem uma cultura superior a nossa. Pegar traços isolados de uma cultura e querer com outra é falacioso.
Por fim leiam o livro “Cobaias Humanas – A História Secreta do Sofrimento Provocado em Nome da Ciência” de Andrew Golistzek, Ediouro, 2004, 534p.
Trata de inúmeros experiências efetuadas por cientistas e agentes oficiais dos governos (inclusive americano) sobre seres humanos. A quantidade de casos documentados é enorme. Apesar do título ser a história SECRETA, pode ser considerada como aberta, vez que, muitas das experiências dos cientistas foram publicadas em periódicos internacionais e lidos por seus pares. O autor é professor da Universidade Estadual A&T da Carolina do Norte, EE.UU.
Depois de ler esse livro acho muito difícil alguém ainda pensar em superioridade cultural.
Abraços,
Roberto”
A esse e-mail eu respondi com as seguintes considerações (esclarecendo que Axel era ainda um outro membro da lista que também interveio na discussão, concordando comigo).
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“Roberto e Darlana:
Minha mensagem é longa e, por vezes pode parecer pedante e condescendente. Como dizia Groucho Marx, não se enganem: ela É isso… Quem ler daqui em diante saiba disso. Se se irritar, lembre-se de que foi advertido antes…
A mensagem discutirá três grandes questões: a questão do relativismo vs absolutismo na discussão de culturas, a questão da natureza e da forma da discussão racional, e a questão da natureza da cultura e o problema dos valores. E terminará com duas conclusões.
Vamos, portanto, por partes.
I) A Questão do Relativismo vs Absolutismo na Discussão de Culturas
Acho gozado…
O Roberto parece ser contra o que se poderia chamar de absolutismo — pelo menos é o que se depreende de sua referência, em tom pejorativo, aos “absolutistas de plantão” na discussão da prática cultural que deu início à discussão, a saber, o espancamento de mulheres, que, segundo matéria jornalística transcrita, é a norma na África.
No entanto, se eu sou absolutista, o Roberto também o é, e com maior razão, como procurarei argumentar nesta seção.
Vejamos.
Eu afirmo (e o Axel endossa) o seguinte enunciado: “Há culturas que são superiores a outras”.
Esse enunciado não é universal: ele é claramente particular (e afirmativo). Analisado logicamente ele é do tipo “Algum x é y” e quer dizer, simplesmente, aquilo que de fato diz, que “há culturas que são superiores a outras”.
Pode ser que essa afirmação seja absolutista. Eu não acho que seja e estou disposto a mostrá-lo, eventualmente, em outra mensagem, mas não vou fazê-lo aqui, para não complicar desnecessariamente uma discussão em si já complicada.
Advirto neste ponto que há em lógica algo chamado de “quadrado das contradições”, que vou pressupor nos parágrafos que seguem.
A negação lógica (por contrariedade) do enunciado particular afirmativo expresso por mim e pelo Axel (“Há culturas que são superiores a outras”) é feita por um enunciado particular negativo do tipo “Algum x não é y”: “Há culturas que não são superiores a outras”. A negação (por contrariedade) daquilo que eu afirmei se contém, portanto, na afirmação de que há culturas que são iguais a outras — afirmação a meu ver incontroversa e, de resto, totalmente chocha. Estou convicto de que, como o meu enunciado original, esse enunciado particular negativo que o nega (por contrariedade) também não é absolutista, mas não vou brigar por isso agora.
Uma coisa porém é evidente. Para contestar o que eu afirmei, não basta ao Roberto negar (por contrariedade) o que eu disse: ele precisa contradizer o que eu afirmei.
A contradição lógica de um enunciado do tipo “Algum x é y”, particular afirmativo, como o que eu fiz, se expressa em um enunciado universal negativo, do tipo “Nenhum x é y”.
Há uma diferença ENORME entre a condição de negação (por contrariedade) e a condição de contraditoriedade. Por exemplo: Os enunciados dos tipos “Algum x é y” e “Algum x não é y” podem ser ambos verdadeiros com uma substituição coerente de x e y. No entanto, os enunciados dos tipos “Algum x é y” e “Nenhum x é y” são podem ser ambos verdadeiros com uma substituição coerente de x e y: se um é verdadeiro, o outro é necessariamente falso (e vice-versa).
É por isso que, para me contradizer, o Roberto é forçado a fazer uma afirmação claramente universal e negativa: “Nenhuma cultura é superior a outra”.
