Recebi agora de manhã, por gentileza de meu amigo Enézio Eugênio de Almeida Filho, link para um artigo intitulado “Teacherbot: Interventions in Automated Teaching”, de Sian Bayne, publicado em Teaching in Higher Education. O artigo aborda, dentro do tema, vários assuntos interessantes. Um, em especial, me chamou a atenção, porque tem que ver com algo que venho dizendo há uns bons 15 anos, a saber, que a educação formal, quando ocorre, deve ser “centrada no aprendente”, isto é, a tese de que as atividades consciente e deliberadamente organizadas para resultar em aprendizagem devem estar orientadas para os interesses de quem aprende — não de quem organiza essas atividades, qualquer que seja o nome que se lhe dê: professor, mestre, instrutor, tutor, mediador, facilitador da aprendizagem, etc.
Sublinho, no que acabo dizer, a expressão “educação formal, quando ocorre”, e o faço porque a educação da maior parte das pessoas, naqueles aspectos que mais importam, não acontece através da chamada “educação formal”, mas, sim, através das diferentes dimensões do que se pode chamar de “educação não-formal”. Em seu sentido mais genérico, esta é simplesmente a educação que não é formal.
Ilustro.
Quando abri meu computador hoje cedo, e entrei no Facebook, ele me informou de que dois anos atrás, no dia 16/5/2013, eu havia postado uma citação da escritora Tatiana Belinky, em que ela comentava como a educação mudou sua vida. Dizia:
“A própria existência dos meus pais me educou. Eles não me ensinavam nada. Eu via tudo. Lia e ouvia. Todo mundo lia e todo mundo conversava. Meus pais nunca me apontaram: faça isso, faça aquilo, era a vida de todo dia que era assim, educacional, naturalmente. Você me pergunta o que é Educação e não dá nem para responder. É só tudo!”.
Talvez seja coincidência, talvez seja providência. Melhor ainda, talvez seja o que chamo de “provincidência”, uma mistura das duas coisas, ou, simplesmente, um nome que a gente dá quando não sabe se se trata de uma ou da outra. Eu, especificamente, nunca sei. Mas o Enézio e o Facebook, cada um com seus interesses e com suas intenções, colocaram esses dois textos na minha frente hoje cedo. Do meu ponto de vista, foi provincidência.
A citação de Tatiana Belinky me fez lembrar de outra citação, esta de Paulo Freire, em que ele diz, de forma (no meu entender) muito feliz, o seguinte (as palavras são em parte minhas, porque cito de memória):
“Ninguém educa ninguém; mas tampouco alguém se educa sozinho. Nós nos educamos uns aos outros, em comunhão, mediatizados pelo mundo.”
Ou seja:
Os que estão por trás dos diversos programas de educação formal (professores, mestres, instrutores, tutores, mediadores, facilitadores da aprendizagem, etc.) podem encher o peito e se chamar de educadores profissionais — mas não é isto que são, segundo Paulo Freire, porque “ninguém educa ninguém”. Ninguém educa ninguém assim de modo formal, consciente, intencional, deliberado. A gente, a maior parte do tempo e no que realmente importa, se educa um ao outro de maneira não-formal, inconsciente, não-intencional, não-deliberada, simplesmente interagindo (o mais das vezes com outras intenções), com quem nos cerca, vendo-os, ouvindo-os, falando com eles, diretamente ou através de livros, de revistas, de jornais, do rádio, da televisão, da Internet, do Facebook… Exatamente assim como nos diz a Tatiana Belinky. Educamo-nos um ao outro simplesmente “comungando” uns com os outros, isto é, conversando, dialogando, lendo, escrevendo, discutindo, debatendo, colaborando (fazendo coisas juntos), vivendo juntos, convivendo, enfim, aprendendo juntos nesse magnífico ambiente educacional que é o mundo, tendo ao fundo o cenário genuíno de toda educação que vale a pena, a vida (não, necessariamente, a escola — embora a escola seja uma pequena parte da vida, e possa se tornar tão mais importante quanto mais semelhante à vida ela for).
o O o
Mas voltando ao artigo que me enviou o Enézio. “Teacherbot” quer dizer robô que ensina, robô didático. O tema do artigo é “Automated Teaching”, Ensino Automatizado. Em suma, o autor discute se podemos ser ensinados (e, assim, vir a aprender, ser educados) de forma automática, por um robô.
