O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa

O Liberalismo na Política, Economia e Sociedade e suas Implicações para a Educação: Uma Defesa [1]

Eduardo Chaves [2]

Conteúdo

A Intenção deste Artigo. 2

Um Liberalismo ou Vários Liberalismos?. 3

O Liberalismo Clássico ou “Laissez-Faire”. 3

O que se Chama Liberalismo nos Estados Unidos. 4

O Chamado Neo-Liberalismo. 4

O Princípio Fundamental do Liberalismo. 5

O Conceito de Liberdade. 6

Liberdade e Direitos Individuais 8

Restrições Legítimas aos Direitos Individuais. 11

Os Chamados Direitos Sociais 12

O Liberalismo e o Atendimento aos Carentes e Necessitados. 18

A Salvaguarda do Liberalismo: A Constituição Liberal 19

Implicações Básicas do Liberalismo. 21

Liberalismo e Anarquismo. 22

O Liberalismo e a Questão da Segurança. 24

Liberalismo, Social-Democracia e Socialismo. 25

O Liberalismo Posicionado. 27

Implicações do Posicionamento Sugerido. 28

Liberalismo e Totalitarismo (Nazismo, Fascismo, Comunismo) 28

Liberalismo e Autoritarismo (Ditadura Militar Brasileira) 28

Liberalismo e Social-Democracia Brasileira (Governo de FHC) 29

Liberalismo e Conservadorismo. 30

Ensaio Bibliográfico e “Webgráfico”. 30

o O o

“Não sei quanto aos outros, mas no que me diz respeito, ou tenho liberdade, ou prefiro a morte”.

Patrick Henry, 23 de março de 1775

1. A Intenção deste Artigo

Minha intenção neste artigo é modesta.

Procuro aqui expor, de forma simples e didática, a minha visão do Liberalismo, para que os não familiarizados com essa tendência na Filosofia Política possam vê-la exposta por alguém que a aceita e está disposto a defendê-la. [3]

Em muitos aspectos, cubro, neste artigo, terreno semelhante ao que já cobri em outro artigo, escrito em 1997 mas publicado apenas em 2001 (com data de 1999): “Preâmbulo a uma Defesa do Liberalismo” [4]. Apesar de alguma sobreposição inevitável, este artigo representa, entretanto, uma nova tentativa de apresentar o Liberalismo para os educadores brasileiros, em geral contaminados por uma visão socialista, ou claramente socializante, da Filosofia Política. O artigo anterior era mais descritivo: este é mais argumentativo. Trata-se, aqui, de uma defesa do Liberalismo – não uma defesa contra os críticos (como ainda espero produzir), mas, sem dúvida, uma defesa no sentido de exposição justificada do essencial. Muitos aspectos ficarão intocados (em decorrência da falta de espaço), mas o essencial do Liberalismo, como eu o vejo, será coberto.

Não me move, neste artigo ou em outros contextos, o desejo de fazer proselitismo. Tenho tanta convicção de que o Liberalismo é, de todas as tendências da Filosofia Política, a mais sensata, que acredito que uma apresentação clara do Liberalismo, por alguém que está convencido de seus méritos, como é o meu caso, irá convencer muitas pessoas de mente aberta, se não a passar para as suas hostes, pelo menos a estudá-lo com interesse, seriedade, e, talvez, até mesmo simpatia. Suspeito que a forma distorcida e irreconhecível com que o Liberalismo é apresentado pelos seus inimigos decorre do receio de que, se o apresentarem tal qual é, terão perdido o impacto da maior parte de suas críticas.

Acho necessário dizer isso porque a maioria absoluta dos artigos e livros sobre o Liberalismo publicados no Brasil vem de autores que só podem ser descritos como adversários do Liberalismo – inimigos mesmo, que não hesitam em criar um “liberalismo de palha” para poder facilmente descartá-lo em favor de suas tendências preferidas. A maior parte desses autores é marxista – ou se inspirou no Marxismo – e vê o Liberalismo, portanto, através das lentes distorcedoras do Marxismo. Para eles, vendo o mundo a partir da ótica marxista, chamar um autor ou uma postura de liberal equivale a uma condenação, pura e simplesmente. Alguns, na verdade, chamam de liberal qualquer posição que não se enquadre na vulgata marxista, como se, entre Marxismo e Liberalismo, tertium non datur.

Os alunos que saem de nossas universidades, já faz um tempo, só conhecem esse pseudo-Liberalismo criado pelos marxistas para facilitar o seu trabalho de se apresentar aos alunos como única opção teórica e metodológica séria na Filosofia Política. Na verdade, os alunos que saem de nossas universidades, em especial na área de Ciências Humanas, Filosofia e Educação, são objetos de um processo, não de educação, mas de verdadeira doutrinação – da mais perversa porque não só se rotula de educação mas se traveste de “educação crítica”! Como os alunos em geral não têm professores liberais, ou, se os têm, são incentivados a não assistir seus cursos, a única visão do Liberalismo que recebem é aquela em que o termo “liberal” é um termo pejorativo, um rótulo de opróbrio.

Assim, se o texto deste artigo por vezes assume um tom demasiado polêmico, o objetivo não é fazer prosélitos, mas, sim, recuperar o Liberalismo das ridículas distorções de que tem sido vítima aqui no Brasil – nas mãos de autores brasileiros e de autores estrangeiros traduzidos para o Português. [5]

2. Um Liberalismo ou Vários Liberalismos?

É evidente, porém, que não pretendo argumentar que minha visão do Liberalismo é a única visão possível ou a verdadeira. O Liberalismo, enfatizando, como o faz, a liberdade, liberdade essa que torna possível a diversidade e que é a arqui-inimiga das ortodoxias e dos dogmatismos, é visto de formas diversas por muitos autores que, apesar das divergências, merecem ser considerados liberais. Deixando de lado, temporariamente, os inimigos do Liberalismo, que se comprazem em caricaturá-lo, os próprios defensores do Liberalismo discordam nos detalhes de sua caracterização e na forma de justificá-lo. Não existe uma ortodoxia liberal, razão pela qual não se pode falar em revisionismo, desvio ideológico e heresia dentro do Liberalismo – embora haja, naturalmente, alguns princípios básicos que todo liberal aceita e algumas doutrinas adversárias que todo liberal rejeita.

A. O Liberalismo Clássico ou “Laissez-Faire”

O que vou apresentar e defender neste artigo é, portanto, a minha visão pessoal do Liberalismo, amadurecida ao longo dos últimos trinta e poucos anos.

Embora certamente dependa fundamentalmente do trabalho destas pessoas, essa visão não será idêntica à de Adam Smith, ou de Thomas Jefferson, ou de Ludwig von Mises, ou de Friedrich August von Hayek (geralmente conhecido como Friedrich A. Hayek), ou de Milton Friedman, ou mesmo de Ayn Rand – que é a autora que mais me tem servido de mapa e de bússola nessa área, desde que a descobri em 1973 [6].

Prefiro caracterizar o Liberalismo através do que me parece essencial nele e procurar esclarecer a posição liberal em relação à política, à economia, e à sociedade (aqui incluída a educação) de forma coerente com esses princípios essenciais.

Ficará evidente ao leitor atento que o que estou chamando de Liberalismo, tout court, é às vezes chamado de “Liberalismo Clássico”, ou de “Liberalismo Laissez-Faire”, ou, ainda, nos Estados Unidos, de “Libertarianismo”, para que seja distinguido de outras versões do Liberalismo, em especial daquilo que se chama (mas não é) Liberalismo nos Estados Unidos e do que, mais recentemente, vem sendo chamado (em geral por seus oponentes) de Neo-Liberalismo.