Eu afirmo: “Há culturas que são superiores a outras”. O Roberto afirma: “Nenhuma cultura é superior a outra”. Qual desses dois enunciados, pergunto, é absolutista? Não tenho a menor dúvida de que é o segundo.
Ainda que se conceda, “ad argumentandum”, que o meu enunciado, particular e afirmativo, também seja absolutista, o do Roberto, universal e negativo, é claramente mais absolutista (por abranger todas as culturas). (Pessoalmente, e em coerência com minha tese, não defendida aqui, de que o primeiro desses dois enunciados não é absolutista, acredito que o “absolutismo” seja parecido com a gravidez: ou se está grávida ou não se está grávida, não há gradações — embora, no dia-a-dia, digamos que fulana está mais grávida do que sicrana se estiver grávida há mais tempo, ou se sua barriga estiver maior, coisas assim.)
E aqui está o que acho gozado nessa discussão: a afirmação que o Roberto se vê obrigado a fazer, nessa disputa, é universal e absoluta, enquanto a afirmação que me é suficiente não precisa sê-lo, bastando ser particular. (Como disse, se o Roberto pretender sustentar que minha afirmação original é absolutista, concedo, apenas “ad argumentandum”, mas daí sou forçado a recorrer à tese de que há gradações no absolutismo, e que a afirmação do Roberto é mais absolutista do que a minha. Em suma: neste caso, estaríamos os dois brigando como se fôssemos irmãos, apenas para determinar quem é mais absolutista do que o outro! O Axel certamente conhece a brincadeira do “qui pisse le plus loin”).
Não estou entre os que sustentam a tese de que na Bahia tudo é possível. Logo, não acredito que a Universidade Federal da Bahia tenha abolido a lógica sem que eu houvesse ficado sabendo. Se isso é verdade, no entanto, o Roberto é absolutista, “malgré soi”.
II) A Questão da Natureza e da Forma da Discussão Racional
Passo a discutir uma outra questão, relacionada a esta que venho discutindo, e relevante para ela.
O Axel é meio implicado contra o Popper, mas a grande contribuição de Popper é que ele deixou claro que o método de discussão racional é hipotético-dedutivo. Esse método inclui, como um caso particular, o chamado método científico.
Os enunciados gerais da ciência (teorias e leis) são tipicamente universais, do tipo “Todo x é y” e “Nenhum x é y”. Esses dois tipos de enunciados implicam, lógica e necessariamente, estes dois tipos de enunciados, respectivamente: “Algum x é y” e “Algum x não é y”.
(Parêntese. Saiamos da abstração e caiamos na concretude. O enunciado universal afirmativo “Todo brasileiro é cordial” implica o enunciado particular afirmativo “Algum brasileiro é cordial”. Se o primeiro é verdadeiro, o segundo necessariamente também é — embora a recíproca claramente não se aplique — e se o segundo é falso, o primeiro necessariamente também é — embora a recíproca claramente também não se aplique aqui. O enunciado universal negativo “Nenhum brasileiro é cordial” implica o enunciado particular negativo, “Algum brasileiro não é cordial”. Novamente, se o primeiro é verdadeiro, o segundo necessariamente também é — embora a recíproca claramente não se aplique — e se o segundo é falso, o primeiro necessariamente também é — embora a recíproca claramente também não se aplique aqui. Fim de parêntese.)
Um enunciado universal afirmativo, no entanto, é contraditado por um enunciado particular negativo, e um enunciado universal negativo é contraditado por um enunciado particular afirmativo. Neste caso, se um é verdadeiro o outro é falso e se um é falso o outro é verdadeiro — e vice-versa.
(Outro parêntese. O enunciado universal afirmativo “Todo brasileiro é cordial” é contraditado pelo enunciado particular negativo “Algum [pelo menos um] brasileiro não é cordial”. Isto é: se eu encontrar um brasileiro só que não seja cordial, eu refuto a afirmação de que todos são. Por seu lado, o enunciado universal negativo “Nenhum brasileiro é cordial” é contraditado pelo enunciado particular afirmativo “Algum [pelo menos um] brasileiro é cordial”. Isto é: se eu encontrar um brasileiro só que seja cordial, eu refuto a afirmação de que nenhum é. E vice-versa. Fim do parêntese.)
Voltando a Popper, a forma de argumentar que sustenta a discussão racional, inclusive (mas não exclusivamente) na ciência, nos leva a buscar enunciados particulares (afirmativos ou negativos) que refutem enunciados universais (negativos e positivos).
