Relíquias de Tempos Digitais que (Felizmente) não Existem Mais

Os que me acompanham aqui no Facebook sabem que estou no processo de abrir umas ‘trocentas’ caixas de livros e papeis que, já faz quase três anos, estão enchendo até o teto um dos quartos (o maior, exceto pelo meu) aqui do sítio.

Com as novas estantes montadas, estamos começando a abrir as caixas. Este post, denominado “Relíquias”, registra coisas interessantes que vou descobrindo no processo e que mostram quão rapidamente o mundo mudou nos últimos — digamos — 30 anos. A história começa em 1983.

A seguir, três relíquias.

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RELÍQUIA 1 (1983)

No domingo, 4 de Setembro de 1983, a Folha de S. Paulo publicou, em seu Terceiro Caderno, que então tratava de Generalidades, na fl. 27, um longo artigo que tinha o seguinte título: “Computador chega na redação da ‘Folha'”. O subtítulo ressalta: “Sistema permite rápido trabalho de edição”. Uma foto panorâmica, composta de três imagens, mostra alguns “monstros” (do ponto de vista de hoje) e tem a seguinte legenda: “À esquerda, sala central dos computadores; à direita, editoria geral; no alto, a Folha Ilustrada sendo editada”. Note-se que os computadores não estavam distribuídos pela redação: eles tinham uma “sala central”. Só a “editoria geral” tinha alguns terminais.

Vou transcrever apenas algumas partes da longa matéria. (O marketing da Folha pode não ser bom, mas ele sempre é extenso).

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“Há algumas semanas, uma pequena nota no Painel da ‘Folha’ vem pedindo desculpas pelos eventuais erros gráficos que têm aparecido no jornal. Mas eles se justificam. São resultado da fase inicial de implantação, entre nós pioneira, com similar apenas nos grandes jornais dos Estados Unidos, Europa e Japão: [sic; faltou algo aqui] um sistema de terminais de vídeo nas redações e oficina, responsável pela produção e edição de jornais, e que determinará, a curto prazo, a própria sobrevivência de empresas jornalísticas, na busca de um produto cada vez mais ágil, moderno e inteligente.

Com apenas dois meses de funcionamento experimental, 52% das matérias publicadas pela ‘Folha’ e 50% das matérias publicadas pela ‘Folha da Tarde’ são produzidas e editadas diretamente pelo novo sistema. A totalidade das reportagens produzidas pelos jornalistas da Agência Folhas, assim como artigos de colaboradores e críticos, é transmitida diretamente nos terminais de computadores.

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Em dois meses, as sucursais da ‘Folha’ já estarão operando com terminais e remetendo, pelo telefone, os impulsos que serão captados diretamente pela central de computadores e distribuídos a todos os jornais da empresa.

. . .

“O sistema ‘Folha’ de terminais — afirma [o engenheiro Pedro Pincirolli Júnior, responsável por toda a área de produção da empresa Folha da Manhã S/A] veio trazer velocidade e autencididade [!] maior às informações, uma vez que nos permitiu eliminar etapas no processo industrial gráfico e, também, que o jornalista falasse diretamente com seu público leitor”.

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Muita coisa curiosa aqui.

Primeiro, os erros são sempre devidos ao “sistema”, nunca a falhas cometidas pelos profissionais.

Segundo, embora o ano fosse 1983, e os microcomputadores já estivessem conosco há cerca de seis anos (apareceram em 1977), nenhuma menção deles. Fala-se apenas em terminais de um equipamento central. E, pelo que transparece, os terminais eram “terminais burros”, isto é, incapazes de realizar qualquer processamento localmente. O curioso é que a matéria, que foi feita sob o beneplácito de Caio Túlio Costa, um de dois Secretários da Redação da “Folha” e exatamente aquele designado como “responsável pela implantação dos terminais de vídeo na redação da ‘Folha'”, não parece ter nenhuma ideia de que os terminais de vídeo burros pudessem vir a ser substituídos, primeiro, por terminais inteligentes e, depois, por microcomputadores, e que o modelo computador-central e terminais poderia ser substituído por um sistema de redes locais de microcomputadores com capacidade plena de processamento local, interligadas e conectadas a vários computadores de maior porte, que armazenariam grandes bases de dados, e que, por sua vez, estariam ligadas a uma rede de maior alcance…

