Elizabeth Cady Stanton: “Mãe do Feminismo Americano”

(Post dedicado à minha filha, Priscilla Epprecht Machado França.)

Elizabeth Cady Stanton (12 de Novembro de 1815/26 de Outubro de 1902) foi chamada por algumas pessoas bem situadas para fazer essa atribuição, em especial por sua amiga e colega de lutas Susan Brownell Anthony (20 de Fevereiro de 1820/13 de Março de 1906), de “Mãe do Feminismo Americano” [1].

Não vou destacar aqui as muitas realizações de Cady Stanton (como geralmente era chamada) – ou de sua amiga e companheira de lutas em favor da mulher, Susan Anthony. A Wikipedia tem vários artigos sobre elas [2].

Vou chamar a atenção apenas para um livro, em dois volumes, escrito por Cady Stanton, que é considerado, por muitos, a primeira tentativa séria de lidar com a questão da visão bíblica da mulher, e, portanto, um importante precursor do que hoje se chama de “Teologia Feminista”: The Woman’s Bible (A Bíblia da Mulher) [3]. Não se trata de um livro que cristãos conservadores provavelmente venham a apreciar – apesar de a hermenêutica utilizada por Cady Stanton em sua interpretação da Bíblia desagradar também a maioria dos cristãos liberais. Mais sobre isso adiante.

O primeiro volume de TWB foi publicado em 1895 e o segundo em 1898 [4]. Ambos os volumes analisavam passagens bíblicas, tanto do Velho quanto do Novo Testamento, que se referiam a mulheres ou que tratavam de temas que tinham implicações acerca da questão da opressão da mulher.

Eis como Cady Stanton descreve o projeto: “Analisar e comentar apenas aquelas passagens que se referem diretamente às mulheres e aquelas em que menção deveria ter sido feito às mulheres mas não foi feita, deixando-as de fora. Ao todo, isso corresponde a cerca de 10% do texto bíblico” (Prefácio).

Note-se, porém, que a ideia original de Cady Stanton, lançada quase dez anos antes (em 1886) era editar um Comentário Feminista à Bíblia na sua totalidade escrito exclusivamente por mulheres, dentro dos cânones acadêmicos, envolvendo análise crítica (literária e histórica) dos textos bíblicos. Mas ela não conseguiu reunir colaboradoras em número suficiente. Não havia, naquela época, muitas mulheres que dominassem as línguas originais da Bíblia e se dispusessem a se engajar na causa feminista (ou mesmo apenas sufragista [5]). Diante disso, Cady Stanton se dispôs, quase uma década mais tarde, a escrever, ela própria, um comentário sobre passagens selecionadas da Bíblia sem recorrer ao aparato técnico geralmente utilizado por scholars bíblicos e utilizando a interpretação literal como método hermenêutico – método esse geralmente privilegiado pelos teólogos conservadores.

Embora os teólogos conservadores adotassem, preferencialmente, o método de interpretação literal do texto bíblico (exceto onde ele produzisse resultados claramente indesejáveis), os teólogos liberais preferiam, diante de textos que colocavam dificuldades para sua visão de mundo, partir diretamente para uma interpretação simbólica, mística ou alegórica (“descobrindo” no texto um “sentido espiritual” mais profundo – o sensus plenior da teologia católica – que substituísse o sentido literal inaceitável).

Assim, Cady Stanton acabou desagradando a gregos e troianos.

Desagradou os teólogos conservadores, porque, interpretando literalmente várias afirmações bíblicas acerca da mulher, ela visava mostrar que a Bíblia é a principal fonte, na cultura Ocidental, para uma visão negativa da mulher.

Desagradou os teólogos liberais, porque se recusou a atribuir um sentido espiritual supostamente mais profundo a textos que, interpretados literalmente, serviam de evidência para a condenação da cultura Judaico-Cristã pela condição de opressão da mulher vigente no Ocidente (e quiçá no mundo inteiro).

Faço referência aqui a algumas passagens bíblicas que Cady Stanton critica – mas antes começo com uma que ela não critica, pelo contrário. Vou depender, para esse resumo, basicamente da estrutura do relato de Dorrien, já mencionado no rodapé, inserindo algumas citações que retirei diretamente do texto de TWB para ilustrar melhor o ponto de vista da autora.