B. O que se Chama Liberalismo nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos o termo “Liberalismo” foi usurpado pelos social-democratas [7] (como Edward “Ted” Kennedy e William “Bill” Clinton e, em geral, os membros do Partido Democrata, desde a época do New Deal de Franklin D. Roosevelt), que, lá, se rotulam de liberais. Os que são realmente liberais nos Estados Unidos, para evitar confusão, se viram forçados a se chamar de libertários. [8]

No meu uso do termo, John Rawls, por exemplo, bastante conhecido hoje em dia no Brasil, não é um liberal, estando muito mais perto da Social-Democracia do que do Liberalismo, embora ele próprio se pretenda liberal – mas no sentido “americano” do termo [9]. Tradutores profissionais freqüentemente desconhecem esse fato, e traduzem os termos ingleses “liberal” e “liberalism” por “liberal” e “liberalismo”, sem qualquer ressalva ou explicação, assim confundindo leitores menos avisados.

C. O Chamado Neo-Liberalismo

No mundo inteiro fala-se também muito, hoje em dia, em Neo-Liberalismo. Registre-se, primeiro, que esse termo, em regra, nunca é usado por liberais para se referir a si próprios. Ele normalmente é usado por social-democratas e socialistas (ou simpatizantes) para designar toda e qualquer pessoa ou iniciativa voltada para “reduzir o tamanho do governo”.

O rótulo de neo-liberal é aplicado, portanto, ou a pessoas que defendem o Liberalismo no século XX (como von Mises, von Hayek, Friedman), ou então a iniciativas daqueles que, já tendo estado mais próximos da esquerda no espectro político [10], agora procuram retroceder na direção do Liberalismo, mas tentando preservar, ao mesmo tempo, algumas das chamadas “conquistas sociais” – “les acquis sociaux” em que tanto se fala na França na era pós-Mitterand. (É oportuno mencionar que a maior parte dessas ditas conquistas foi obtida – muitas vezes por outorga e não por real conquista das esquerdas – de governos que nada tinham de esquerdistas, como é o caso, no Brasil, da maior parte do que é hoje é a Consolidação das Leis do Trabalho, que remonta a Getúlio Vargas).

Algumas pessoas ou iniciativas designadas como neo-liberais normalmente estão longe de ser liberais no sentido clássico do termo. Vide adiante a discussão do Governo FHC [11].

3. O Princípio Fundamental do Liberalismo

Isso posto, é preciso deixar claro que o Liberalismo é, basicamente, uma Filosofia Política – ou, como preferem alguns, uma tendência na Filosofia Política. Embora tenha se tornado famoso no final do século XVII e, principalmente, no século XVIII, o Liberalismo tem uma nobre linhagem, com antecedentes que remontam à Antigüidade – aos Gregos e mesmo aos Hebreus (como bem demonstra Lord Acton).

A filosofia liberal se sustenta no princípio fundamental de que quando o indivíduo, ao se associar com outros indivíduos, passa a viver em sociedade, a liberdade se torna o seu bem supremo, que, enquanto tal, tem preponderância sobre qualquer outro bem que possa ser imaginado [12]. Alguém vivendo sozinho em uma ilha deserta pode ter outros bens supremos. Mas para nós, que vivemos em sociedade, a liberdade é essencial para e por nos preservar um espaço privado, inviolável, que não possa ser transgredido pelos nossos semelhantes. A função primordial do estado é garantir a existência e a inviolabilidade desse espaço.

O problema é que o estado, sendo constituído por pessoas, freqüentemente, em vez de garantir esse espaço privado, tenta, ele próprio, invadi-lo, restringi-lo, ou até mesmo eliminá-lo inteiramente. Por isso, o Liberalismo luta para preservar esse espaço privado do indivíduo, seja contra a sua invasão por outros indivíduos, seja contra a sua restrição ou eliminação pelo estado. Assim, a liberdade é, para o Liberalismo, o bem supremo no contexto da relação do indivíduo com seus semelhantes na sociedade e no contexto de sua relação com o estado.

Para o Liberalismo, é imperativo, na nossa vida em sociedade, buscar a maior liberdade possível para cada indivíduo que seja compatível com igual liberdade para todos. O termo “Liberalismo” vem daí: tem a mesma raiz que o termo “liberdade”.

O vínculo primário e essencial do Liberalismo é, portanto, com a liberdade – não com a propriedade privada, como, em geral, entendem e pretendem os marxistas. A defesa do direito do indivíduo à propriedade privada é um corolário do Liberalismo na área econômica, não o conceito principal que define a sua essência. Este lugar pertence à liberdade, um conceito bem mais amplo, que abrange a liberdade do indivíduo não só na área econômica, mas também na área política e social.

Mesmo na área econômica, a defesa do direito à propriedade privada não esgota o que o Liberalismo defende. O chamado Liberalismo Econômico, geralmente denominado Capitalismo, é uma decorrência lógica do princípio básico do Liberalismo, a saber, que em sociedade é desejável buscar a maior liberdade possível para cada um que seja compatível com igual liberdade para todos. Aplicando esse princípio à área econômica, o Liberalismo defende a tese de que o governo deve se abster de toda e qualquer tentativa de atuar diretamente na economia (como estado-empresário), ou mesmo de regular e fiscalizar a economia, ou de nela intervir de qualquer forma (como, por exemplo, para tentar “aperfeiçoar” o mercado).

Na economia o princípio básico do Liberalismo é geralmente resumido na expressão francesa de que o governo, em relação à iniciativa privada, deve “laissez faire”, isto é, deixar fazer, ou, melhor, “sair da frente e deixar a iniciativa privada agir”.

É esse princípio fundamental que sustenta o corolário, agora na área política, de que “melhor é o governo que menos governa” [13], deixando, portanto, aos indivíduos mais liberdade. O melhor estado, assim, é o “estado mínimo”, que deixa aos indivíduos o máximo de liberdade compatível com as exigências da vida em sociedade. Este princípio do estado mínimo é, assim, uma decorrência do princípio da liberdade do indivíduo como bem supremo. Como diz o título de um interessante livro atual, More Liberty Means Less Government [14]: mais liberdade quer dizer menos governo. O oposto também é verdade: mais governo representa menos liberdade.

Ainda na área política, o Liberalismo sustenta a tese de que os direitos fundamentais do indivíduo (que serão enunciados adiante) não podem ser revogados, violados, transigidos ou restringidos nem mesmo, numa sociedade democrática, pela maioria, através de processo parlamentar, mesmo que o processo seja, doutra forma, inteiramente legítimo. Isso porque uma Constituição Liberal deve garantir esses direitos individuais em cláusulas pétreas, “imexíveis”.

Na área social, o Liberalismo, coerentemente, defende a tese de que a ação deve não só ser livre à iniciativa privada de indivíduos ou pessoas jurídicas mas ficar restrita a essa iniciativa. Assim, não cabe ao estado planejar, operar, regular ou fiscalizar atividades relacionadas à prestação de serviços de saúde, de educação, de seguridade, etc. – as chamadas “políticas públicas”. O estado só tem direito de intervir nesses afazeres privados quando se tratar de uma presuntiva violação de direito individual ou quebra de contrato. O estado deve também se abster de regulamentar os contratos que os indivíduos (ou mesmo as personalidades jurídicas) podem estabelecer entre si ou as diversas formas de associação que entre si venham a estabelecer. Até mesmo o casamento é uma questão totalmente privada que, como tal, deve ficar fora do alcance do estado. Por fim, o estado não pode interferir com a liberdade de expressão (incluída aí a de culto) e locomoção dos indivíduos, podendo estes pensar e exprimir o que desejarem e se locomover para onde quiserem – até mesmo para fora dos limites abrangidos pelo estado. Se, no exercício dessa liberdade, forem violados direitos individuais de terceiros ou quebradas cláusulas contratuais estabelecidas, o estado pode intervir para garantir direitos e/ou restabelecer a ordem jurídica quebrada, a pedido dos que se julgarem prejudicados.

