Uma leitora de nome Cassandra deixou o seguinte comentário neste space: "Actualmente, ser um livre pensador é uma utopia".
Não concordo que pensar livremente seja uma utopia.
Primeiro, é preciso caracterizar bem no que consiste o livre pensar.
Para isso uso duas passagens que estão transcritas no meu perfil, ambas retiradas da Wikipedia – primeira da Wikipedia em Português, a segunda da Wikipedia em Francês.
O livre pensador, diz uma, é aquele que analisa e julga as coisas, as pessoas, e os eventos que o rodeiam com base em sua capacidade de:
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observar e coletar evidência (experiência, percepção);
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analisar e avaliar essa evidência objetivamente (razão);
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extrair dela suas próprias conclusões (lógica).
O livre pensador é levado a concluir isto ou aquilo pela experiência, pela razão e pela lógica – não pelo que pensam ou pensaram os outros.
O livre pensador, diz a outra passagem, não se caracteriza por afirmar verdades (doutrina ou teoria), mas, sim, por adotar um método de buscar a verdade, a saber, a experiência, a razão e a lógica.
Essa caracterização do pensamento livre é perfeitamente coerente com uma citação de Lessing que coloquei como post ontem aqui neste space:
"O verdadeiro valor de um homem não é determinado por sua posse, real ou pretendida, da verdade, mas por seu sincero esforço de encontrá-la. Não é pela posse da verdade, mas por sua busca, que o homem expande sua capacidade de pensar, de se desenvolver, de se aperfeiçoar. A crença na posse da verdade nos torna indolentes, passivos, e indevidamente orgulhosos e insolentes. Se Deus contivesse em sua mão direita todas as verdades do mundo, e, na mão esquerda, contivesse apenas a ambição diligente e firme de buscar a verdade, ainda que, no processo, pudesse errar e freqüentemente fracassar, e me desse a escolha, não hesitaria em, com humildade, escolher o conteúdo da sua mão esquerda."
Essa passagem é refletida em vários lugares na obra de Popper, quando ele afirma que o filósofo (que, para ele, é o livre pensador por excelência), longe de ser o orgulhoso possuidor da verdade, é quem a procura e persegue – com humildade, mas com os instrumentos adequados, a saber, a experiência / observação, a razão e a lógica.
Em resumo: o livre pensador não depende de autoridades, divinas ou humanas, para chegar às suas conclusões. Depende unicamente de sua própria capacidade de observar, pensar e inferir. Depende, portanto, unicamente de si. Isso não quer dizer que o livre pensador não se beneficie do diálogo com os outros, da leitura de livros, e de outras coisas afins. Claro que se beneficia. Mas, em última instância, é ele quem tem de analisar e avaliar o que os outros dizem e escrevem – mesmo que os outros pretendam falar e escrever com autoridade divina. A contribuição dos outros não lhe chega, portanto, na forma de revelações a serem aceitas com base na autoridade de quem as emite, mas, sim, na forma de considerações que ele deve analisar e avaliar com base em suas observações, em sua capacidade de pensar, em sua capacidade de argumentar e julgar.
Tendo caracterizado o que significa pensar livremente, é preciso perguntar: é utopia imaginar que possamos pensar livremente, como pretende a leitora?
É difícil saber por que a leitora afirmou ser utópico o livre pensar, porque ela não aduziu nenhuma evidência, nenhum argumento. A afirmação que fez foi absolutamente gratuita.
No entanto, mesmo assim, é possível mostrar que o livre pensar não é uma utopia – que ele não só é possível mas vem ocorrendo o tempo todo, desde que o ser humano habita a Terra. É verdade que a maioria das pessoas prefere seguir a liderar na área do pensar. Os que ousam pensar por si próprios são sempre minoria. As sociedades têm sempre demonstrado uma tendência conservadora, de preservar a tradição, em vez de uma tendência inovadora, que só surge quando alguém ousa discordar e divergir da tradição.
Por exemplo… A grande maioria das pessoas acredita que está agindo corretamente quando está fazendo o que se acredita ser a vontade de Deus. Por muito tempo "a vontade de Deus", expressa em supostas revelações, colocadas no papel e transmitidas, ou em supostas comunicações feitas diretamente à consciência das pessoas, foi considerada o critério único (ou principal) do comportamento moral. Até que alguém ousou perguntar: isso é certo (ou errado) porque Deus ordena (ou proíbe) – ou Deus ordena (ou proíbe) porque é certo (ou errado)?
Se algum comportamento é certo (ou errado) apenas porque Deus o ordena (ou proíbe), então a moralidade é totalmente arbitrária, dependendo apenas da vontade de um ser – que pode ter decidido assim, mas poderia ter decidido doutra forma. Se, no entanto, Deus não poderia ter decidido doutra forma, então o certo (ou o errado) moral não dependem de sua vontade, mas, sim, da própria natureza das coisas, da própria natureza dos atos em questão. É porque algo é certo (ou errado) que Deus o ordena(ou proíbe). E se conseguimos, por nós mesmos, determinar o que é certo (ou errado), não precisamos de que Deus, ou quem quer que seja, nô-lo diga.
Quem primeiro elaborou esse argumento era um livre pensador. Ousou pensar fora da tradição — "out of the box", como dizem os anglófonos hoje.
Era um livre pensador quem primeiro pensou que as pessoas não são vítimas de possessão demoníaca, mas, sim, de problemas mentais que é possível, em muitos casos, corrigir.
E assim vai.
Pensar livremente é não só difícil mas, freqüentemente, também doloroso. É duro analisar criticamente e, eventualmente, concluir que devemos rejeitar, idéias que vêm nos acompanhando há tempo — há décadas, em muitos casos, ou até mesmo a vida toda. Por isso muitas pessoas têm medo de embarcar na análise crítica das idéias que lhe serviram de bússola até aqui – pois poderão ficar desnorteadas sem essa bússola. No entanto, pensar livremente é parte de nossa busca por liberdade e autonomia. Como bem ressaltou Erich Fromm, a maioria das pessoas tem medo da liberdade – preferindo a segurança que um ambiente não livre, mas conhecido e seguro, fornece. O mesmo se dá na área do pensamento. As idéias que adotamos até aqui freqüentemente nos dão um certo nível segurança. Mesmo que totalmente falsas. Essa é a segurança do costume e do hábito. A questão é: buscamos segurança ou a verdade? segurança ou a liberdade?
Espero que a Cassandra volte ao assunto e nos dê suas razões para afirmar que o livre pensar é utópico.
Em Salto, 25 de Agosto de 2008
Simplesmente fantátisca a explanação do autor sobre pensamento livre. O grande dilema que vejo, e que talvez tenha motivado a manifestação da Leitora de nome Cassandra, seja a dificuldade que temos, imersos no turbilhão de problemas que assolam o nosso cotidiano, de parar e refletir sobre as coisas, perguntando-nos o "porquê"de estarmos enxergando as coisas desta ou daquela maneira. O que quase sempre acontece é que o uso de idéias prontas (enlatadas) e comumente aceitas nos faz ganhar tempo, ser vistos como eficientes, rápidos, pró-ativos (perdõem-me se não há mais o hífen). E assim caminha a humanidade. Eu sempre achei que tomar banho imediatamente após almoçar fosse uma tentativa de suicídio, porque algum conhecido da família fez isso e quase morreu, além de ter ficado "perturbado das idéias". Até o dia em que tive de fazê-lo. E como estou aqui divagando no blog, os leitores podem concluir que o pior que possa ter acontecido é eu ter ficado mais inteligente, a pontode me interessar por tão fascinante assunto: a libertação das mentes! Abraços a todos!
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