[Publiquei este artiguinho aqui no Blog em 25/4/2015 e o republico agora, com pequenas revisões.
Faz 50 anos que me considero basicamente uma pessoa liberal — liberal à moda antiga, liberal clássico, liberal laissez-faire (não liberal no sentido em que os americanos usam o termo).
Foi em 1965, no meu segundo ano no Seminário Presbiteriano de Campinas, uma instituição de ensino orientada (na época — mas, creio, talvez até hoje) pela visão calvinista do mundo, e, portanto, teológica e moralmente conservadora, quiçá fundamentalista, que me senti cerceado em minhas liberdades de pensar, crer, exprimir meus pensamentos e crenças e agir de acordo com elas.
Minha atração para o liberalismo surgiu, não exatamente das aulas de Filosofia do Rev. Francisco Penha Alves, mas nelas e nas leituras que elas propiciaram — entre as quais, On Liberty, de John Stuart Mill. Foi Mill que, por assim dizer, abriu os meus olhos para contemplar e admirar a a importância e a beleza da liberdade. Mais tarde, sob a influência de Ayn Rand, Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, vim a achar Mill não suficientemente radical em seu liberalismo, mas essa é outra história.
Para resumir, os únicos limites à liberdade do indivíduo que o liberal clássico reconhece como legítimos são dois que, em princípio, são fáceis de enunciar (embora, na prática, sejam muitas vezes difíceis de determinar):
- a liberdade dos outros, ou seja, a possibilidade de que, ao exercer a minha liberdade, eu viole igual liberdade de outrem;
- o dano a outros, ou seja, a possibilidade de que, ao exercer a minha liberdade, eu possa causar dano a outrem (dano real, material ou físico, não mera ofensa à sensibilidade — moral, religiosa ou outra — dos outros).
Sempre achei complicado, desde então, ser qualquer coisa que não liberal, pura e simplesmente, ponto final. Sempre me desgostaram os liberalismos qualificados — os liberalismos hifenados, por assim dizer. Quando alguém me diz “Sou liberal conservador” — ou “liberal cristão”, ou “liberal católico”, ou “liberal feminista”, etc. — fico esperando a ocasião de concluir (nem sempre mostrar) que ele não é realmente liberal, ou o é simplesmente em relação a certas coisas, não a outras, que tocam o outro lado do hífen, por assim dizer (ainda que um hífen não seja gramaticalmente exigido para caracteriza-la).
Muitas pessoas que admiro, hoje, como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino, são liberais assim. Reinaldo é católico, Constantino é culturalmente conservador à la Russell Kirk. Aprecio muito o que escrevem quando seu liberalismo é dirigido a questões políticas, relacionadas às atribuições do estado (que, para o liberal clássico, devem ser mínimas, relacionadas à “lei e à ordem”), ou a questões de economia política, relacionadas ao controle da economia pelo estado (que, para o liberal clássico, deve ser nenhum).
Nenhuma área ilustra melhor isso do que a da moralidade, principalmente a da moralidade de inspiração religiosa ou ideológica.
Para o liberal clássico, a liberdade na área de expressão do pensamento deve ser basicamente total (restringida apenas das formas explicitadas acima). Ela incluiu, por exemplo, a expressão de ideias consideradas imorais e antirreligiosas, ou mesmo pornográficas e ateias, por outras pessoas.
O liberal que pretende ser hifenadamente religioso em geral deixa de ser liberal aqui. A pornografia, numa revista, num livro, num filme ou num programa de televisão, o ofende, e ele em geral tenta controla-la. Evidentemente, ele pode controla-la não lendo ou assistindo, mas ele em geral quer, também, que outros não a leiam ou assistam. Para o bem deles, insiste. Ou para proteger as crianças, acrescenta.
A (O?) liberal feminista em geral é mais feminista do que liberal. Argumenta que a pornografia rebaixa a dignidade da mulher, a degrada, a torna um objeto, a desumaniza — e, por isso, deve ser proibida. No argumento pode até vir a citar Kant sobre a importância de não considerar o outro como meio…
O liberal conservador que defende a importância de uma cultura que preserve e sustente princípios morais que ele considera essenciais e perenes, usa argumentos muito semelhantes. Ele, em regra, é até antifeminista, porque o feminismo não é tradicional…
É isso, por enquanto. Quem sabe eu volte à carga.
Em São Paulo, 25 de Abril de 2015 – pequenas revisões em Salto, 7 de Junho de 2016