4. O Conceito de Liberdade

Sendo a liberdade o conceito mais importante do Liberalismo, é importante ter clareza sobre como esse conceito é entendido pelos liberais.

Ser livre, no Liberalismo, é não ser coagido a agir (a fazer ou a deixar de fazer) – é não ser obrigado a fazer, nem impedido de fazer – por terceiros.

Ser livre, portanto, não deve ser confundido com “ter condições materiais de fazer”, “ter recursos para fazer”, “ter poder de fazer”, “ter capacidade de fazer”, alguma coisa.

Esse conceito de liberdade é freqüentemente descrito como um conceito negativo ou formal de liberdade. Negativo, porque a liberdade é definida em termos negativos, como não-coação, sendo livre a pessoa que não é obrigada a fazer, nem impedida de fazer, alguma coisa. Formal, porque uma pessoa livre para fazer algo (porque não coagida ou obrigada a deixar de fazê-lo) pode não conseguir fazê-lo, por lhe faltarem condições materiais, recursos, poder ou capacidade para tanto.

Digamos que eu seja livre para comprar uma Ferrari – livre, porque ninguém está me coagindo ou me obrigando a não fazê-lo (esta a condição negativa, formal). Se, entretanto, eu não tenho dinheiro para comprar a Ferrari, eu sou formalmente livre para fazê-lo, mas, materialmente, não tenho condições de realmente (i.e., positivamente) efetivar aquilo que eu sou livre para fazer.

Alguns autores acham que a liberdade deveria ser concebida apenas no que eles chamam de seu sentido pleno, isto é, positivo e material. Assim, se eu não tenho dinheiro para comprar uma Ferrari, afirmam, não se deveria dizer que sou livre para comprá-la.

Mas essa posição é extremamente problemática. Vou procurar mostrar porquê.

Imaginemos um adolescente (de, digamos, dezesseis anos) que tenha quinhentos reais de dinheiro realmente seu, ganhos em algum trabalho qualquer, e que deseje comprar, com esse dinheiro, uma bicicleta que custa duzentos reais. Imaginemos, porém, que os seus pais, por alguma razão, o proíbam de fazê-lo (podem, por exemplo, ter muito receio de que ele sofra algum acidente com sua bicicleta – digamos que um irmão desse adolescente tenha, no passado, morrido num acidente de bicicleta). Neste caso, o adolescente, sendo menor de idade, e necessitando da autorização de seus pais para fazer a compra, não é livre, no sentido formal, que os liberais adotam, para comprar a bicicleta (embora tenha o dinheiro para fazê-lo). Não é livre porque é coagido, por quem tem autoridade sobre ele, a não comprar a bicicleta.

Imaginemos um outro adolescente, da mesma idade, que deseje comprar a mesma bicicleta, cujos pais apóiam o seu desejo (ele vai usar a bicicleta para ir à escola ou para fazer algum trabalho que a família considera importante), mas que não tem os duzentos reais para comprá-la. Se ele não tem os duzentos reais, os oponentes da visão que o Liberalismo tem da liberdade dirão que ele não é livre para comprar a bicicleta. Mas ele é! A compra da bicicleta pode ser tão importante para ele que ele decide arrumar algum emprego (ou algum “bico”) para ganhar o dinheiro para comprá-la. Como não há nada que proíba alguém de dezesseis anos de arrumar um emprego, ele está livre para procurá-lo. Tendo decidido fazê-lo, sai, arruma o emprego, ganha o dinheiro, e compra a bicicleta. Se não fosse livre para comprar a bicicleta, mesmo não tendo, num primeiro momento, o dinheiro necessário, ele não teria podido comprá-la. Mas comprou – o que comprova a sua liberdade.

Para o liberal é preciso não confundir liberdade com a posse de condições materiais, recursos, poder ou capacidade para o exercício efetivo da liberdade. A liberdade é algo que deve ser garantido a todos pelo sistema político adotado (basicamente pela Constituição). A posse das condições materiais, dos recursos, do poder ou da capacidade para o exercício efetivo da liberdade cabe a cada um obter.

Se, trinta anos atrás (escrevo em 2002), alguém dissesse para uma mulher paraibana pobre que ela era livre para ser Prefeita da maior cidade do Brasil, porque ninguém a proibia de procurar ser, os oponentes do Liberalismo iriam dizer que ela realmente não era livre, porque lhe faltariam as condições materiais para chegar lá. No entanto, chegou – eleita pelos oponentes do Liberalismo, que em geral negam que a liberdade formal seja liberdade real.

Se, trinta anos atrás (continuo a escrever em 2002), alguém dissesse para um migrante nordestino na Grande São Paulo, que ele poderia se tornar Presidente do Brasil, porque ninguém o proibia de procurar ser, os oponentes do Liberalismo iriam dizer que ele realmente não era livre, porque lhe faltariam as condições materiais para chegar lá. No entanto, chegou lá – eleito pelos oponentes do Liberalismo, que em geral negam que a liberdade formal seja liberdade real.

Também é preciso não confundir liberdade com o desejo de fazer aquilo que se é livre para fazer. Alguém pode ser livre para trair seu cônjuge (porque ninguém o coage a não fazê-lo, isto é, a manter-se fiel) e, ainda assim, não desejar fazê-lo e, por isso, nunca tomar a decisão de fazê-lo. Ninguém precisa de fato trair o cônjuge para mostrar que é livre para fazê-lo.

5. Liberdade e Direitos Individuais [15]

O Liberalismo exprime sua defesa da liberdade dos indivíduos através de uma defesa de seus direitos individuais. Os direitos individuais que o Liberalismo reconhece, e que garantem a liberdade do indivíduo, são os seguintes [16]:

  • Direito à integridade da pessoa (ou direito à vida e à segurança da pessoa), isto é, o direito que tem o indivíduo de não ter sua vida e sua segurança removidas, ameaçadas ou colocadas em risco por terceiros);
  • Direito à expressão do pensamento, do modo de ser, do estilo de vida, isto é, o direito que tem o indivíduo de não ser impedido por terceiros de dizer o que pensa, de viver como acha mais interessante ou satisfatório, e de fazer o que queira, e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a dizer o que não pense, a viver como não deseje, e a fazer o que não queira;
  • Direito à locomoção, isto é, o direito que tem o indivíduo de não ser impedido por terceiros de ir e vir, dentro ou fora do território em que viva, para onde ou de onde quer que seja, e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a ficar onde não deseja ficar ou a se locomover para onde não deseja ir e, por fim, de não ser levado, contra sua vontade, para onde não deseja ir;
  • Direito à associação, isto é, o direito que tem o indivíduo de não ser impedido de formar associações com qualquer pessoa que se disponha a participar da associação e de excluir da associação quem nela não for, por qualquer razão, desejado, e de não ser obrigado a participar de qualquer associação ou a aceitar, em associações sob seu controle, quem quer que seja;
  • Direito à ação em busca da felicidade, isto é, o direito que tem o indivíduo de não ser impedido por terceiros de procurar ser feliz da forma que bem entenda, fazendo, para tanto, o que deseja fazer ou o que lhe interessa, satisfaz e faz feliz e, naturalmente, de não ser obrigado por terceiros a procurar ser feliz de uma maneira particular;
  • Direito à propriedade, isto é, o direito que tem o indivíduo de não ser impedido por terceiros de produzir qualquer bem ou de adquirir, por troca ou compra, qualquer bem que esteja disponível, para cuja produção ou aquisição tenha recursos, de não ser obrigado por terceiros a produzir ou adquirir qualquer bem, nem a trocar ou vender os bens que já possui, ou a deles se separar contra a sua vontade (incluindo por desapropriação, furto ou roubo), e de não ser privado de seus rendimentos, através de impostos, exceto para finalidades que considere justas e através de processos para os quais dê seu consentimento.

