A liberdade é o conceito mais importante do Liberalismo: é conceito que lhe empresta o nome. Por isso, é importante ter clareza sobre como esse conceito é entendido pelos liberais.
Para o liberal é livre o indivíduo que não é coagido por terceiros.
Coagir é obrigar alguém a fazer, ou a deixar de fazer, alguma coisa. Coação, por conseguinte, é o ato de forçar ou constranger alguém, por violência física ou constrangimento moral, a fazer, ou a deixar de fazer, alguma coisa.
Livre, portanto, é o indivíduo que não é obrigado, por força física ou constrangimento moral, a fazer o que não quer fazer, ou a deixar de fazer o que quer fazer [1].
O conceito de liberdade com o qual o Liberalismo opera é, portanto, um conceito negativo. Ser livre, para um liberal, é agir sem coação. Ser livre, para um liberal, é não ser obrigado a agir (a fazer ou a deixar de fazer). Ser livre, para um liberal, é não ser fisicamente forçado, ou moralmente constrangido, por parte de terceiros, a fazer, ou a deixar de fazer, alguma coisa.
Ser livre, portanto, não deve ser confundido com “ter recursos financeiros para fazer”, “ter condições materiais de fazer”, “ter capacidade (conhecimento, competência, habilidade) de fazer”, alguma coisa.
Uma coisa é ser livre para fazer alguma coisa (isto é, não ser coagido a faze-la), outra coisa é possuir os meios de faze-la: dinheiro, materiais, conhecimento, competência, habilidade.
O conceito de liberdade do Liberalismo é, portanto, um conceito negativo de liberdade. É negativo, porque a liberdade é definida em termos negativos, como não-coação, sendo livre a pessoa que não é obrigada a fazer, ou a deixar de fazer, alguma coisa.
A liberdade de alguém, entendida dessa maneira negativa, só exige uma única coisa das demais pessoas: que elas não interfiram, que elas não se metam. Enfim, que elas saiam de meu caminho (“get out of my way“) e me deixem sozinho (“leave me alone“). Para que eu seja livre, nesse sentido, ninguém, muito menos o governo, precisa me dar recursos financeiros (dinheiro, crédito, “bolsa” isso ou aquilo), ou materiais (insumos, ferramentas, equipamentos, etc.), ou formação (educação, treinamento, etc.).
O único dever que a minha liberdade impõe a terceiros, nesta visão, é o dever (totalmente negativo) de não me coagir. Para que eu seja livre, a ninguém se impõe nenhum outro dever, além desse (não-coação).
Às vezes essa liberdade negativa é descrita também como liberdade formal ou adjetiva (que se contraporia a uma suposta liberdade material ou substantiva). Formal ou adjetiva porque uma pessoa livre para fazer algo (porque não coagida) pode não conseguir fazê-lo, por lhe faltarem recursos financeiros, outras condições materiais, ou capacidade para tanto. Só quem fosse formal ou adjetivamente livre e, além disso, possuísse todas as demais condições necessárias para fazer o que quer, também seria material ou substantivamente livre e poderia de fato fazer o que quer. Assim corre o argumento. Mas esse é um argumento falacioso, como passo a mostrar.
Digamos que eu queira comprar uma Ferrari e ninguém esteja me coagindo, seja a compra-la, seja a deixar de compra-la. Segundo o liberal, eu sou livre para compra-la.
Suponhamos, no entanto, que eu não tenha dinheiro suficiente para comprar a Ferrari, nem crédito para adquiri-la em prestações. Segundo o liberal, isso não interfere em nada com minha liberdade: eu continuo livre para compra-la, porque não estou coagido. No entanto, no entender de um não-liberal, eu, não tendo condições de realmente fazer o que quero, não sou de fato (i.e., material ou substantivamente) livre.
Autores não-liberais em geral acham que a liberdade deveria ser concebida apenas no que chamam de seu sentido pleno, isto é, positivo, material, substantivo. Assim, se eu não tenho dinheiro para comprar a Ferrari, não se deveria dizer que sou livre para comprá-la.
Mas essa posição é problemática. Vou procurar mostrar por quê.
Imaginemos um adolescente (digamos que de dezesseis anos) que tenha quinhentos reais de dinheiro realmente seu, ganho em algum trabalho qualquer, e que deseje comprar, com esse dinheiro, uma bicicleta que custa duzentos reais. Imaginemos, porém, que os seus pais, por alguma razão, o proíbam de fazê-lo (podem, por exemplo, ter muito receio de que ele sofra algum acidente com sua bicicleta – digamos que um irmão desse adolescente tenha, no passado, morrido em acidente de bicicleta). Neste caso, o adolescente, sendo menor de idade, e necessitando da autorização de seus pais para fazer a compra, não é livre, no sentido negativo, formal e adjetivo, que os liberais adotam, para comprar a bicicleta (embora tenha o dinheiro para fazê-lo), porque alguém tem condições de impedir que sua vontade se realize. O adolescente, neste caso, não é livre porque é coagido, por quem tem autoridade e poder sobre ele, a não compra-la. Ou seja, ele é impedido, por terceiros (os pais), de fazer o que quer.