A tese que os chamados relativistas culturais defendem, curiosamente (como vimos), é uma tese universal negativa — que, como tal, tem caráter absolutista: “Nenhuma cultura é superior à outra”.
Para contraditar, e, conseqüentemente, refutar, essa tese, basta achar uma cultura que seja superior a outra. Uminha só. Ainda que seja num só aspecto ou em relação a um só traço — “et ceteris paribus”, isto é, outras coisas sendo iguais.
III) A Questão da Natureza da Cultura e o Problema dos Valores
Em sua mensagem o Roberto afirma algo que gostaria de contestar em parte. Diz ele:
“Pegar traços isolados de uma cultura e querer [comparar] com outra é falacioso”. (A palavra em colchetes faltou na mensagem dele, mas acho que se pode presumi-la).
Concordaria plenamento com o Roberto se a afirmação dele fosse que é falacioso pegar um traço isolado e, a partir dele, generalizar. Mas essa afirmação (que não é a que ele fez), embora verdadeira, não é relevante aqui.
Não usei o relato de espancamento de mulheres na África para, a partir dele, generalizar, afirmando (por exemplo) que todas as culturas africanas aceitam o espancamento de mulheres como norma.
Quando transcrevi o relato de que na África o espancamento de mulheres é norma, e acrescentei meu comentário de que, apesar disso, “os relativistas de plantão continuam a afirmar que nenhuma cultura é superior — ou inferior — às outras”, estava afirmando, implicitamente, apenas o seguinte:
* Há culturas em que o espancamento de mulheres (por motivos até triviais, como o fato de que a comida ficou salgada demais) é considerado normal;
* Há culturas em que o espancamento de mulheres (por qualquer motivo, até mesmo a traição conjugal) é considerado inadmissível;
* Uma cultura do primeiro tipo é claramente diferente de uma cultura do segundo tipo, ainda que em todos os demais aspectos sejam idênticas;
* Uma cultura do primeiro tipo é não só diferente: é inferior a uma cultura do segundo tipo, em relação a esse aspecto específico (ainda que sejam idênticas em todos os demais aspectos, ou ainda que haja outros aspectos, não focados na discussão, em que a cultura do primeiro tipo de cultura seja superior);
* Logo, há culturas que não só são diferentes mas que são superiores ou inferiores a outras (em relação a determinados aspectos);
* Logo, a tese universal negativa do relativismo cultural, de que nenhuma cultura é superior a outra, está refutada, pois encontramos pelo menos um exemplo de uma cultura que é superior a outra — evidentemente, no aspecto em discussão.
A Darlana respondeu à minha mensagem original afirmando que eu estava considerando como inferior apenas o que era diferente. Em minha resposta a ela, procurei mostrar que, mesmo segundo os valores DELA, uma cultura que não aprova e considera normal o espancamento de mulheres é não só diferente, mas superior a uma que aprova e considera normal esse tipo de prática.
Há três questões importantes que merecem ser mencionadas para que esta mensagem seja encerrada — permitindo que a discussão continue.
Primeiro, a complexidade dos traços que incluímos no termo “cultura” é enorme. Tudo o que é feito pelo homem, e, portanto, não é natural, é parte da cultura, no sentido mais amplo do termo. Logo, a quantidade de traços envolvidos ao se falar em uma determinada cultura é inacreditavelmente grande. Ao se comparar uma cultura com outra, é literalmente impossível comparar todos os traços de uma com todos os traços da outra.
Na verdade, se tentarmos falar de uma cultura específica, não em termos de traços essenciais e característicos, mas em termos da totalidade dos traços que definiriam uma cultura, nos perderemos. Se pensarmos na totalidade dos traços, não existe uma cultura ocidental ou européia ou mesmo uma cultura brasileira, pois há traços em que a cultura francesa claramente difere da alemã e da inglesa como há traços em que a cultura gaúcha difere da cultura do sertanejo nordestino no Brasil.
Por isso, quando falamos em cultura, qualificando o termo com um adjetivo que se refere a uma região geográfica, estamos em geral pensando em algumas de suas características que nos parecem essenciais — não na totalidade dos traços que definiriam aquela cultura.