Em relação a esses direitos, é preciso observar, em primeiro lugar, que os direitos de um indivíduo só são limitados pelos direitos de outrem (vide a próxima seção para uma discussão mais detalhada).

Assim, meu direito de buscar a minha felicidade como bem entenda é limitado, por exemplo, não só pelo direito de outros de também buscar a deles, como, também, pelo direito de outros de não serem obrigados a fazer o que não queiram ou a se associarem a mim em minha busca, bem como pelo seu direito de preservar a sua integridade pessoal. Assim, meu direito de buscar a minha felicidade como entenda não me dá o direito de tentar obrigar alguém a, digamos, se casar comigo, porque só serei feliz em sua companhia. O direito que eu tenho é o de buscar a minha felicidade como bem entenda, respeitados iguais direitos dos outros. Nada deve me impedir de buscar a participação de outras pessoas em meu projeto de vida, mas, também, nada deve impedi-las de se recusar a participar, se assim houverem por bem.

É preciso observar ainda, em segundo lugar, que, como a liberdade que ajudam a definir, todos esses direitos são concebidos de forma negativa, como provam as expressões “não ser impedido de”, “não ser obrigado a”, etc., que aparecem em todos eles (tendo sido sublinhadas para destaque).

Os direitos individuais que definem a liberdade do indivíduo são, portanto, direitos negativos, porque, embora direitos de cada indivíduo, o único dever que seu exercício impõe a outros indivíduos é o dever negativo da não interferir. Se os outros indivíduos simplesmente não fizerem nada, estarão me garantindo o exercício de meus direitos. Uma pessoa respeita plenamente os direitos individuais de uma outra pessoa, portanto, quando não faz nada: quando não coloca a vida e a segurança desta pessoa em risco, não a obriga a agir, ou não a impede de agir.

Assim, se, por exemplo, o indivíduo tem direito à vida (parte do direito à integridade da pessoa), isso implica apenas que nenhum outro indivíduo, ou nenhuma organização, tem direito de lhe tirar a vida, ou mesmo de ameaçá-la ou de colocá-la em risco – só ele mesmo pode tirar sua vida ou colocá-la em risco. Esse direito, sendo negativo, não implica (exceto no caso de crianças ou dos que nascem ou se tornam incapacitados) que alguém (indivíduo, organização, ou o próprio estado) tenha o dever de lhe dar os meios de se manter vivo (terra, emprego, alimentação, atenção médica, educação, informações, conhecimentos, treinamento, etc.). Esses meios de subsistência é o próprio indivíduo que tem de prover para si próprio através de seu trabalho. (No caso de crianças, é responsabilidade dos pais, ou dos parentes, não do estado, prover esses meios de subsistência até que as crianças possam provê-los por si próprias; no caso dos que nascem incapacitados, é responsabilidade dos pais ter seguros que cubram essas eventualidades; no caso dos que se incapacitam, depois de adultos, por acidentes ou doenças, é responsabilidade deles mesmos ter seguros que cubram essas eventualidades).

Ainda outro exemplo. O direito à expressão só implica que ninguém pode impedir o indivíduo de pensar o que quer que seja (algo de resto impossível), de dizer o que pensa, de viver como deseja, de expressar sua individualidade como acha mais adequado. Esse direito, sendo negativo, não implica que alguém tenha o dever de lhe fornecer os meios de se exprimir (um fórum, um palanque, um microfone, uma coluna no jornal, etc.), ou de viver como deseja (roupas, moradia, meios de transporte, etc.). Esses meios é o próprio indivíduo que tem de conquistar por si mesmo.

Mais um exemplo (para deixar a questão tão clara quanto possível, embora ela já tenha sido discutida atrás). O direito à ação em busca da felicidade implica apenas que o indivíduo não deve ser impedido de buscar a felicidade na forma que ele julgar mais adequada. Esse direito não implica que alguém tenha o dever de fazê-lo feliz ou de garantir que ele esteja feliz. (Se o direito anterior é de mera expressão, algo que pode ser feito através da forma em que o indivíduo se veste, se penteia, se adorna, etc., aqui o direito é de ação efetiva, que envolve fazer o que queira [educar-se, treinar-se, etc.], trabalhar no que queira, sozinho ou com outros, criar empresas e outras instituições, etc.).

Por fim, mais um exemplo, o final. O direito à propriedade implica tão apenas o que foi descrito atrás. Não implica que alguém tenha o dever de prover ao indivíduo os bens de que necessita ou que deseja: essa é uma responsabilidade exclusivamente sua. Também é responsabilidade exclusivamente sua obter os recursos de que necessita para viver.

Sem o direito à propriedade, os outros direitos ficam esvaziados. Se eu não tenho o direito de propriedade sobre o fruto de meu trabalho, fica comprometido o direito à minha integridade pessoal, à minha expressão, à minha locomoção, à minha associação com outros, e à minha ação em busca da felicidade.

6. Restrições Legítimas aos Direitos Individuais

Como já assinalado, o Liberalismo é zeloso defensor da liberdade dos indivíduos e dos direitos individuais explicitados na seção anterior.

Essa liberdade é sempre concebida, porém, de forma negativa: o indivíduo é tão mais livre quanto menos ele é impedido, por terceiros, de realizar seus objetivos e desejos e quanto menos ele for obrigado, por terceiros, a agir de uma ou outra forma.

A única restrição legítima à liberdade e aos direitos do indivíduo que o Liberalismo admite é, como visto, aquela decorrente do princípio de que todos devem ser igualmente livres. A liberdade de um indivíduo só pode ser restringida, portanto, quando sua não restrição implique restrição indevida da liberdade de outrem. Em suma, a liberdade de um termina onde começa a do outro.

Como definir isso?

Em tese, usa-se um princípio (“regra de bolso”) bastante próximo da lei áurea negativa: não fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam. Minha liberdade estará indevidamente interferindo com a liberdade de outrem, e, portanto, poderá ser restringida, se, estando em posição trocada, eu concluir que estará havendo interferência indevida com a minha liberdade. Mas transformar isso em regra objetiva pode ser complicado.

Digamos que eu resolva tocar pistão, sem surdina, à meia-noite, em um prédio de apartamentos, sem o necessário isolamento acústico. Seria essa ação uma interferência indevida com a liberdade dos meus vizinhos? Sim, se eu concluir que, fosse o tocador de pistão o meu vizinho, sua liberdade deveria ser restringida para não perturbar a minha liberdade de dormir (ou fazer qualquer outra coisa) sossegado.

Na prática, esses comportamentos acabam, em geral, sendo regulamentados de forma que todos consideram justa.