Terceiro, embora a Internet tivesse surgido em 1969, era, ainda, um brinquedo acadêmico-militar. Só as universidades americanas que prestavam serviços ao sistema militar tinham acesso a ela. Seriam necessários mais dez anos para que Al Gore, então (1993) Vice-Presidente de Bill Clinton, comprasse a briga que viria a tirar a Internet — não sem grandes resistências — do controle acadêmico-militar e coloca-la à disposição do universo empresarial e pessoal. Apesar de não “topar” o Al Gore, considero-me devedor à sua coragem por ter comprado essa briga e ajudado a criar, em 1993, nos Estados Unidos, a “Internet Comercial”. Da mesma forma, considero-me devedor a Sérgio Motta, o “Serjão”, Ministro das Comunicações de FHC, por ter comprado a mesma briga em relação à Embratel e ao Sistema Telebrás e criado a “Internet Comercial Brasileira”. Uma empresa de Campinas, a DGL-Net, foi o primeiro provedor de acesso à Internet Comercial Brasileira, até então controlada pelo Sistema Telebrás, via Embratel. Também não “topava” o “Serjão”, que sempre me pareceu um troglodita, mas considero-me devedor também a ele pelo que fez — algo que deve ter-lhe custado tanto stress que ele morreu logo depois de enfarte. (É verdade que o tamanho horizontalmente gigantesco dele deve ter contribuído).

Quarto, o texto fala em sobrevivência das empresas jornalísticas frente aos concorrentes, mas não vislumbra que a Internet seria seu maior concorrente e o “jornal virtual”, com suas informações instantâneas, que não precisam esperar pela edição diária do jornal convencional, o seu maior desafio. O texto não dá o menor sinal de que um dia o leitor poderia preferir ler as informações também diretamente na tela, sem precisar de um jornal impresso, ou até mesmo sem precisar de que um empresa jornalística compilasse as notícias e opiniões em um jornal virtual para ele.

Tudo isso, há 30 anos apenas. Quatro dias antes de eu completar os meus 40 anos.

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RELÍQUIA 2 (1988)

Em 1988 eu era Diretor do Centro de Informações e Informática (CIIS)  da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. A Secretaria era totalmente dependente da PRODESP — Processamento de Dados do Estado de São Paulo, estatal que fazia todo o processamento de dados para o governo do estado e seu vários órgãos, da Administração Direta e da Administração Indireta.

A Secretaria da Saúde era ocupada pelo médico José Aristodemo Pinotti, o governador era Orestes Quércia, amigo pessoal de Pinotti, e a todo-poderosa Secretária Pessoal e Chefe de Gabinete do Governador era Ana Maria Tebar, amiga pessoal dos dois e de mim também. Dos quatro, só restamos ela e eu.

Assim, eu estava, naquele momento, em situação especialmente favorável para começar, se não uma revolução, pelo menos uma revolta, dentro desse sistema.

Propus, em primeiro lugar, a compra, por licitação, (a) de três mini-computadores (na época tinham de ser equipamentos produzidos pela indústria nacional), para a sede, (b) de 300 microcomputadores para serem distribuídos pelos usuários centrais e pelos usuários remotos, nas regionais da Secretaria, e, por fim, (c) de 300 cópias de MS-DOS, de MS-Word, de MS-Excel, de MS-PowerPoint e de MS-Access.

Foi um rebu.

No tocante aos minicomputadores, o protesto foi de que a PRODESP detinha direito exclusivo de processar os dados dos órgãos estaduais. No tocante à compra dos microcomputadores, o mesmo argumento foi usado: em vez de microcomputadores, deveríamos aquirir terminais (burros) dos computadores da PRODESP. No tocante ao sofware da Microsoft, o protesto foi diferente. Além de se argumentar que não precisaríamos dele, porque estaríamos usando os terminais burros da PRODESP, argumentou-se que, mesmo que fosse autorizada a compra dos microcomputadores, deveríamos usar software nacional (como previa a legislação de “Reserva de Mercado para Empresas Genuinamente Nacionais), como, por exemplo, o sistema operacional SISNE, um processador de textos supostamente nacional, o Carta Certa, o Saci, uma planilha eletrônica também supostamente nacional, o gerenciador de base de dados supostamente nacional, Dialog (uma cópia deslavada de dBase II/III). Não havia, que me lembre, nenhum produto supostamente nacional que substituísse PowerPoint.

A briga ficou feia.

O Secretário Pinotti me apoiou e apelou ao Governador Quércia. Eu, nos bastidores, acionei Ana Maria Tebar. Quércia, que era um prodígio em termos de capacidade de lidar com assuntos complicados, decidiu criar o Conselho Estadual de Informática (CONEI), para reduzir o poder da PRODESP. Fui nomeado para ele (com outras pessoas amigas do Governador). A solicitação da Secretaria da Saúde foi submetida ao CONEI, que a aprovou.

Estava quebrado o monopólio da PRODESP dentro do Estado.

