Estou lendo um livro interessante, de Roberto Carneiro, ex-ministro da Educação de Portugal e integrante da comissão que elaborou o famoso Relatório Jacques Delors para a UNESCO, que foi publicado como “Educação: Um Tesouro a Descobrir”. Em inglês o título, curiosamente, é “Learning: A Treasure Within”. Valeria a pena fazer um artigo discutindo as sutis diferenças entre essas duas versões do título do relatório. Quem saiba eu o escreva um dia.
Apesar de conter muita coisa com que concordo sem reservas, o livro “unescamente”, contém certas teses que tenho dificuldade de aceitar.
Explico-me.
Não tenho nada contra quem combate, como o faz Roberto Carneiro, de um lado, o fanatismo, o dogmatismo, o sectarismo, e, de outro lado, a xenofobia, o racismo, o etnismo, o nacionalismo, a intolerância (vide p.75). Muito pelo contrário. Esses dois combates são faces diferentes de uma mesma moeda. Quem é fanático, dogmático, sectário acerca de suas próprias crenças em geral é intolerante de quem é diferente de si, ou porque pertença a outra raça, etnia ou nação, ou porque tenha outra cultura (língua, religião, costumes, etc.) ou porque simplesmente pense de forma diferente sobre questões que o fanático, dogmático, sectário considera importantes.
Não só nada tenho contra quem assume esses dois combates como eu próprio tenho, ao longo de minha vida, me juntado a esse combate, em especial na esfera política e religiosa.
Isso é uma coisa.
Outra coisa é combater esse combate, como o faz Roberto Carneiro, em nome do multiculturalismo e da interculturalidade.
É inegável que existem inúmeras culturas no mundo – de macroculturas (como as chamadas “cultura ocidental”, “cultura européia”, “cultura islâmica”, “cultura asiática”, ou, voltando no tempo, “cultura clássica”, “cultura medieval”) e microculturas (como a cultura de uma pequena tribo indígena ou até mesmo o que se chamou de “a cultura pariense da margem esquerda do Sena” na época de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir). E não resta a menor dúvida de que essas diferem umas das outras em múltiplos aspectos, alguns essenciais e importantes, outros secundários. Não há como fugir desse fato – e fato é o que isso é. Ao descrever isso não se faço nenhuma valoração, nem positiva, nem negativa.
Por outro lado, é possível atribuir uma valoração – negativa ou positiva – a esse fato. Muitos fanáticos, dogmáticos e sectários valorizam, positivamente, de tal forma a sua própria raça, etnia, nação, cultura (macro ou micro) que se sentem obrigados a valorizar, negativamente, outras raças, etnias, nações e culturas. Essa valorização negativa, quando alcança um grau extremo, leva os fanáticos, dogmáticos, sectários a ter pavor de tudo o que é diferente deles (xenofobia) e a se propor a destruir o que é diferente deles.
Roberto Carneiro é um admirador da diversidade e um defensor da diferença. Refere-se ao fenômeno que acabei de descrever de forma lírica, quase idílica. Segundo ele, a educação precisa promover uma “consciência intercultural” que, entre outras coisas, deve “realizar a vontade indómita de ‘descobrir’ o outro” e “cultivar o fascínio perante o diferente” (p.71). “Com efeito”, diz ele, “a erecção de uma cultura de direitos humanos é indivisível do respeito por toda a trama da variedade humana” (p. 66). Ele assim defende uma “Educação para a Tolerância e a Interdependência”, que propugna “o desenvolvimento pessoal de um sentimento de estima pela humanidade, de apreço pela sua aventura coletiva e de valoração [positiva] de suas diversas culturas como expressão inestimável dos dramas de vida de cada povo” (p. 70). Ele se define como um combatente na luta contra “o monismo cultural” e contra qualquer idéia de “supremacia cultural”. Essa luta, diz ele, “apresenta-se como uma prioridade educacional incortonável”, o que o leva a propor “uma genuína e duradora Educação Intercultural para Todos” (p. 70).
Dispenso-me de fazer outras citações.
Roberto Carneiro, no entanto, não quer se deixar caracaterizar como um “relativista” (vide pp. 65, 73). Afirma ele: “Mas se o fanatismo cego é condenável, do mesmo modo e a título igualmente vigoroso, é de denunciar o reino do relativismo” (p. 65). Por quê? Porque “o progresso humano [sic] demanda âncoras axiológicas de referência sem as quais ele não tem possibilidade de se direccionar nem de adquirir sentido” (p. 65). Por isso, “o pluralismo não [pode ser] sinónimo de relativismo” (p. 73).