É fato sabido que há, no Velho Testamento, especificamente no livro de Gênesis, dois relatos da criação (inclusive da criação dos seres humanos): um no capítulo primeiro, o outro no capítulo segundo (começando com o versículo 4b e indo até o versículo 25).

No capítulo primeiro, começando com o versículo 26, Deus teria dito: “(26) Façamos o homem [ser humano, homem no sentido genérico] à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio . . . sobre toda a terra.  . . . (27) Criou Deus, pois, o homem [ser humano] à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (28) E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a. . . (30) E assim se fez. (31) Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. . . .” [Almeida-RA].

Segundo Cady Stanton, esse relato da criação, especialmente no versículo 27, atribui, por implicação, um elemento feminino à divindade, pois Deus se propõe a criar o ser humano à sua imagem e semelhança e o cria, segundo parece em um mesmo momento, “homem e mulher”. Isso indicaria, segundo ela, que a divindade possui um elemento masculino e um elemento feminino, os dois elementos em perfeita igualdade de condição [6].

O que afirma Cady Stanton sobre esse relato do primeiro capítulo de Gênesis? Para ela, no momento de criar o ser humano, o texto bíblico desse primeiro capítulo, ao observar que Deus disse “Façamos o ser humano à nossa imagem, conforme à nossa semelhança”, deixa claro que houve uma interação ou “consultação” — não entre as três pessoas (todas masculinas!) da Trindade como muitos teólogos pretendem, vislumbrando aí uma “prova” da natureza triúna (e masculina) de Deus — mas entre o elemento masculino e o elemento feminino inerentes e igualmente representados na Divindade. Segundo ela, deveríamos nos referir a Deus como “Nosso Pai e Nossa Mãe Celestial”. Como o homem, a mulher é igualmente superior ao restante da criação, não havendo, no primeiro capítulo de Gênesis, qualquer indicação de que um dos dois seja superior ao outro e mereça do outro a sujeição. (TWB, Capítulo I, Gênesis).

Mas a Bíblia contém também o relato do segundo capítulo de Gênesis. Nesse relato, Deus cria primeiro o homem, a partir do “pó da terra”, soprando-lhe “o fôlego de vida” nas narinas, de modo a torna-lo “alma vivente” (versículo 7). O homem (não mais no sentido genérico, mas agora no sentido masculino do termo) foi colocado no Jardim do Éden “para o cultivar e o guardar” (versículos 8 e 15). Apesar da lindeza do jardim, o homem aparentemente não estava feliz, de modo que Deus concluiu que “não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea” (versículo 18). A partir dessa conclusão, Deus, fazendo Adão dormir, retirou dele uma de suas costelas, e “fechou o lugar com carne” (versículo 18), e, em seguida, “transformou [a costela do homem] em uma mulher” e a entregou ao homem (versículo 22).

Não resta dúvida de que esse segundo relato, longe de preconizar igualdade de condição entre o homem e a mulher, criados ambos à imagem e semelhança de Deus, rebaixa a condição da mulher. Quem foi criado primeiro foi o homem. Foi a ele que foi dado o encargo de “cultivar e guardar” o jardim e dominar a terra. A mulher, aparentemente, só foi criada porque o trabalho era muito e, por isso, não era bom que o homem fosse o único a realiza-lo. Por isso, Deus lhe deu a mulher como auxiliar – fazendo questão de ressaltar que ela era “idônea”. O processo de criação da mulher não foi o mesmo envolvido na criação do homem. Ela não foi criada do “pó da terra”, nem Deus soprou-lhe “o fôlego da vida” nas narinas, para que se tornasse “alma vivente”. Ela foi confeccionada a partir de uma costela do homem – aparentemente já como “alma vivente”. Deus a chamou “varoa, porquanto do varão foi tomada” (versículo 23).

O que comentou Cady Stanton acerca desse segundo relato?  Segundo ela, “na minha opinião, essa segunda história foi inventada por algum judeu, que manipulou a primeira história de modo a emprestar autoridade divina à tese de que a mulher deve obedecer ao homem com quem casa. . . . É evidente que algum escritor esperto, diante da perfeita igualdade entre o homem e a mulher descrita no primeiro capítulo, achou que era importante preservar a importância do homem e seu domínio sobre a mulher, deixando claro que esta era de alguma forma subordinada àquele” [7].

