Escola e Ensino não são Sinônimos de Educação

Post que publiquei no Blog das Editoras Ática e Scipione em 26 de Setembro de 2011 no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/escola-e-ensino-nao-sao-sinonimos-de-educacao.

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Por que a escolarização é obrigatória, e não a educação? A maior parte das pessoas considera escola e educação como conceitos basicamente equivalentes, e, portanto, nem sequer lhes ocorre que poderiam educar seus filhos em casa, sem precisar enviá-los à escola.

1. Paradigmas

Paradigmas são construídos à medida que um determinado conjunto de ideias passa a ser aceito de forma tácita pela maior parte de um grupo – o grupo para o qual essas ideias são especialmente relevantes e importantes (ou o foram, em uma determinada fase de sua história).

Na realidade, para que se construa um paradigma é necessário que as ideias que compõem esse conjunto sejam consideradas não só verdadeiras, mas evidentes – para dizer a verdade, tão evidentes que se acredite ser desnecessário explicitá-las e demonstrar que há evidência e bons argumentos que as sustentam (se é que há).

Para quebrar um paradigma é necessário desconstruí-lo. Para desconstruir um paradigma bem firmado na mente de um grupo de pessoas, é necessário frequentemente mostrar suas falhas – até que alguém se disponha a prestar atenção. Quando alguém mais é convencido, serão dois a repetir as falhas do paradigma. Assim, o movimento prosseguirá até que o grupo dos que se opõem cresça e ameace seriamente a estabilidade dele. Neste momento, os que lhe eram favoráveis começam a considerar o grupo de críticos como visionários, românticos ou simplesmente loucos.

Thomas Kuhn descreveu esse processo de forma bastante interessante no âmbito da ciência. Seu livro The Structure of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas), de 1962, argumenta que verdadeiras revoluções científicas são raras, mas acontecem. Durante a maior parte do tempo os cientistas simplesmente dão por pressuposto que o paradigma sob o qual trabalham está acima de qualquer suspeita e, por isso, não o questionam e simplesmente ignoram críticas feitas a ele. Em geral, os pesquisadores mais velhos investiram muito nas concepções vigentes (quem sabe escreveram vários livros e artigos defendendo-as), o que os leva a raramente admitirem falhas.

No entanto, há um ponto em que as críticas são tantas, e tão fortes, que aqueles que ainda não estão tão “apegados” ao velho paradigma passam a observá-lo com certo ceticismo e a contemplar a possibilidade de adotar, ou mesmo criar, um novo modelo. É assim que as coisas acontecem na ciência. Paradigmas se sucedem vagarosamente e não sem muitas dificuldades, já que algumas pessoas preferem morrer a mudar de ponto de vista.

Se isso acontece na ciência, que seria a prática mais racional existente entre os humanos, é de esperar que os paradigmas tenham vida relativamente segura entre os componentes dos grupos que os aceitam na política, na religião e, como procurarei mostrar, na educação.

Na política, se alguém é de direita, ou socialista, ou de esquerda ou, alternativamente, liberal, em geral considera esse paradigma como dado e simplesmente ignora comentários adversos. Na religião, se alguém é judeu, ou cristão, ou muçulmano, faz a mesma coisa. Por isso a maioria das pessoas morre na mesma religião em que nasceu. Mudança de religião ou abandono total de qualquer religião são fenômenos relativamente raros – embora nos últimos tempos pareçam mais comuns.

A situação na educação é parecida. Embora para quem estude a área com mais cuidado esteja claro que educação é uma coisa, ensino outra, e escola ainda uma outra, na cabeça da maior parte das pessoas esses termos são basicamente sinônimos, ou, pelo menos, equivalentes.

Nossa lei maior da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, deixa claro no primeiro parágrafo de seu primeiro artigo que disciplina “a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” – ou seja, em escolas.

No entanto, nem mesmo adotando como foco a educação que tem lugar através do ensino em escolas, a lei deixa de mencionar, em seu segundo artigo, que “a educação é dever da família e do Estado”. Tal especificação é curiosa, vindo, como vem, no artigo seguinte ao que esclarece que a norma disciplinará apenas a educação escolar, pois a educação provida no lar não parece se exaurir naquela fornecida nas salas de aula… Mas deixemos isso para lá.

Em parte porque a lei foca a educação que tem lugar através do ensino escolar, ela parece considerar os termos educação, ensino e escola de forma quase intercambiável em alguns lugares. Isso contribui para reforçar a ideia, que é parte do paradigma, que esses conceitos se referem, todos, à mesma coisa. Para alterar este senso comum, precisamos descontruir essa equivalência. É isso que venho tentando fazer neste blog.

2. A educação em casa (Home Education)

No momento, estou relendo um livro instigante, que conheci há alguns anos. Trata-se de Teach Your Own: The John Holt Book of Homeschooling (Ensine os seus: O livro de Educação em Casa de John Holt), autorado por John Holt e Pat Farenga (Perseus Publishing, 2003).

