O autor da Carta aos Hebreus [Paulo, ou qualquer outro, não faz diferença] afirma, em celebrada passagem, que “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem ” (Hebreus 11:1).
Concordo, em parte – e, mesmo assim, mais ou menos.
Concordo que a fé tenha que ver com estados de coisas que se esperam – mais do que isso, que se desejam [ardentemente] – mas cuja realidade (ou facticidade) nossos meios de percepção não são capazes de confirmar. [Paul Tillich, em Dynamics of Faith, prefere falar em estados de coisas que consideramos tão importantes que os identificamos como nosso “interesse maior” (ultimate concern).]
A fé, portanto, tem que ver, acima de tudo, com a esperança [– com a esperança revestida de desejo que contém nosso interesse maior. O objeto da fé não é qualquer coisa…]
Mas a fé, no meu modo de ver, e aqui discordo do autor do trecho bíblico, não tem que ver com certeza e convicção. O lugar da fé na vida das pessoas (seu Sitz im Leben) não é o terreno em que se cultiva a certeza (como na matemática) ou mesmo a convicção baseada na evidência (como na ciência empírica): é o terreno difícil e pantanoso da dúvida. Longe de ser incompatível com a dúvida, a fé só nasce em terreno que a dúvida preparou e cultivou.
A fé é a esperança de que determinado estado de coisa venha a acontecer, ainda que não tenhamos certeza de que de ele vá, ou até mesmo possa, acontecer, ainda que não tenhamos convicção alicerçada em evidência — ou mesmo quando a evidência, em vez de confirmar nossa esperança, pareça apontar na direção contrária.
A esperança que alicerça a fé tem de ser suficientemente forte para sustenta-la. Ela tem de ser uma esperança fundamentada no desejo – desejo que, por sua vez, é alimentado pelo amor. [O amor é a dimensão que se relaciona com o “interesse último” (ultimate concern) de Tillich.] O amor, o desejo, a esperança precisam ser suficientemente fortes para nos levar à ação. Uma ação que, sem ignorar a dúvida, prossegue como se a dúvida não estivesse lá – da mesma forma que o combatente, ainda que ferido, continua a lutar, como se não estivesse. A ação decorre da fé. . .
Mal comparando, talvez, usemos uma analogia.
Você ama alguém. Realmente ama. E, naturalmente, espera e deseja que esse alguém corresponda ao seu amor. Mas não tem certeza, não tem evidência “clara, distinta e inequívoca” de que o seu amor seja correspondido. Mas se o amor é suficientemente forte para sustentar uma esperança também forte, você age – age como se o amor que você espera e deseja estivesse de fato no outro coração. Se não agir, você provavelmente nunca irá descobrir. É só agindo, “como se“, que você vai poder descobrir. Você poderá descobrir, quando tudo vier a ser revelado, e você vier a conhecer a outra pessoa como se conhece a si próprio, que sua fé e sua esperança não foram em vão, e que o seu amor era, na realidade, correspondido. [Essa é a coragem da fé, de que fala Tillich.]
Ou, então, pode descobrir que não era. Esse é o risco da fé. A fé não só nasce da dúvida: ela sempre envolve risco.
É o amor [traduzido como interesse último] que nos dá coragem e que faz com que o risco da fé compense.
Em São Paulo, 15 de Março de 2014 [com pequenos acréscimos, colocados em colchetes, feitos em 17/3/2014].
POST SCRIPTUM de 17/3/2014:
Descontando um elemento de tietagem natural, meu sobrinho, Vitor Chaves, doutorando em Ciências da Religião na UMESP (Rudge Ramos), comentou na minha página no Facebook:
“Lindo texto, Tio! Fez-me pensar em Paul Tillich: o dúvida não é o oposto da fé, ela é parte integrante da fé que reconhece no mistério a dimensão existencial da vida. O oposto da fé é a idolatria, pois absolutisa as coisas finitas e passageiras.”
Perguntei a ele em que livro Tillich diz isso e ele me indicou Dynamics of Faith, que eu não só possuo como já li (em priscas eras). Fui consultar o livro, que estava na prateleira na frente do meu nariz…
Na Seção 5 (Faith and Doubt) do Capítulo I (What Faith is), Tillich de fato diz uma série de coisas muito interessantes que corroboram e estendem o que escrevi. Vou voltar a discutir essa questão.
Olhando agora para trás, e não para frente, encontrei dois posts deste blog em que já discuti a questão da fé:
Epistemologia da Fé – 1: http://liberalspace.net/2010/05/29/epistemologia-da-fe-1/
Epistemologia da Fé – 2: http://liberalspace.net/2010/05/31/epistemologia-da-fe-2/
O leitor interessado poderá achar a discussão interessante.
No segundo desses textos eu me engajo em discussão de novo com o Vitor Chaves e com minha mulher, Paloma Epprecht e Machado de Campos Chaves.
E constato que já havia trazido à baila (sem que me lembrasse quando escrevi este post) a questão da “fé, esperança e amor”.
Post Scriptum acrescentado em 17 de Março de 2014.
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