É louvável a tentativa de defender o multiculturalismo e, ao mesmo tempo, tentar combater o relativismo. Mas é aqui que Roberto Carneiro começa a se complicar.
Como Roberto Carneiro, sou contra o relativismo. E sou contra, basicamente, pelas mesmas razões. Concordo com ele que exista o que ele chama de “progresso humano”. Também concordo com ele que, para que não podemos acreditar na existência do “progresso humano” a menos que também acreditemos na existência de “âncoras axiológicas de referência”, pois sem elas a noção de progresso humano não faz sentido (progresso em relação a que critérios?). E concordo com ele, por fim, que a crença na existência do “progresso humano” e das tais “âncoras axiológicas de referência” é incompatível com a crença no relativismo.
Minha discordância básica das teses de Roberto Carneiro está no fato de que, no meu entender, a crença na existência do “progresso humano” e das tais “âncoras axiológicas de referência” é incompatível também com a defesa do multiculturalismo e da interculturalidade.
Aqui é preciso fazer dois “caveats”: o primeiro, para discutir a questão da diversidade, da diferença; o segundo para discutir com mais precisão o conceito de relativismo.
Não tenho a menor dúvida de que em inúmeros aspectos a diversidade e a diferença são extremamente positivas. Não tenho dúvida de que, contemplando a totalidade do ponto de vista estético, o mundo é muito mais rico (e, por conseguinte, mais belo) porque existem diversas espécies vegetais e animais, e porque, no tocante a seres humanos, existem mulheres e homens, e existem mulheres e homens de diferentes cores, tamanhos, aparências, etc. Contemplando uma área da cultura, como a música, não tenho dúvida de que o mundo é muito mais rico (e, por conseguinte, mais belo) porque existem diferentes tipos de música: a clássica, a popular “chique” (estilo Jobim, no caso brasileiro), a popular do “povão” (ainda, no caso brasileiro, caipira, sertaneja, brega, forró, etc.), a das diferentes regiões do mundo (o fado português e o yoodle tirolês, por exemplo, que tive o privilégio de observar de perto recentemente), e assim por diante.
Não há razão para combater essa diversidade e diferença – muito pelo contrário: há todas as razões possíveis e imagináveis para promovê-la. E digo isso sem cair no relativismo de dizer que todos esses tipos de beleza física ou musical se equiparam, e que não há um que seja mais belo do que o outro.
Mas mudemos de registro.
Diferentes culturas têm diferentes valores e costumes. Alguns países islâmicos praticam, nas meninas, quando se tornam púberes, a clitoridectomia e a infibulação. A clitoridectomia é a remoção do clitóris e de boa parte dos lábios vaginais. A infibulação é a costura da abertura vaginal (deixando apenas uma pequena passagem para a urina e sangue mentrual). A razão dessa prática está em evitar, pela costura da abertura vaginal, que a menina tenha relações sexuais até que seja adquirida (sic), comprovadamente virgem, pelo seu marido. A razão da clitoridectomia está em evitar que a menina-moça possa associar o sexo com o prazer, e, assim, venha a desejar ter relações sexuais. Na verdade, o procedimento, feito em condições que estão longe de se comparar com as oferecidas pelos hospitais Alberto Einstein e o Sírio Libanês, em geral associa, na mente da menina-moça, o sexo com dor e sofrimento. Quando ela casa e o seu marido a disvirgina (em geral sem qualquer carinho ou preocupação com o bem-estar ou sofrimento dela), seu órgão sexual é, via de regra, dilacerado – o que acentua a associação do sexo com dor e sofrimento e a desincentiva de procurar sexo fora do casamento.
O que diria Roberto Carneiro sobre essa manifestação da diversidade e da diferença? Diria ele que a “educação intercultural” deve “cultivar o fascínio” perante essa diferença cultural? Diria ele que a “educação intercultural” deve promover “apreço” por essa “expressão inestimável dos dramas de vida” daquelas meninas? Diria ele que “a educação para a tolerância” deve ser tolerante para com essas práticas?
