Post que publiquei no Blog das Editoras Ática e Scipione em 03 de Outubro de 2011, no URL http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/o-desafio-da-formacao-do-professor-na-sociedade-da-informacao.
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No contexto atual da sociedade da informação – em que o professor não é um especialista em determinada área de conteúdo curricular, mas, sim, um facilitador da aprendizagem –, é possível questionar: pode alguém que não é um especialista em Física facilitar o aprendizado da Física, por exemplo?
1. A sociedade industrial, a divisão do trabalho e a especialização
A sociedade industrial surgiu, no fim do século 17 e início do século 18, com a divisão do trabalho. Adam Smith, em A Riqueza das Nações, publicado em 1776, deixa isso bastante claro. Com a divisão do trabalho foram inventadas as especialidades e, acompanhando-as, a figura do profissional especializado.
Até há cerca de cinquenta anos, éramos uma sociedade tipicamente de especialistas. Os generalistas eram mal vistos. Mesmo na filosofia, onde os profissionais em geral dão pitaco sobre toda e qualquer coisa, a especialização começou a surgir. O indivíduo não era mais filósofo, puro e simples. Ele passou a ser filósofo da ciência, da política, da religião… Na filosofia da ciência, subespecializações surgiram: filosofia das ciências naturais, filosofia das ciências humanas etc. Dentro da filosofia das ciências naturais, filosofia da física – quando não da mecânica quântica e de outras subáreas.
A situação ficou tão séria que o maior filósofo do século 20, Karl Popper, ele próprio um generalista inveterado (dentro e fora da filosofia), sentiu-se na obrigação de advertir que, em outras áreas, a especialização pode ser um pecado venial necessário e, portanto, desculpável, mas na filosofia é um pecado mortal, imperdoável como tal…
Na sociedade industrial o ideal (colocando a questão no plano caricatural) passou a ser saber cada vez mais sobre cada vez menos. Seus profissionais foram, aos poucos, se tornando ultraespecializados. Lembro-me de ter visto, na Unicamp, uma tese de uma aluna que se especializava em Letras (subespecialização Literatura, “sub-subespecialização” Literatura Brasileira) que tinha um título mais ou menos assim: “O uso da partícula ‘ora’ na prosa de Guimarães Rosa”. Tese mais especializada do que essa é difícil de imaginar.
2. A escola da sociedade industrial
Como mais que sabido, a escola moderna surgiu com a sociedade industrial. Inicialmente, ela era pequena e simples, seus cursos não duravam mais de cerca de quatro anos (Escola Primária ou Elementar) e os professores eram polivalentes. O professor polivalente é um profissional especializado, quando comparado com outros profissionais: o médico, o engenheiro, o advogado. Mas, dentro da área da educação, o professor polivalente é um generalista: ele cuida da alfabetização de seus alunos e, depois, da leitura, da escrita, do cálculo, dos estudos sociais, das ciências, das artes e até mesmo da educação física. Em alguns contextos pouco heterogêneos do ponto de vista religioso, esse professor se ocupava até mesmo da educação religiosa dos alunos.
À medida que a escola cresceu, o ensino diferenciou-se e as séries foram se estendendo além do nível primário. E, numa sociedade cada vez mais complexa, o professor começou a virar especialista. É verdade que, ainda hoje, o professor da Educação Infantil e das séries iniciais da Educação Fundamental é, em muitos contextos, polivalente: um generalista. Mas mesmo aí a especialização já coloca a sua cara. O professor alfabetizador se especializa em conseguir que a criança aprenda a ler e escrever. O professor de Matemática e Ciências se especializa em ajudar a criança adquirir as competências básicas dessas áreas. O professor de Estudos Sociais e Meio Ambiente faz o mesmo com suas áreas. Professores de Educação Artística e de Educação Física completam o quadro. São vários especialistas, ainda dentro da Educação Fundamental, onde havia antes apenas um professor polivalente e generalista.
3. A sociedade da informação
Hoje em dia, com o aparecimento da sociedade da informação, a figura do generalista está readquirindo prestígio. Algum nível de especialização parece inevitável, especialmente em profissões liberais como engenharia, medicina, direito. Dentro destas áreas, porém, a sociedade da informação começa a esperar que seus profissionais sejam cada vez mais polivalentes, vale dizer, generalistas. No trabalho empresarial, então, mais do que nunca.