A SISCO ganhou a licitação para os minicomputadores, a Prológica para os microcomputadores, e a empresa que representava a Microsoft no Brasil (a Microsoft ainda não tinha subsidiária aqui) ganhou a licitação para o software.

Mas havia mais um problema.

Naquela época a Secretaria da Saúde tinha de coletar informações rotineiramente sobre vinte e seis moléstias de notificação compulsória — e tinha de encaminhar essas informações à World Health Organization – WHO (Organização Mundial da Saúde – OMS) em Genebra. Acho que ainda tem — e que o número de moléstias de notificação compulsória aumentou. As informações eram encaminhadas em papel pelo Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) — embora a WHO, através de sua divisão de Information Systems Support – ISS, dirigida por um ex-profissional da IBM, Dr. Salah Mandil, do Sudão, estivesse plenamente equipada para receber esses dados por telecomunicações.

Entrei em contato com Mandil, que logo se tornou meu amigo, e fiquei sabendo o que tínhamos de fazer para enviar os dados para a WHO por telecomunicações.

O problema, porém, não era do lado da WHO: era do nosso lado.

O governo brasileiro — já não mais o governo militar, mas o governo da chamada Nova Republica, presidido pelo José Sarney, não havia ainda conseguido revogar a “herança nefasta” do período militar.

O governo brasileiro tinha um departamento, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), chamado de TransBorder Data Flow (TBDF), que controlava o Fluxo de Dados Trans-Fronteiras. A SEI, na “Nova República”, estava vinculada ao MCT. Ou seja, o governo imaginava que era capaz de controlar cada bit que entrava no Brasil ou saía do Brasil. Assim, para enviar os relatórios mensais de moléstias infecciosas para a WHO em Geneva, tive de solicitar permissão ao Governo Federal. Fiz isso. Eis a resposta que recebi em 24//3/1988:

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“Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT)

Conselho Nacional de Informática e Automação (CNIA)

Secretaria Especial de Informática (SEI)

Certificado SAE no. 028/88

A Secretaria Especial de Informática – SEI certifica que se pronunciou favoravelmente quanto ao estabelecimento de ligação internacional para comunicação de dados com as seguintes características básicas:

INTERESSADO: Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo

TIPO DE LIGAÇÃO: Uma ligação internacional, via nó internacional (RENPAC/INTERDATA), a 1200 bps

LOCALIDADES LIGADAS: São Paulo-SP e a Organização Mundial da Saúde em Genebra.

O presente certificado é expedido com base nas informações e dados constantes do Proc. SEI no. 51746/87-5 (374), e expira em 15/3/1991.

Brasília-DF, 24 de Março de 1988

Kival Chaves Weber, Secretário Executivo

Dorgival S. Brandão Júnior, Sub-Secretário de Atividades Estratégicas”

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Para obter esse aval, tive de me comprometer, através de “TERMO DE COMPROMISSO”, de 24/2/1988, a não usar o link com a WHO para outros fins, e de me declarar ciente de que, se o link fosse usado para outros fins, seria imediatamente cancelado.

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RELÍQUIA 3 (1993)

A revista Newsweek de 5/4/1993, vinte anos atrás, publicou, como matéria de capa, um artigo com o título “Wiring the World” (Cabeando o Mundo) [fls. 26 e seguintes]. Newsweek era publicada pelo conglomerado The Washington Post. A matéria procurava mostrar que o mundo estava sendo interligado, e que, dentro de pouco tempo, estaria todo interligado por fios e cabos.

Na semana seguinte, em 12/4/1993, a revista Business World, uma das principais concorrentes de Newsweek, publicou, como uma matéria de capa, um artigo com o título “Wireless World” (Mundo sem Fios). Business Week era publicada por McGraw-Hill Publications.

Business Week faturou. Demonstrou ter uma percepção mais precisa do que estava ocorrendo. O mundo de fato estava fincando interligado — mas a interligação se daria prioritariamente sem fios, via satélites.

É verdade que Newsweek acrescentou uma pequena matéria, nas fls. 32-33, a “Wireless Age” (A Era Sem Fios), mas a matéria criava no leitor a impressão de que o “wireless” seria a exceção, não a regra, e que se aplicaria unicamente aos telefones celulares, não aos computadores. Consequentemente, nenhum sinal dos “SmartPhones”, os telefones que são computadores e que operam basicamente sem fios, e que tenderiam, em termos de número, a suplantar os computadores interconectados, e conectados à Interenet, por fios e cabos.

E o ano era 1993 — o ano em que Al Gore daria sua inestimável contribuição à Revolução Digital.

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É isso. Por enquanto. É verdade que, olhando pelo retrovisor, é bem mais fácil. Mas quem sabe ainda acho mais relíquias.

Em Salto, 15 de Janeiro de 2014.

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