Houve época – e ainda há partes do mundo em que essas épocas se mantêm – em que seres humanos rotineiramente praticavam estupro, tortura, até canibalismo. Aqueles que, como Roberto Carneiro e eu, acreditam que tem havido “progresso humano”, e que essas práticas foram abandonadas porque elas conflitam com “âncoras axiológicas de referência” que vieram a ser amplamente aceitas.
Mas se realmente houve progresso – e eu não tenho dúvida de que houve – Roberto Carneiro deve responder a algumas perguntas. O que ele sobre essa manifestação da diversidade e da diferença? Diria ele que a “educação intercultural” deve “cultivar o fascínio” perante culturas desse tipo? Diria ele que a “educação intercultural” deve promover “apreço” por essa “expressão inestimável dos dramas de vida” vividos pelas vítimas dessas práticas? Diria ele que “a educação para a tolerância” deve ser tolerante para com essas práticas?
Essas mesmas “âncoras axiológicas de referência” hoje condenam terroristas que, em nome do fanatismo, do dogmatismo e do sectarismo que Roberto Carneiro pretende combater, se fazem de bombas humanas para matar civis inocentes que são de outra raça, ou de outra etnia, ou de outra nação, ou de outra religião, ou de outra língua, ou de outra…
Se queremos que a humanidade continue a progredir, devemos perguntar a Roberto Carneira o que devemos fazer em relação, não só a essas práticas, mas às culturas que as incentivam, apóiam, aplaudem e defendem. O que dirá ele? Dirá ele que a “educação intercultural” deve “cultivar o fascínio” perante práticas culturas desse tipo e as culturas que as incentivam, apóiam, aplaudem e defendem? Dirá ele que a “educação intercultural” deve promover “apreço” por essa “expressão inestimável dos dramas de vida” vividos pelas vítimas dessas práticas? Dirá ele que “a educação para a tolerância” deve ser tolerante para com essas práticas?
Se realmente temos “âncoras axiológicas de referência” e achamos que elas são importantes e essenciais para o “progresso humano”, não podemos defender o multiculturalismo, a interculturalidade, “cultivar o fascínio” e promover “apreço” por culturas diferentes, independentemente de seu respeito às nossas “âncoras axiológicas de referência”. Se realmente temos “âncoras axiológicas de referência” não podemos ter receio de avaliar culturas, de dizer que umas são superiores a outras, do ponto de vista moral, de hierarquizá-las em relação ao respeito que demonstram pelas nossas “âncoras axiológicas de referência”. Isso quer dizer que o multiculturalismo e a interculturalidade são posturas teóricas não só erradas, mas nocivas e perniciosas, porque nos deixam incapazes de criticar e condenar as práticas culturas mencionadas e as culturas e pessoas que as promovem, apóiam, aplaudem e defendem.
Apesar de as críticas que Roberto Carneiro faz à educação tradicional, sua proposta positiva de uma “educação intercultural”, uma “educação para a tolerância e a interdependência”, é fundamentalmente errada.
Roberto Carneiro afirma (e já citei): “Com efeito”, diz ele, “a erecção de uma cultura de direitos humanos é indivsível do respeito por toda a trama da variedade humana” (p. 66). Errado. “A erecção de uma cultura de direitos humanos é indivisível do respeito por” nossas “âncoras axiológicas de referência”.
No ar, voando em cima do Afganistão (o mesmo do Talibã, que apedrejava mulheres adúlteras e cortava a mão de quem roubava uma fruta), a caminho da Malásia (a mesma que, contraditoriamente, é condenada pelos multiculturalistas por permitir o trabalho infantil), 28 de novembro de 2006 (ainda 27, no Brasil)
Em tempo: Cerca de doze horas atrás voava por cima de Genebra, a caminho de Munique. O avião da Lufthansa dava acesso à Internet. Lá de cima escrevi a meu amigo Joaquim Brasil Fontes Júnior dizendo que estava voando por cima de Genebra, olhando Lac Léman (Lake Geneva) – ele me respondeu em menos de cinco minutos, dizendo: “Sobrevoas a civilização”. Não tenho dúvida de que o que ele disse doze horas é verdade. A frase “sobrevoas a civilização”, se dita agora, não seria verdade. Na verdade, as duas proposições, embora consistam exatamente das mesmas palavras, são distintas. Uma afirma que a Suiça é um exemplo de civilização; a outra afirma que o Afganistão é um exemplo de civilização. A primeira proposição é verdadeira; a segunda, infelizmente, não.
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