Espera-se do profissional de marketing, por exemplo, que entenda dos produtos e do core business da empresa, do profissional de treinamento que entenda dos processos básicos para os quais precisa organizar formações, do profissional de vendas que entenda dos produtos e processos e, mais, que entenda de psicologia e de relações interpessoais. Aqueles que transitam com facilidade de uma área para outra da empresa são os mais credenciados a subir na escada do sucesso.
Nesse contexto, dados os condicionamentos que nos fazem esperar especialidades, caímos na tentação de definir especializações híbridas, bidisciplinares, ou multi ou pluridisciplinares: Engenharia Biomédica, Sociobiologia, Psicolinguística. Ou, ainda melhor, especializações transdisciplinares, que seriam especializações literalmente não especializadas.
4. A escola na sociedade da informação
A escola, como sempre, resiste a essas inovações. Os professores, na visão da educação tradicional, seriam, na melhor das hipóteses, biespecialistas: especialistas numa área de conteúdo curricular (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências etc.) e especialistas na ciência (ou quem sabe arte) de transmitir a outrem o conteúdo de sua área de especialização: Pedagogia. (É por isso que professores são sempre professores de alguma coisa, e que se espera que eles tenham alguma formação pedagógica).
Há quem ache que alguns professores – os de Didática Geral, por exemplo – seriam uniespecialistas: sua especialidade seria a arte de ensinar ou transmitir conteúdos de qualquer natureza. Os professores de Didática Específica (Didática da Língua Portuguesa, Didática da Matemática, Didática da Física etc.) seriam, entretanto, biespecialistas. E os professores de Língua Portuguesa, Matemática, Física, idem: também biespecialistas.
No contexto atual da sociedade da informação – em que o professor não é um especialista em determinada área de conteúdo curricular, mas, sim, um facilitador da aprendizagem –, é possível perguntar: pode alguém que não é um especialista em Física facilitar o aprendizado da Física, por exemplo? Eu tendo a crer que sim, embora reconheça que a resposta a essa questão esteja longe de ser simples e dificilmente poderá ser discutida adequadamente aqui.
No centro de pesquisas da Microsoft em Redmond, nos Estados Unidos, encontrei por várias vezes um especialista em facilitação de interação em reuniões. Ele não era especializado em facilitar qualquer coisa – a aprendizagem, por exemplo –, mas era um genuíno expert em propiciar, ao longo de uma reunião, a discussão sobre qualquer assunto, ainda que fossem temas sobre os quais ele pouco ou mesmo nada entendia.
Todas vezes que o vi e fui (literalmente) vítima de sua ação implacável, ele mostrou-se altamente competente no processo de articular debates, inclusive quando a pauta soava bizantina. Ele se concentrava no processo: quem falava muito, quem falava pouco, quem ficava calado, quem queria controlar o fluxo ou a direção da discussão… E aplicava regras: nenhuma fala podia ultrapassar dois minutos, por exemplo; ou ninguém podia falar pela segunda vez até que todos tivessem contribuído ao menos uma vez; ou era preciso parar a discussão se alguém não tivesse entendido algum conceito ou afirmação proposta (a discussão, contudo, não era parada, nem a ordem do discurso alterada, simplesmente porque alguém discordara dos demais).
O professor do futuro será alguém assim? Um facilitador, um mediador, uma mistura de mentor e coach? Alguém que sabe ouvir, que sabe fazer perguntas (de esclarecimento e de sondagem, como diria meu amigo Les Foltos), que sabe argumentar, deixar de lado os acessórios e chegar direto ao essencial? Será ele o sujeito que, além de facilitar, também problematizará, questionará, levará os outros a pensar? Um maieuta? Uma parteira intelectual que ajuda os outros a conceber e a parir ideias, explicações, formas interessantes de ver o mundo?
As faculdades de Educação não têm a menor ideia do que está envolvido na formação de um professor diferente do tradicional – aquele biespecialista meio capenga, “3×1”, que cursa três anos de conteúdo em algum Instituto (Física, Química, Biologia, Matemática, Letras, Ciências Humanas) e, numa faculdade de Educação, um ano de matérias pedagógicas (Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia da Aprendizagem, Didática), de uma perspectiva, a maior parte das vezes, totalmente anacrônica e ineficiente para o ofício do professor (tradicional ou moderno).
Está na hora de pensarmos na formação do professor sob a ótica de um paradigma diferente: um professor para a sociedade da informação, cuja formação não seja, necessariamente, a de um especialista em alguma fração do currículo, mas aquela que lhe permita mediar e facilitar o desenvolvimento de competências por parte de seus alunos, ainda que ele próprio não as domine.
Em São Paulo, 3 de Outubro de 2011, transcrito aqui em 11 de Outubro de 2011
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