Não vou entrar no mérito dessa questão, porque ela me entedia. Vou discutir apenas algo que o autor menciona mais ou menos en passant, como se fosse entre parênteses. Trata-se da tese de que “na educação a linguagem da aprendizagem deve prevalecer sobre a linguagem do ensino” — tese que, no entender de alguns, acaba por “marketizar o discurso pedagógico”, “instrumentalizando a educação”, “desagregando o ensino e o reduzindo a nada mais do que facilitação ou apoio à aprendizagem”. Essa tese, ainda no entender de alguns, “desprofissionaliza o ensino” e “abre as portas para que o ensino automatizado possa entrar na escola e oportunamente substituir o professor”, realizando, assim, o “sonho tecnocrático”.
A raiz dessa tese está na afirmação de que a educação formal deve estar sempre “centrada no aprendente”. (Digo “educação formal” porque a educação não-formal sempre está centrada no aprendente). Os críticos da tese discutida no parágrafo anterior e da dessa afirmação acham que esse “modo discursivo subavalia o papel do professor ou até mesmo o deixa fora da equação”.
Os críticos citam um artigo publicado pela National Science Foundation (Fundação Nacional de Ciência) que afirma:
“Sugerimos que, dentro de poucas décadas, a educação se tornará personalizada, porque se harmonizará com as principais características do aluno, como, por exemplo, sua personalidade e seu estilo de aprendizagem, e com seus estados de espírito, como sua disposição afetiva, sua motivação, o nível de seu envolvimento. Ferramentas computacionais aferirão quais seus pontos fortes e fracos, quais as áreas em que ele tem problemas, qual seu estilo motivacional — e o fará isso tão bem quanto qualquer tutor humano. As tecnologias disponíveis para produzir esse tipo de instrução personalizada incluem modelos do usuário, ambientes inteligentes, ambientes lúdicos, e data mining (‘mineração de dados’)”.
Nenhum comentário dos críticos ou do autor sobre o fato que se sugere, nessa citação, que a personalização da educação se dará através da “instrução personalizada” — quando estávamos falando de aprendizagem, não de instrução ou ensino, da tese de que a educação formal deve estar sempre centrada na aprendizagem do aluno — e não no ensino ou na instrução do professor (ou equivalente).
O autor do artigo que estou analisando (o que me enviou o Enézio) tenta tucanamente fazer a media com a oposição e a situação afirmando que está longe dele afirmar que“o uso e métodos automatizados na educação seja indesejável”. Longe disso. O problema, afirma ele, está no fato de que “os termos em que esses métodos são propostos são dirigidos por um solucionismo orientado para a produtividade que vem sendo criticado já faz décadas”. Segundo o autor, quando isso acontece “é preciso resistir a esses métodos”, enfatizando que “o toque humano”, “a humanidade desejável”, “os relacionamentos humanos” são o “locus principal” a partir do qual é forçoso resistir “ao frio imperativo tecnocrático”. Ele sugere que o referencial teórico proposto pelo “pós-humanismo crítico e outras áreas anti-antropocêntricas dentro das humanidades e das ciências sociais” podem fornecer uma “base adequada” para “a construção de uma experimentação pedagógica responsável”. O que ele chama de uma “perspectiva pós-humanista” se reduz, no final dessa discussão, “a tentar usar visão dupla: ver o humano e o não-humano ao mesmo tempo”.
Pode? Essa baboseira “pós-modernista” e pseudo-intelectual se resume a “ver o humano e o não-humano ao mesmo tempo”. Quem jamais disse, no “pré-pós-humanismo” (isto é, no “humanismo”, isto é, numa visão moderna e liberal), que era impossível ver o humano e o não-humano (a técnica, a tecnologia) ao mesmo tempo?