Segundo, quando falamos de relativismo cultural não queremos, portanto, focar traços como, por exemplo, o fato de que no Japão se escreve da direita para a esquerda enquanto nós escrevemos da esquerda para a direita. O que queremos focar, ao discutir essas questões, são valores — valores morais, em especial, questões relativas a condutas que consideramos moralmente certas, e, portanto, louváveis, e condutas que consideramos moralmente erradas, e, portanto, condenáveis ou censuráveis. São essas questões que são importantes.
Terceiro, mesmo em relação aos valores morais, cada cultura apresenta uma variedade tão surpreendente que torna impossível abranger, num determinado momento, todos os seus valores morais (aqui entendidos como traços culturais). Assim sendo, comparamos duas ou mais culturas em relação a determinados valores ou conjuntos de valores — como, por exemplo, sua relação para com as mulheres, ou para com as crianças, ou para com os velhos, etc. Ao concluir que uma cultura é superior ou inferior a outra, em relação a determinado valor ou conjunto de valores, não se está fazendo uma avaliação geral de todos os traços culturais das respectivas culturas, nem mesmo de todos os valores morais.
Assim sendo, o fato, se é fato, de que a cultura dos índios brasileiros não aprova o espancamento de crianças, trazido à baila pelo Roberto, curiosamente só mostra que a cultura indígena, nesse aspecto, é superior a outras culturas que aprovam esse espancamento — tese que é contrária àquela que ele pretende estar defendendo. Não tem nada que ver com a questão que estava sendo discutida, que era o de que as culturas africanas que consideram normal o espancamento de mulheres estão erradas, do ponto de vista moral, e, por isso, merecem censura e condenação, e que esse fato as torna, nesse aspecto, inferior a culturas que não consideram essa prática normal. Idem sobre a clitoridectomia (remoção do clitóris) e a infibulação (costura da vagina). (Quem tem dúvida sobre o sentido desses dois termos, procure no Google “clitoridectomy” e “infibulation” e veja as descrições, os gráficos e as fotos. É preciso ter estômago).
IV) Conclusão
Em nenhum momento afirmei que a cultura européia ou ocidental no seu todo, isto é, na totalidade dos seus traços, fosse superior à totalidade dos traços de outras culturas. Afirmar algo assim seria temerário e irresponsável. O que chamamos de cultura européia ou ocidental é tão abrangente e complexo que nem sequer conseguimos conhecer e descrever todos esses traços. Além disso, em relação aos poucos traços que conhecemos melhor, há muita divergência, de modo a permitir que falemos de várias culturas que compartilham alguns traços essenciais. O fato de a cultura européia ou ocidental ter traços que são comprovadamente superiores a traços de outras culturas não exclui o fato de que ela também tenha traços em que é comprovadamente inferior a outras culturas. Isso é tão óbvio que fico até constrangido de dizer. Conseqüentemente, o livro sugerido pelo Roberto é irrelevante — embora possa ser de leitura muito instrutiva.
Uma observação final. Nós temos, como seres humanos, não só o direito como o dever de julgar, avaliar, comparar, decidir, e escolher. O relativismo moral e cultural que pretende nos impedir de fazer julgamentos morais e culturais é uma tentativa de nos eximir não só de um direito, mas de uma responsabilidade que é inerente à condição humana.
As mulheres africanas, vítimas de espancamento, esperam que tenhamos sensibilidade moral e exerçamos nosso dever de condenar moralmente essa prática. Adotar o relativismo moral pode ser uma atitude cômoda (“isso é problema da cultura deles”) mas é irresponsável.
Bertrand Russell, por muitos considerados o maior filósofo europeu ou ocidental do século XX, sucumbiu à tentação relativista. Quando fazia 90 anos, afirmou algo mais ou menos assim (cito de memória): O que me leva a condenar Hitler por ter levado ao holocausto mais de seis milhões de judeus não é o fato de que eu considere moralmente errado o que ele fez, mas, sim, simplesmente o fato de que eu não gosto desse tipo de ação e, no lugar dele, não o faria.
Eu, que admiro o pensamento de Russell em outros aspectos, prefiro imaginar simplesmente que o velho estava caduco a crer que fosse tão irresponsável moralmente.
–Eduardo”
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Transcrito em São Paulo, 5 de Janeiro de 2012
Relendo, ocorreu-me mais um comentário. A Darlana afirma que não se considera superior à sua bisavó. Nenhum fato mencionado justificaria que se considerasse. O que os fatos relatados justificariam é que ela considerasse a conduta de seu marido superior à do seu bisavô…
-Eduardo
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