A obra é uma revisão, por Pat Farenga, de dois livros anteriores:Teach Your Own: A Hopeful Path for Education (Ensine os seus: Um caminho que traz esperança para a Educação), de John Holt, publicado em 1981, e The Beginner’s Guide to Homeschooling (Guia de Educação em Casa para o iniciante), do próprio Pat Farenga, publicado em 2000.

Nos Estados Unidos e em alguns outros países mais desenvolvidos a opção da Educação em Casa, ou Home Education, com a consequente desescolarização das crianças, já virou um movimento digno de nota há algum tempo.

Hoje, acho difícil que a proposta de que os pais eduquem os filhos em casa, em vez de enviá-los à escola, encontre eco no Brasil – até porque a lei proíbe que isso se dê no caso da Educação (ou seria Ensino?) para as crianças e adolescentes na faixa de 6 a 14 anos.

Aqui no Brasil, alguns pais já realizaram tentativas nesse sentido. Pediram permissão ao MEC e se comprometeram a levar os filhos para fazerem as provas oficiais etc., mas a permissão não apenas foi negada como alguns foram processados pelas autoridades educacionais (embora fossem professores competentes que certamente fariam um bom trabalho – talvez até melhor do que aquele que se realizaria na escola). No fim, tiveram de desistir, porque no Brasil não é a educação que é obrigatória: é a escolarização – na verdade, o Ensino Fundamental para crianças e adolescentes. O que eu acho um absurdo.

Por que a escolarização é obrigatória, e não a educação? Acredito que isso se dê em grande parte porque a maior parte das pessoas considera escola e educação como conceitos basicamente equivalentes, e, portanto, nem sequer lhes ocorre que poderiam educar seus filhos em casa, sem precisar enviá-los à escola – e que os resultados, em muitos casos, seriam até mesmo melhores. O livro de John Holt elabora essa tese que deveria ser ou se tornar evidente: um novo paradigma.

Por muito tempo as pessoas se educaram fora da escola porque simplesmente não havia escolas, ou não havia escolas para todos. Mesmo quando passou a haver escolas para quase todos, elas só cobriam uma fase limitada da vida, em geral a infância – a faixa etária de 7 a 10 anos, especificamente. Antes dessa idade, as crianças eram educadas em casa. Depois dessa idade – e pelo resto de suas vidas – continuavam a se educar fora da escola, através do trabalho, do lazer e ao simplesmente viverem suas vidas.

O processo de se preparar para uma profissão era um estágio de educação não-formal, para o qual não havia escolas. O sujeito se tornava um aprendiz, que trabalhava junto de um mestre e oportunamente se graduava e assumia, de forma desassistida, o exercício da profissão.

A escola que hoje temos é uma instituição criada na era industrial, que persiste em adotar várias das características dos processos industriais de produção (manufatura) em massa. A escola pega crianças que são diferentes uma das outras em termos de talentos naturais, interesses, estilos de aprendizagem, níveis de curiosidade, motivações etc. e coloca todas numa mesma forma para que, ao final do processo, se tornem basicamente intercambiáveis. Todo mundo tem de aprender a mesma coisa, na mesma hora, do mesmo jeito. Isso, além de não fazer bem a ninguém, faz mal a muitas crianças que são obrigadas a se dedicar, por horas a fio, a atividades pelas quais não têm o menor interesse e, em muitos casos, o menor talento, com grande prejuízo para seu desenvolvimento.

Diante deste cenário, por que proibir que os pais que conhecem bem os seus filhos e têm condições e interesse em educá-los fora da escola possam fazê-lo? Numa sociedade como a nossa, em que a informação existe em grande quantidade e o acesso a ela é simples, e a comunicação, inclusive com especialistas, é relativamente fácil, as pessoas (jovens e adultas) já obtêm a maior parte de sua educação – pelo menos aquela que importa – fora da escola, através dos meios de comunicação, entre os quais se destacam a televisão, o rádio, as revistas e especialmente a internet (web, e-mail, mensagens instantâneas, fóruns, grupos de discussão, redes sociais).

Não há a menor dúvida de que um adolescente tem seus interesses próprios, não escolares, e se educa para cultivá-los e desenvolvê-los fora da escola. Nenhuma escola ensina crianças, adolescentes e jovens a jogar videogames, estejam eles em arcadas, em computadores, em telefones ou em consoles grandes ou pequenos.

Mas os meios de comunicação educam em outras áreas também: a área dos costumes, das atitudes e dos valores. Meu neto de seis anos esta semana me perguntou se eu achava que ele um dia teria filhos. Disse que achava que sim, caso ele encontrasse uma namorada de quem gostasse muito e com quem resolvesse se casar. Ele não se lembrou de dizer que há muita gente que tem filhos e não é casada, mas me retrucou que há muita gente casada que não tem nenhum filho, e eu tive de admitir que é verdade – mas acrescentei que a maioria tem um ou mais filhos, meninas ou meninos.

A isso ele observou: mas tem gente que também tem filho que é gay. Fui pego meio de surpresa, e tentei descobrir se ele realmente sabia o que estava dizendo. Sabia, sim. Conversei com o pai dele, depois, para entender porque ele havia dito aquilo. A resposta foi: “As novelas, Eduardo, as novelas. Ali aparecem, agora, todo dia, casos de pais que descobrem que os filhos são gays”. Independentemente do teor daquilo a que as crianças estão expostas na televisão, elas se educam no processo e passam a considerar o homossexualismo algo natural; passam a imaginar que, ao nascer, as crianças são meninos, meninas ou gays.