Mas pode haver situações em que a regulamentação não seja tão fácil.

Digamos que eu resolva tocar pistão, sem surdina, às dez da manhã, no mesmo prédio e nas mesmas condições. Só que tenho um vizinho que trabalha à noite e dorme de dia… O que fazer?

Ou, então, este caso, mais fácil. Freqüentemente encontramos pessoas que desejam, por exemplo, que as emissoras de televisão sejam censuradas pelo governo, para que não exibam programas que ferem sua sensibilidade, seu senso moral, seus valores (étnicos, nacionais, ou quaisquer outros). No entanto, como em geral há pessoas interessadas em assistir a esses programas, por mais escabrosos que sejam, a censura envolveria uma restrição da liberdade dessas pessoas de assistir ao que desejam assistir. Como o fato de um programa ser transmitido por uma emissora de televisão não obriga ninguém a sintonizar seu televisor naquele canal, e, portanto, não obriga ninguém a assistir ao que não quer, o liberal em regra se opõe a toda e qualquer censura à televisão (ou ao rádio ou à imprensa ou à Internet ou a qualquer meio de expressão ou de comunicação).

Os defensores da censura em geral apelam para o fato de que a transmissão desses programas objetáveis, em especial em horários nobres, torna possível que crianças assistam a eles, fato que pode causar nelas efeitos indesejáveis. O liberal responde dizendo que cabe aos pais definir aquilo a que seus filhos menores podem assistir na televisão e tomar as providências para que não assistam ao que não estão autorizados a assistir.

Outro exemplo, também de resolução teoricamente fácil – embora a solução adotada neste caso não tenha sido a que o Liberalismo recomenda. Recentemente (ano 2001), aqui no Brasil, a revista Playboy foi proibida, pela Justiça, de colocar na sua capa a foto de uma mulher virtualmente nua mas caracterizada como enfermeira (por estar usando um gorro branco com uma cruz vermelha). A Justiça, no caso, atendeu a um pedido do Conselho Nacional de Enfermagem (ou algo do gênero), que procurou argumentar que a foto denegria a imagem de enfermeiras. O liberal se opõe a essa decisão. São indivíduos que têm direitos, não categorias ou grupos. A única pessoa que poderia legitimamente objetar à publicação da foto seria a fotografada, e esta, longe de objetar, havia formalmente autorizado (por contrato) a sua publicação – na verdade, a única razão pela qual a foto foi tirada foi para ser publicada. Se alguma enfermeira, a posteriori, conseguisse argumentar que algum direito individual seu foi violado pela publicação da foto, poderia acionar a revista em juízo – mas é difícil imaginar como a publicação da foto poderia violar direitos individuais de outras pessoas que não a fotografada.

É possível chegar, no plano legislativo e jurídico, a soluções de compromisso em relação a essas questões: só transmitir os programas objetáveis após determinada hora, não vender revistas destinadas a adultos para crianças, etc. Mas o liberal prefere sempre que não se criem leis e regulamentações que façam aquilo que as pessoas deveriam estar fazendo por sua própria iniciativa: monitorando aquilo a que seus filhos menores assistem na televisão ou lêem nas revistas e jornais.

Quanto à televisão, é bem possível que a tecnologia, em breve, venha em ajuda daqueles que querem restringir aquilo a que seus filhos menores assistem na televisão, sem prejuízo dos outros, permitindo que a recepção de determinados canais, ou mesmo de determinados programas, em um dado aparelho televisor, seja controlada por senha.

7. Os Chamados Direitos Sociais [17]

O Liberalismo sempre foi um defensor ferrenho dos direitos individuais descritos na Seção 5. Estes, porém, não devem ser confundidos com os chamados “direitos sociais” propugnados pela Constituição Brasileira (que, nisso, imitou a Declaração de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, indo, porém, muito além do modelo).

Os chamados direitos sociais foram inventados há pouco tempo (é bom que se diga) por pensadores de esquerda, às vezes (mas nem sempre) bem intencionados, que procuraram argumentar que essa seria uma nova e moderna modalidade de direitos. São exemplos deles: o direito à educação escolar, o direito ao tratamento de saúde, o direito à seguridade, o direito à aposentadoria, o direito ao emprego, o direito a uma remuneração mínima e digna (mesmo na ausência de emprego), o direito à moradia, o direito ao transporte, e não sei quantos mais direitos (o número aumenta a cada dia e com assustadora rapidez). Afirmam eles que os direitos individuais (a que correspondem as liberdades negativas ou formais) defendidos pelos liberais de pouco valem sem esses novos direitos. Na verdade, alguns chegam a chamar os direitos de expressão, locomoção, associação, ação e propriedade de “direitos burgueses” – considerando essa expressão uma expressão altamente pejorativa.

Para o Liberalismo os chamados direitos sociais não são direitos, porque, não sendo formais ou negativos, impõem a terceiros deveres positivos que estes não assumiram livremente e que, portanto, violam o seu direito de agir e de dispor como preferirem de seus bens (no caso, de seus recursos financeiros), porque serão obrigados a arcar (com seus impostos) com o custo do atendimento a esses supostos direitos.

Argumentemos.

Se os chamados direitos sociais forem de fato direitos (como alegam os pensadores de esquerda), eles devem impor um dever correspondente sobre todos os seres humanos, em conjunto, e sobre cada um deles, individualmente. Assim, se alguém realmente tem direito a educação escolar e a tratamento médico, e não os está recebendo, alguém tem o dever de provê-los; se alguém tem direito a emprego e está desempregado, alguém tem o dever de lhe dar um emprego ou de lhe pagar uma remuneração digna à guisa de seguro desemprego (mesmo que ele nunca tenha feito tal seguro) ou à guisa de renda mínima que todo ser humano deve ter, mesmo que desempregado. Assim vai o argumento.

Mas quem é esse alguém que teria tais deveres? Você? Se alguém estiver com câncer ou com AIDS e bater à sua porta exigindo que você cumpra o seu dever de lhe dar tratamento médico, você reconhecerá esse seu dever e fará isso? Se alguém estiver desempregado e bater à sua porta exigindo que você cumpra o seu dever de lhe dar um emprego ou uma remuneração digna enquanto estiver desempregado, você reconhecerá esse seu dever e fará isso?

Dificilmente.

As pessoas, em geral, não reconhecem, em suas vidas privadas, que esses deveres existam e que recaiam sobre elas, individualmente. Entretanto, muitos alegam que esses deveres recaem sobre o estado (isto é, sobre o governo). É por isso que a gente vê, constantemente, os seguintes slogans: “Saúde/Educação/Transporte/etc.: direito do cidadão, dever do estado”. Dessa forma, atribuem-se ao estado funções além daquelas que o Liberalismo reconhece como legítimas, das quais o estado só se desincumbe (geralmente mal) confiscando recursos dos cidadãos, através de impostos e taxas, obrigando-os, assim, a custear atividades que podem não desejar custear e, portanto, violando a sua liberdade e o seu direito à propriedade dos seus recursos financeiros.

O governo não tem um centavo que não seja confiscado de você ou de mim – e confiscado quer dizer tomado pela força, pois, se não pagarmos nossos impostos, seremos presos. Assim, se é o governo que tem o dever de dar cobertura a todos os chamados direitos sociais, em última instância somos você e eu que estaremos fazendo isso, através de nossos impostos.

Você concorda com isso? Você acha que tem o dever de, além de pagar pela educação dos seus próprios filhos, pagar, através de impostos, pela educação dos filhos dos outros? Você acha que tem o dever de, além de pagar pelo seu próprio plano de saúde, pagar, através de impostos, pelo atendimento à saúde dos outros?