Cady Stanton resume a visão da mulher apresentada neste segundo relato bíblico da criação com as seguintes palavras: “Nele fica claro que a mulher foi criada depois do homem (como um “afterthought“), do homem, e para o homem, um ser inferior, criado para servi-lo e a ele sujeito” (TWB, Introdução).

Eis como Cady Stanton resume como a Bíblia enxerga a mulher:

“A Bíblia ensina que a mulher trouxe o pecado e a morte ao mundo, que ela precipitou a queda da raça, que ela foi trazida diante do tribunal dos céus, julgada, condenada e sentenciada. O casamento seria para ela uma condição de servidão, e a maternidade um período de dor e sofrimento. Em silêncio e sujeição ela deveria desempenhar o papel de um ser dependente da generosidade do homem para satisfazer as suas necessidades materiais. Se desejasse alguma informação para satisfazer a uma necessidade do momento, deveria perguntar ao homem, na intimidade do lar. Esta é a posição da Bíblia sobre a mulher, em poucas palavras” (TWB, Introdução).

É evidente, como o tratamento do segundo relato da criação deixa claro, que Cady Stanton acreditava que a Bíblia havia sido escrita por homens, claramente não inspirados por Deus, que introduziram nela todos os seus preconceitos contra a mulher, preconceitos esses hostis à tese da igualdade de condição e de direitos entre o homem e a mulher. Ela reconhecia que na Bíblia, como nos escritos sagrados de outras religiões, há passagens em que se prega o amor, a caridade, a justiça, a liberdade, e a igualdade de toda a família humana. Mas também há nela, e neles, mesmo quando o teor do discurso é positivo, os elementos básicos que levaram à opressão e à escravização da mulher. Ela cita, por exemplo, Deuteronômio 2:34 e 3:6, que descreve, no seu entender, o “código militar” das tribos judaicas a ser aplicado em suas guerras contra as tribos vizinhas, código esse que lhes permite destruir todos os seres vivos, fazendo questão de acrescentar que até mesmo “mulheres e crianças”. Esse código “demonstra total desprezo para com todas as decências da vida e para com os direitos naturais das mulheres como pessoas. . . . Esse código contido no Pentateuco só pode ter emanado das mentes mais obscenas que uma época bárbara pode produzir” [8].

A forma que Cady Stanton encontrou para combater a cultura ocidental, criada em cima de princípios judaico-cristãos, que denigria e oprimia a mulher, foi atacar a autoridade da Bíblia. Ela frequentemente ligava a condição oprimida da mulher no presente à continuada influência e autoridade da Bíblia. “Há vários exemplos no Velho Testamento em que mulheres foram jogadas à multidão, como se joga um osso aos cachorros, para pacificar suas paixões; e as mulheres continuam a sofrer hoje essas lições de desprezo ensinadas por um livro tão reverenciado pelo povo” [9].

O Novo Testamento não se sai melhor do que o Velho, na opinião de Cady Stanton. É verdade que ela ressalva a posição pessoal de Jesus. Mas, fora ele, o Novo Testamento mantém a mesma visão acerca da mulher que é apresentada no Velho. Nas Epístolas Pastorais, por exemplo, a subordinação da mulher ao homem é ensinada com requintes de especificidade. Mesmo a história de Maria e José ela considera degradante. A tese do nascimento virginal de Jesus ela considera totalmente sem sentido. Se Jesus precisava ter um pai divino, por que não também uma mãe divina? [10]

Como disse, ela ressalva a posição pessoal de Jesus, “que nunca ensinou que a mulher fosse sujeita ao seu marido, nem que devesse ficar calada na igreja”. Jesus não ensinou que o homem devesse dominar a mulher – e nem que a mulher devesse dominar o homem. Para ele, o sexo da pessoa não significa nada para sua condição espiritual, nem circunscreve ou delimita a sua esfera de ação [11].

Cady Stevens chegou a propor que se produzisse uma versão da Bíblia, Velho e Novo Testamento, da qual fossem expurgadas as passagens que denegriam a mulher ou que pudessem servir para justificar sua opressão e a tese de sua obediência e subserviência ao homem [12].