Imaginemos outro adolescente, da mesma idade, que também deseje comprar a mesma bicicleta, cujos pais apoiam o seu desejo (ele vai usar a bicicleta para ir à escola ou para fazer algum trabalho que a família considera importante), mas que não tem os duzentos reais para compra-la (nem tem como obtê-los por doação ou empréstimo de seus pais ou outras pessoas). Se ele não tem os duzentos reais, os oponentes da visão que o Liberalismo tem da liberdade dirão que ele não é livre para comprar a bicicleta. Mas ele é! A compra da bicicleta pode ser tão importante para ele que ele (posto que não está coagido a não compra-la) decide arrumar algum emprego (ou algum “bico”) para ganhar o dinheiro necessário para adquiri-la. Como não há nada que proíba alguém de dezesseis anos de arrumar um emprego ou um “bico”, ele está livre para procura-lo. Tendo decidido a fazê-lo, sai, arruma o emprego ou “bico”, ganha o dinheiro, vai e compra a bicicleta. Se não fosse livre para comprar a bicicleta, ele, mesmo não tendo, num primeiro momento, o dinheiro necessário, não teria podido comprá-la. Mas, como era livre, achou um jeito de ganhar o dinheiro necessário e comprou a bicicleta – o que comprova a sua liberdade.
Para o liberal, uma coisa (liberdade) é uma coisa, outra coisa (os meios de exerce-la) é outra coisa.
Para o liberal é preciso não confundir liberdade com a posse dos meios — recursos financeiros, condições materiais, condições subjetivas (capacidade, formação) — necessários para o exercício efetivo da liberdade. A liberdade é algo que deve ser garantido a todos pelo sistema político adotado (basicamente pela Constituição). A posse dos meios necessários para o seu exercício efetivo cabe a cada um conquistar.
Se, quarenta anos atrás (escrevo em 2014), alguém dissesse para uma mulher paraibana que ela era livre para ser Prefeita da maior cidade do Brasil, porque ninguém a impedia de tentar ser, os oponentes do Liberalismo iriam dizer que ela realmente não era livre, porque lhe faltariam as condições materiais para chegar lá. No entanto, chegou – eleita pelos próprios oponentes do Liberalismo que normalmente cometem a falácia que estou criticando [2].
Se, quarenta anos atrás (continuo a escrever em 2014), alguém dissesse para um torneiro mecânico da Grande São Paulo, nascido no Pernambuco, que ele poderia se tornar Presidente do Brasil, porque ninguém o impedia de tentar ser, os oponentes do Liberalismo iriam dizer que ele realmente não era livre, porque lhe faltariam as condições materials para chegar lá. No entanto, chegou lá – eleito, mais uma vez, pelos oponentes do Liberalismo [3].
Também é preciso não confundir liberdade com o desejo de fazer aquilo que se é livre para fazer. Alguém pode ser livre para trair o cônjuge (porque ninguém o coage a não fazê-lo — o adultério deixou de ser crime no Brasil faz tempo) e, ainda assim, não desejar fazê-lo, isto é, tomar a decisão de nunca fazê-lo. Ninguém precisa de fato trair o cônjuge para provar que é livre para fazê-lo.
NOTAS
[1] Em tese, um indivíduo pode ser coagido a fazer aquilo que ele quer fazer, ou a não fazer aquilo que ele não quer fazer. Eu posso até querer fazer x, mas só querer faze-lo depois, ou em circunstâncias diferentes, etc. Ou eu posso até não querer fazer x, mas só não querer faze-lo depois, ou em circunstâncias diferentes, etc. Enfatizar essas distinções, entretanto, já é, de certa forma, preciosismo, e, por isso, vou deixa-las de lado, a menos que sejam estritamente relevantes ao argumento.
[2] Refiro-me, naturalmente, para esclarecer aos mais novos que possam desconhecer os fatos, a Luiza Erundina, paraibana nascida em 1934, que, em 1988, se tornou a primeira mulher e se eleger Prefeita da Cidade de São Paulo. Vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Luiza_Erundina.
[3] Refiro-me, naturalmente, a Luiz Inácio Lula da Silva, eleito presidente do Brasil em 2002, em sua quarta tentativa. Vide http://en.wikipedia.org/wiki/Luiz_Inácio_Lula_da_Silva.
Em São Paulo, 6 de Junho de 2014