Engana-se o autor do artigo que a alternativa seja usar apenas o ser humano para ensinar e instruir, sem tecnologia, ou usar apenas tecnologia para ensinar (robôs didáticos), sem o ser humano (o que ele chama de “ensino automatizado”).
No processo de discutir essas besteiragens o autor do artigo se esquece da tese que havia se proposto discutir na seção que me interessou: a tese de que “na educação a linguagem da aprendizagem deve prevalecer sobre a linguagem do ensino”. Eu, pessoalmente, não tenho a menor dúvida de que essa tese é verdadeira e merece toda nossa atenção e o nosso endosso.
Na educação não-formal (como a que Tatiana Belinky menciona) não há a menor dúvida de que a aprendizagem prevalece sobre o ensino.
A educação ativa, interativa, colaborativa, e, portanto, fatalmente dialógica, e a única que resulta em aprendizagem significativa, também não há a menor dúvida de que a aprendizagem prevalece sobre o ensino — onde quer que essa educação se realize, em contextos formais ou não-formais.
A aprendizagem só não prevalece sobre o ensino na escola — onde se presume que o aluno só aprende se for ensinado por um professor (ou equivalente), uma besteira de tal tamanho que basta enunciar a tese para qualquer um (exceto professores) concluir que ela é falsa, e, pior do que isso, também nociva e prejudicial à verdadeira aprendizagem, que vai muito além de assimilar e absorver o que outros acham que a gente deve assimilar e aprender e que, a maior parte do tempo, não têm a menor relevância ou utilidade para aquilo que realmente nos interessa.
A educação existe para que seres humanos — que nascem não sabendo fazer nada e não sabendo nada, e, por isso, são totalmente dependentes (inautônomos) por um bom tempo — se tornem competentes (adquiram competências ou construam capacidades). Porque nascem com uma programação genética mínima e aberta, e uma enorme capacidade inata de aprender, os seres humanos são capazes de, tendo adquirido algumas competências, escolher ou definir para si próprios um projeto de vida e de procurar transforma-lo em realidade, passando a ser, não só competentes, mas, também, autônomos.
Competência e autonomia se alcançam da forma indicada por Tatiana Belinky e Paulo Freire. É uma besteira gigantesca afirmar, em adesivos ou alhures, que a gente nunca chegaria a assinar o nome, quanto mais ser médico, engenheiro ou advogado, se não tivesse frequentado escolas e aprendido com professores. A escola moderna é relativamente recente. E professores “profissionalizados e sindicalizados”, mais recentes ainda. É crível que ninguém nunca tenha aprendido nada, e nunca aprendido a fazer nada, antes da existência dessa instituição e desses profissionais?
Ivan Illich, que era amigo de Paulo Freire e que possivelmente concordaria 100% com Tatiana Belinky, queria, em 1970, uma sociedade sem escolas, desescolarizada, em que a gente aprenderia e aprenderia a fazer tudo o que fosse necessário em interações colaborativas horizontalizadas e não-formais.
Note-se que Illich escreveu antes da revolução dos microcomputadores, antes da Internet, antes da Web, antes das redes sociais. O potencial para que aquilo que ele propôs — em 1970, para ser feito face-a-face — seja hoje feito (também) através da tecnologia é enorme. Mas não será a tecnologia de robôs didáticos e de ensino automatizado que fará isso: será a tecnologia de comunicação e acesso à informação que está aí nas mãos e no bolso de cada um, o computador personalíssimo que se disfarça de telefone celular…
E essa educação é, sim, centrada no aprendente. Não poderia ser diferente. E isso não é nada pós-moderno, pós-humanístico. É um procedimento tão simples quanto os que descreve Tatiana Belinky.
Bem disse o Rubem Alves que professor que tem medo de perder seu emprego para um computador (ou um robô didático) merece perde-lo. A gente se vira sem eles.
Em São Paulo, 16 de Maio de 2015.