Pode ser que haja quem esteja disposto a fazer isso – mas pode ser, também, que nem você nem eu queiramos fazer isso, ou queiramos ser obrigados, mediante o uso da força, a fazer isso. Pode ser que você e eu concordemos que há muitas pessoas que, se receberem uma remuneração sem trabalhar, não vão procurar emprego muito seriamente. Pode ser que você e eu discordemos de um estatista (não confundir com estadista) como Cristóvam Buarque que acha que toda mulher com filhos, trabalhadora ou desempregada, deve ser remunerada, mesmo sem estar empregada, para que crie os filhos, até que eles passem de cinco anos, achando que, se mais esse suposto direito social vier a ser reconhecido, vai haver muita gente que vai fazer de ter filhos uma profissão (como já acontece nos Estados Unidos, em que mães solteiras recebem casa e alimentação gratuita do governo) – e que a conta vai bater no seu e no meu bolso…

Pode ser que Cristóvam Buarque acredite que não é o governo que deve remunerar  essas mulheres, sem que elas trabalhem, mas, sim, os empregadores dessas mulheres, caso elas estejam empregadas. Você acha isto justo?

Você pagaria o salário de sua empregada doméstica durante cinco anos (ou mais) enquanto ela fica na casa dela cuidando dos filhos dela de até cinco anos? Nesse período você vai ter de contratar outra empregada doméstica. Você acha justo pagar por duas e ter o serviço de apenas uma?

Se você for um pequeno empresário, e empregar várias mulheres, você pagaria os seus salários enquanto elas ficam em casa cuidando dos filhos delas de até cinco anos? Você teria recursos para tanto? Você acha justo ter de fazer isso?

Além disso, se o empregador tiver de arcar com essa obrigação, vai repassar o seu custo para você e para mim, seus clientes.

Para Cristóvam Buarque, porém, até mesmo mulheres desempregadas que tenham filhos pequenos (de até cinco anos) devem receber a remuneração. É óbvio que essa remuneração vai cair diretamente em cima de você e de mim.

Para o Liberalismo, os chamados direitos sociais não são direitos, porque eles impõem a terceiros (a você e a mim) deveres positivos, ou seja, o dever de agir de diferentes formas (e não apenas de não interferir), dever esse que viola a liberdade de ação e o direito à propriedade de seu próprio dinheiro dessas pessoas.

Não pode existir um direito que, para ser implementado, envolva a violação dos direitos individuais de outra pessoa – e, portanto, de suas liberdades básicas. É interessante observar que os defensores dos direitos sociais não se dêem conta dessa incongruência. O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), assinado em San Salvador, em 17 de novembro de 1988, pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), afirma, taxativamente, em seu Preâmbulo, que “as diferentes categorias de direito [incluindo os individuais, que ali são chamados de civis] constituem um todo indissolúvel . . . sem que jamais possa justificar-se a violação de uns a pretexto da realização de outros” [18].

Assim, se, como argumenta Ingo Wolfgang Sarlet (um defensor dos direitos sociais), os direitos fundamentais (que incluem os direitos sociais) devem ser vistos sob a ótica da unidade e da indivisibilidade [19], e, se, como argumenta Juarez Freitas, seu prefaciador, “os princípios fundamentais constituem-se mutuamente e jamais devem se eliminar” [20], então os chamados direitos sociais não podem ser reconhecidos como direitos – a menos que se negue a fundamentalidade dos direitos individuais.

Os únicos, portanto, que teriam direito de argumentar que os direitos sociais são direitos são os que estão dispostos a negar que os direitos individuais são direitos [21]. Poucos estariam dispostos a ir tão longe. Os defensores dos chamados direitos sociais preferem usar de estratagemas, como dizer que os direitos sociais protegem a liberdade real. Mas como podem proteger a liberdade real se violam a liberdade formal?

O Liberalismo não reconhece, portanto, esses direitos sociais.

Resumindo:

  • O chamado direito social à educação escolar não é um direito de a própria pessoa agir para buscar a educação que deseja, mas implica um suposto dever de alguém (diretamente ou através do governo) prover, através de escolas, educação ao titular do presumido direito;
  • O chamado direito social ao tratamento da saúde não é um direito de a própria pessoa agir para buscar a atenção à saúde que deseja, mas implica um suposto dever de alguém (diretamente ou através do governo) prover, através de centros de saúde, hospitais, laboratórios, etc. atendimento à saúde do titular do presumido direito.

E assim por diante.

Se for discutir todos os presumidos direitos sociais que têm sido inventados, cem páginas não bastariam para a discussão [22]. Daqui a pouco vão inventar um direito social à satisfação sexual de todos e, por conseguinte, criar um suposto dever de alguém (possivelmente o governo) criar bordéis públicos gratuitos para homens e mulheres que não encontrem formas de satisfazer suas necessidades e seus desejos sexuais mediante iniciativas privadas. Talvez, tamanho o absurdo, se crie um Ministério da Sexualidade – tenho até uma boa indicação para quem deva ocupá-lo. (Os únicos que sairiam ganhando, fosse minha indicação aceita, seriam os habitantes da capital de São Paulo – escrevo em 2002).

Os defensores dos chamados direitos sociais introduzem uma cunha entre a moralidade pessoal e a moralidade pública. Eles pretendem que seja justo que nós façamos, na esfera pública, através de nossos impostos, aquilo não achamos justo fazer na esfera pessoal [23].

Em nossa vida pessoal você e eu achamos que a sociedade não tem o dever de nos dar o que queremos ou aquilo de que julgamos necessitar. Sejam quais forem nossas circunstâncias individuais, você e eu concordamos que cada um de nós é responsável por obter os recursos necessários para adquirir aquilo que queremos ou de que julgamos necessitar. Somos responsáveis por ir atrás dos recursos que nos permitem viver hoje e nos permitirão viver amanhã. Somos responsáveis não só por fazer o que nos compete nos empregos e nas ocupações que nos remuneram, mas por arrumar e manter esses empregos e essas ocupações e por adquirir as competências e habilidades necessárias para exercê-los. Somos responsáveis por administrar bem os recursos que temos para que eles não venham a nos faltar. Isso inclui poupar parte desses recursos para emergências, fazer seguros, adquirir planos de aposentadoria, etc. Somos responsáveis não só por enviar nossos filhos para uma escola, mas por acompanhar o seu desenvolvimento, para ver se estão adquirindo as competências e as habilidades necessárias para viver as vidas que irão querer viver. Antes disso, somos responsáveis pela decisão de ter ou não filhos, porque a decisão de ter filhos nos obriga a investir tempo e dinheiro em sua educação. Em nossa vida pessoal não achamos que outras pessoas tenham o dever de nos dar aquilo que desejamos ou de que julgamos necessitar, de trabalhar para nós, de nos remunerar quando não pudermos trabalhar, ou de arcar com a criação e a educação dos filhos que resolvermos ter.

Mas aqui vem a esquizofrenia. Em nossa vida pública, muitos aceitam, pacificamente, a tese defendida pelas esquerdas de que nós temos, através de nossos impostos, de dar educação, saúde, pensão, terra, moradia, etc., para os outros. Pagamos pela educação de nossos filhos numa escola privada – e pagamos pela educação dos filhos dos outros em escolas públicas ineficazes e ineficientes; pagamos pelo nosso plano de saúde privado – e pagamos pela saúde dos outros em um sistema corrupto e incompetente de saúde. Pagamos pelo nosso plano de aposentadoria privado – e pagamos por um sistema de seguridade social corrupto e incompetente que não garante a nossa aposentadoria. Pagamos pelo terreno em que vamos construir a nossa casa e pela casa que construímos nele – e pagamos pelos terrenos e pelas casas dados a quem invade propriedade alheia.  E assim vai.