Pode parecer, a julgar pelos trechos aqui citados e mencionados, que Cady Stanton não passava de mais uma herege ou ateia, como tantos que havia no século 19. Mas não, ela era, ainda que no plano não acadêmico e não profissional, uma defensora de várias teses da teologia liberal – se bem que combinadas como uma hermenêutica conservadora, calcada na interpretação literal das Escrituras. Mas mesmo sua hermenêutica conservadora serve, de certo modo, a um propósito liberal.

A essência da teologia liberal do século 19 está na tese de que é preciso acomodar, adaptar ou compatibilizar a herança cristã tradicional aos tempos modernos. A maioria dos liberais propunha que isso fosse feito reinterpretando a tradição, mesmo a herança bíblica, e isto significava deixar de lado a interpretação literal das Escrituras. Para Cady Stanton, porém, era importante manter a interpretação literal das Escrituras para mostrar que a tradição judaico-cristã foi responsável pela opressão da mulher, porque foi uma tradição cultivada e mantida por homens que não viam as mulheres como suas iguais, e que conseguiram anular o impacto positivo do primeiro relato da criação e do ensino não opressivo de Jesus. O que era preciso fazer, segundo ela, era, reconhecendo a responsabilidade dessa tradição para com a atual condição da mulher (oprimida, sem voz, sem participação), reeditar a Bíblia, reescrever a tradição numa linha igualitária, deixando de lado as passagens que refletissem uma linha diferente.

Thomas Jefferson, um século antes, já havia proposto algo semelhante. Ele produziu e editou o que hoje é chamado de A Bíblia de Jefferson (Jefferson’s Bible), uma versão bastante reduzida da Bíblia que apenas incluía os ensinamentos morais que ele julgava aceitáveis — quase todos no Novo Testamento e oriundos dos lábios de Jesus de Nazaré.

Um pouco depois de Cady Stanton ter escrito sua TWB, Adolf von Harnack, um dos mais conhecidos teólogos liberais, publicou, em 1899/1900, A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums), em que ele defendeu tese semelhante: a essência do Cristianismo estava nos ensinamentos morais atribuídos a Jesus. O resto era invenção da igreja, que pode ser dispensada (junto com a tradição judaica) pelo cristão de hoje.

É interessante constatar que questões éticas, discutidas em contextos religiosos e teológicos, estivessem tão envolvidas nas origens do feminismo moderno. Como Cady Stanton bem salientou, a questão do voto era importante, mas estava longe de ser a única, ou mesmo a mais importante.

NOTAS

[1] Compare-se Gary Dorrien, The Making of American Liberal Theology, vol. 1, “Imagining Progressive Religion (1805-1900)” (Westminster John Knox Press, Louisville, 2001), p.260.

[2] Vide, por exemplo, https://en.wikipedia.org/wiki/Elizabeth_Cady_Stanton e https://en.wikipedia.org/wiki/Susan_B._Anthony. A Amazon distribui gratuitamente, no formato e-book para os leitores Kindle, uma autobiografia de Cady Stanton, que tem o título de Eighty Years and More; Reminiscences 1815-1897 (http://www.amazon.com/Eighty-Years-More-Reminiscences-1815-1897-ebook/dp/B0082SJZH6/ref=sr_1_3?ie=UTF8&qid=1456216000&sr=8-3&keywords=Elizabeth+Cady+Stanton).

[3] Vide, e.g., https://en.wikipedia.org/wiki/The_Woman’s_Bible. A Amazon distribui esse livro gratuitamente no formato e-book para os leitores Kindle (http://www.amazon.com/Womans-Bible-Elizabeth-Cady-Stanton/dp/1453780971/). Daqui para frente vou me referir a esse livro como TWB.

[4] Dorrien, op.cit., pp.257-258.

[5] A causa feminista era entendida por Cady Stanton como sendo bem mais ampla do que a causa sufragista. Esta era a causa voltada para obter o direito de voto para as mulheres. A causa feminista visava comprovar a condição de opressão em que a mulher viveu durante toda a história e organizar a luta pela sua liberação.

[6] Confira-se Dorrien, op.cit., p.258.

[7] Confira-se também Dorrien, loc.cit..

[8] Dorrien, op.cit., pp.258-259.

[9] Confira-se Dorrien, op.cit., p.259.

[10] Dorrien, loc.cit..

[11] Dorrien, op.cit., pp.259-260.

[12] Dorrien, op.cit., p.260.

Em Salto, 23 de Fevereiro de 2016.

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