O mesmo neto me disse que, na escola nova que está frequentando, ele tem duas namoradas. Perguntei se isso era certo, ou “legal”, e a resposta foi que nas novelas um monte de gente tem mais de uma namorada… (Logo, deve ser certo, não é verdade?).

Apesar de ser realidade o fato de crianças como o meu neto estarem se educando pela televisão (que está fora da escola), caso os seus pais resolvam educá-las em casa (também fora da escola), eles poderão ser processados. Bem, como já comentei, acho isso um absurdo.

3. A Educação sem ensino

Já citei neste blog uma passagem de um outro livro de John Holt em que ele discute como as crianças – e as pessoas em geral – aprendem. Vale a pena retomá-la, agora neste contexto, para mostrar que a maior parte das coisas realmente importantes são aprendidas por processos diferentes do ensino formal:

Bill Hull uma vez disse a John Holt que “se a gente ensinasse as crianças a falar, elas nunca aprenderiam”. Vou transcrever a seguir a maior parte do artigo “Teaching Children How to Speak”, de Holt, no qual ele discorre sobre as implicações do que o outro lhe dissera. Mas antes devo dizer que Hull, Holt, Everett Reimer, A. S. Neill, Paulo Freire, e, por que não dizer, Ricardo Semler, são todos pássaros da mesma plumagem.

Eis o que diz John Holt no artigo:

“Vamos supor que tomemos a decisão de ‘ensinar’ as crianças a falar. Como é que a gente faria? Primeiro, um comitê de especialistas analisaria a fala e a quebraria em um certo número de ‘habilidades requeridas para a fala’. Provavelmente os especialistas diriam que, visto que a fala é composta de sons, seria necessário, primeiro, ensinar a criança a emitir todos os sons requeridos por sua língua materna. Sem isso não seria possível ensiná-la a falar… Sem dúvida eles classificariam os diversos sons dos mais fáceis e frequentes para os mais difíceis e raros. E o professor então começaria a ensinar à criança, primeiro os sons mais fáceis e frequentes, depois os mais difíceis e raros, até passar por toda a lista. Talvez, para não ‘confundir’ a criança, a gente a colocasse em um ambiente segregado, isolado da vida normal, para que ela não ouvisse a fala regular dos já falantes, mas apenas repetidamente ouvisse, em cada estágio, os sons que o professor está tentando ensinar a ela. Ao lado de uma lista de sons, os especialistas comporiam uma lista de sílabas que combinassem os sons, e uma lista de palavras selecionadas que combinassem as sílabas pertencentes à lista de sílabas. Num segundo estágio, o professor ensinaria a criança a combinar sons em sílabas, num terceiro, a combinar sílabas em palavras. Em estágio subsequente, o professor ensinaria a criança a combinar palavras em frases e sentenças. Mas, antes disso, teria de ensinar à criança as regras gramaticais que regem a formação de frases e sentenças. Tudo seria completa e meticulosamente planejado, nada sendo deixado ao acaso. Em cada estágio haveria uma grande quantidade de exercícios práticos, revisões, testes, para garantir que nenhuma criança esquecesse o que já lhe havia sido ensinado. Suponhamos que fizéssemos isso. O que aconteceria? O que aconteceria seria que a maior parte das crianças, antes de ir muito longe, ficaria confusa, frustrada, desencorajada, humilhada, temerosa – e provavelmente desistiria de aprender a falar. Se, fora da sala de aula, elas vivessem vidas normais de crianças, poderiam, sem prejuízo, simplesmente ignorar o ‘ensino’ e aprender a falar do jeito normal. Se, entretanto, a escola tivesse controle integral e completo de sua vida desde os primeiros meses de vida (o sonho de demasiados educadores), elas buscariam refúgio no silêncio e no fracasso deliberado, como tantas fazem, quando tentamos ensiná-las, não a falar, mas a ler e escrever…”.

4. Conclusão

É isso. Educação é uma coisa, ensino outra, e escola ainda uma outra. Quanto mais cedo a gente desimbricar esses conceitos e deixar de confundi-los e considerá-los equivalentes, ou quase sinônimos, melhor.

Em São Paulo, 26 de Setembro de 2011, transcrito aqui em 11 de Outubro de 2011.

4 responses

  1. Olá. Bem, este artigo é antigo, muita coisa mudou e hoje no Brasil cada vez mais famílias conscientizam-se do verdadeiro intuito da escola obrigatória e assumem a “escolarização” dos filhos.Vejo isso como um caminho sem volta, mais cedo ou mais tarde essa opção será (ou terá que ser) reconhecida. Quanto à legislação, não há citação do Ensino em casa na Constituição, portanto não é ilegal. Gostaria de compartilhar um vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=yjNo0Cvul60 Acho que está mais do que na hora de se levar a humanidade a sério e dar real importância ao que estamos fazendo às nossas crianças. Obrigada!

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