Os defensores do Liberalismo estão perfeitamente conscientes de que muitas vezes somos vítimas das circunstâncias e vamos a depender dos outros para nos colocar de pé novamente. Mas eles reconhecem que, em casos assim, estamos à mercê da generosidade alheia. Não se trata, nesses casos, de direito. Trata-se de generosidade – e não há como mascara-la pretendendo a existência de direitos no caso.

Os defensores dos chamados direitos sociais acham, no entanto, que algumas pessoas têm o direito de receber serviços e bens (educação, saúde, etc.) sem pagar por eles e que outras pessoas (você e eu) têm o dever de custear esses serviços e bens, através de seus impostos, queiram ou não, achem ou não que é seu dever moral fazê-lo, tenham ou não destino melhor a dar aos recursos que adquirem com o seu trabalho (que, afinal de contas, são delas, não do governo, por mais que o governo pense que pode lançar mão desses recursos ao seu bel-prazer).

Os defensores dos chamados direitos sociais insistem que mesmo que os recursos envolvidos nessa maciça transferência forçada e involuntária de recursos (por eles chamada de redistribuição de renda) fosse aplicada em filantropia por seus legítimos possuidores, o efeito não seria o mesmo, por se trataria, nesse caso, de assistencialismo, não de atendimento de um direito. O assistencialismo, segundo eles, reduz a auto-estima dos recipientes – enquanto fazer valer um direito supostamente a aumentaria. Ou seja, para não reduzir a auto-estima de quem não consegue se sustentar a si próprio, os defensores dos chamados direitos sociais não hesitam em violar os verdadeiros direitos de cidadãos produtivos e responsáveis [24].

Note-se que os defensores dos chamados direitos sociais não chegam a ter a desvergonha de dizer que tirar dinheiro de alguns, contra a sua vontade, para dar a outros, seja justo, sem maiores qualificativos. Inventaram, para se justificar, uma outra noção, tão espúria quanto a noção de direito social: a de justiça social. Justiça social, em outras palavras, nada mais é do que a velha injustiça. George Orwell ficaria encantado com a novilíngua das esquerdas.

Mas por que estariam as esquerdas dispostas a violar os direitos de outras pessoas e a manipular conceitos de forma tão evidente? Por convicção moral?

Disse atrás que esses chamados direitos sociais vieram sendo inventados, nos dois últimos séculos, por pensadores de esquerda, às vezes bem intencionados. Friso: às vezes, dando a alguns deles o benefício da dúvida. Na maior parte, porém, as esquerdas não têm nenhuma boa intenção. O que interessa às esquerdas não é o bem-estar alheio – mas a sua chegada ao poder. As esquerdas lutam o tempo todo para criar e aumentar impostos e para expandir o tamanho do estado porque elas se vêem na função de administradoras – distribuidoras – dos recursos gerados com os impostos. Depois de constatar que o Socialismo é totalmente incapaz na área da produção, as esquerdas descobriram que é muito melhor deixar o Capitalismo produzir os recursos – e elas os distribuírem!

É por isso que os socialistas estão deixando de ser vermelhos para ficar cor-de-rosa e os social-democratas estão procurando passar por liberais: porque a luta agora não é pela socialização (ou nacionalização) dos meios de produção, mas, sim, pela redistribuição da renda gerada por meios de produção razoavelmente (ainda que não inteiramente) livres.

Na sociedade idealizada pelas esquerdas, os que fracassam são recompensados – e os que são bem sucedidos são punidos com impostos cada vez mais elevados. E as esquerdas são aqueles que tiram de uns para dar para outros (sempre ficando com o seu quinhão no processo – afinal, ninguém é de ferro e todo mundo é filho de Deus, não é mesmo? Que o diga o Lulinha). Mas mais importante do que sua própria “remuneração” ao longo do processo redistributivo, é o poder que as esquerdas alcançam de restringir as nossas liberdades (para elas puramente burguesas) e de meter a mão em nossos bolsos [25].

8. O Liberalismo e o Atendimento aos Carentes e Necessitados

Os inimigos do Liberalismo geralmente procuram pintá-lo de cores negras, afirmando que os liberais são desalmados, que deixariam os pobres morrer de fome, de frio, ao desabrigo, sem atendimento médico, e que deixariam os mais necessitados sem casa, sem escolas, etc.

Nada mais falso.

Liberais convictos têm estado entre os maiores filantropos que este mundo já conheceu. Os liberais se preocupam, e muito, com a sorte dos pobres e dos necessitados. Os orfanatos, os asilos de velhos, as Santas Casas, as Casas de Saúde, etc., que até há bem pouco tempo eram as únicas formas de atender aos carentes e necessitados, não foram instituídos pelo estado e só recentemente passaram a contar com alguma subvenção governamental (contra a vontade daqueles que acham que apenas o governo deveria atender aos cidadãos). O Exército da Salvação, por exemplo, é uma iniciativa muito conhecida para merecer destaque.

Se iniciativas como essas têm ultimamente diminuído, a causa mais óbvia deve ser vista na reivindicação da esquerda de que é o estado que deve cuidar de tudo e na criação desenfreada de impostos e encargos para fazer face a essas novas funções do estado (que, ao tentar exercê-las, geralmente mal, acaba por negligenciar as suas funções reais, que têm que ver com a segurança física dos cidadãos).

Fica, portanto, claro que os liberais não se opõem ao atendimento dos carentes e necessitados. Muito pelo contrário. Opõem-se, isto sim, a que o estado faça isto, confiscando, pela força, o nosso dinheiro para fazê-lo. E a razão é simples: quando o estado atende aos carentes e necessitados, ele é obrigado a retirar dinheiro, mediante impostos e contribuições, dos indivíduos (e das empresas) para cumprir (e mal) suas funções. Assim obriga todos, mesmo os que não desejam contribuir (ou não desejam contribuir com as quantidades impostas), a ajudar os outros. O Liberalismo, zeloso defensor da liberdade, acredita que devemos ajudar os que precisam – mas voluntariamente. E que temos o direito de escolher aqueles a quem damos o nosso dinheiro.

Um exemplo que, entretanto, não envolve impostos, mas envolve a liberdade de ação, ilustra bem a diferença. Chamou a atenção de muita gente o fato de que o governo brasileiro, algum tempo atrás, fez passar uma lei que tornava todo indivíduo um doador de órgãos obrigatório, na hipótese de ser declarado legalmente morto. Os liberais, sem exceção, e mesmo muitos não liberais, se opuseram a essa lei. Isso não quer dizer que os opositores da lei fossem contra a doação de órgãos: muitos eram favoráveis, mas à doação voluntária. Opunham-se, corretamente, à obrigação de doar (caso não houvesse declaração em contrário). O certo teria sido a medida oposta, já em vigência por omissão: ninguém é doador – a menos que tenha expressamente declarado essa intenção.

A ajuda feita aos carentes e necessitados pela iniciativa privada geralmente é preferida, pela população, à suposta ajuda do governo. Ninguém que possa estudar nas escolas, por exemplo, da Fundação Bradesco prefere estudar na escola pública – embora em ambos os casos a pessoa nada pague.

O Liberalismo não é, nem de longe, insensível aos problemas sociais e defende todas as iniciativas feitas para resolvê-los que envolvam a participação voluntária das pessoas.

O Liberalismo se opõe a que o governo procure solucionar esses problemas, fundamentalmente porque, quando o governo intervém, ele obriga, pelo uso da força ou pela ameaça do uso da força, as pessoas a contribuir, mesmo contra a sua vontade, violando assim a sua liberdade e o seu direito à sua propriedade (recursos financeiros).

9. A Salvaguarda do Liberalismo: A Constituição Liberal

Para o Liberalismo, se não houver estado, e, por conseguinte, governo, é muito mais provável que sejamos coagidos por aqueles que são mais fortes do que nós. Por isso, o papel do estado é, através do governo, criar as condições para que não sejamos coagidos por terceiros. A única entidade a que se atribui o poder de coagir (uso da força) na sociedade é o estado.

Mas se o estado não tiver um freio, algo que eficaz e eficientemente o limite, sua tendência é acrescentar funções e, conseqüentemente, crescer até o ponto em que não tem mais nenhuma semelhança com o estado mínimo dos liberais. O Liberalismo vê essa garantia do Liberalismo, que freia o crescimento do estado, numa Constituição Liberal.

Assim, para que o governo não coaja mais do que é necessário, precisa ser rigidamente controlado por uma Constituição Liberal e constantemente monitorado pela população. Como disse Thomas Jefferson, o preço da liberdade é a eterna vigilância. Ou, como disse Edmund Burke, a única coisa necessária para que o mal triunfe é nada fazerem os homens de bem.

A Constituição, para ser liberal, deve garantir a todos os cidadãos os direitos individuais mencionados atrás, que devem ser considerados como se fossem naturais, ou (como preferem alguns) concedidos por Deus, sendo inalienáveis e imprescritíveis, não podendo, portanto, ser revogados, suspensos, violados, transigidos ou restringidos nem mesmo pelo governo. A Constituição deve dispor claramente, em cláusula pétrea, inalterável, que o governo não poderá jamais fazer nenhuma lei que revogue, suspenda, viole, transija ou restrinja esses direitos.

A Constituição Liberal é, portanto, a garantia do estado liberal.

A Constituição Brasileira está longe de ser liberal – talvez seja a mais anti-liberal de todas as constituições vigentes hoje em dia. A Constituição Americana é o melhor modelo de constituição liberal que temos – e mesmo ela não conseguiu impedir que o estado americano ficasse tão inflado a ponto de se tornar irreconhecível como estado liberal.

O que torna a Constituição Americana peculiar é que grande parte dela (a chamada “Carta de Direitos” [“Bill of Rights”], que apareceu inicialmente na Constituição do Estado de Virginia, redigida em 1776), é gasta limitando os poderes do estado diante do indivíduo – isto é, especificando um conjunto de áreas em que o estado (no caso, o governo) está terminantemente proibido de interferir pela legislação.

Assim, o Congresso Americano se vê impossibilitado de exercer sua fúria legislativa em inúmeras áreas. Se legislar, a legislação provavelmente será declarada inconstitucional com presteza pelo poder judiciário americano.

Mas não pode o Congresso Americano alterar a Constituição? O processo de alteração constitucional nos Estados Unidos é extremamente complicado. A Constituição Americana levou cerca de dez anos (de 1781 a 1791) para ser formulada, o período mais importante sendo o da Convenção Constitucional de Filadélfia (que durou quatro meses, de Maio a Setembro de 1787). Os quatro anos restantes, de 1787 a 1791, foram gastos tentando obter a ratificação dos treze estados, o que só aconteceu em 1791 (embora a Constituição, em si, tenha entrado em vigor em 1789, quando ainda faltava a ratificação de North Carolina [ratificou em 1790] e Rhode Island [ratificou em 1791]).

Para facilitar a ratificação dos estados, a Constituição aprovada pelo Congresso já veio com dez emendas aprovadas pelo Congresso em Setembro de 1789 – que caracterizam a chamada “Carta de Direitos” (Bill of Rights). Todas elas foram aprovadas por pelo menos três quartos dos estados até Dezembro de 1791.

Uma pequena alteração na Constituição Americana pode levar anos e até décadas para entrar em vigor, porque, para ser considerada, a proposta de emenda constitucional deve vir referendada por dois terços dos estados ou por dois terços dos votos das duas casas do Congresso. Independentemente da forma em que é proposta, a emenda constitucional, caso aceita pelo Congresso, tem de ser referendada pelos legislativos ou por convenções constitucionais de três quartos dos estados americanos para entrar em vigor. Assim, a menos que haja quase absoluto consenso sobre a medida, é extremamente difícil alterar a Constituição Americana. Ela é a “lei acima da lei”, a norma através da qual as outras leis são julgadas, o conjunto de princípios básicos que nem o governo consegue alterar com facilidade. Uma constituição assim faz, hoje, o papel que o direito natural exerceu no passado.

E a Constituição Americana é relativamente simples (especialmente quando comparada com a nossa): tem apenas sete artigos, quando não se incluem as emendas, que, impressos, compreendem cerca de onze páginas. Todas as emendas não compreendem mais do que outro tanto (as dez emendas originais compreendendo apenas duas páginas). Depois de um breve preâmbulo (“We the people…”), o primeiro artigo trata do Congresso, o segundo do Executivo, o terceiro do Judiciário, o quarto dos estados da federação, o quinto do procedimento a ser adotado no caso de emendas, o sexto de disposições gerais e transitórias e o sétimo do processo de ratificação da própria Constituição.

10. Implicações Básicas do Liberalismo

Resumindo, o Liberalismo tem as seguintes características básicas:

  • Quando aplicado à área política, o Liberalismo sustenta a tese de que o melhor estado é o que menos governa, e, portanto, de que um estado menor é melhor do que um estado maior – respeitadas as funções básicas do chamado “Estado Mínimo”;
  • Quando aplicado à área econômica, o Liberalismo sustenta a tese de que a livre iniciativa das pessoas no atendimento de suas necessidades, na busca de seus interesses e na tentativa de satisfazer os seus desejos (que, no coletivo, é o que caracteriza o mercado) é o melhor regulador da atividade econômica, e que o estado deve, portanto, se abster de envolvimento na economia, tanto no que diz respeito à produção como no que diz respeito à distribuição de riquezas, ou mesmo à regulamentação do processo;
  • Quando aplicado à chamada área social, o Liberalismo sustenta a tese de que é a iniciativa privada que deve prover, com exclusividade, serviços e eventualmente bens na área da educação, da saúde, do trabalho, da seguridade social, de infra-estrutura, do meio ambiente, etc. O estado deve se abster não só de prover serviços e bens nessas áreas como de regulamentar (através de legislação e normatização) as atividades que nelas são exercidas pela iniciativa privada;
  • Quando aplicado à área educacional, o Liberalismo sustenta as seguintes teses:
    • Sendo a educação um caso especial da área social, é a iniciativa privada que deve prover, com exclusividade, serviços e eventualmente bens na área da educação, devendo o estado se abster não só de prover serviços e bens nessa área como de regulamentar (através de legislação e normatização) as atividades que nela são exercidas pela iniciativa privada;
    • Sendo o provimento de serviços e bens educacionais pela iniciativa privada uma forma não-diferenciada de participação no mercado, é perfeitamente legítimo que esse provimento seja cobrado daqueles que dele vão se beneficiar, sendo um contra-senso a noção de que a educação deve ser gratuita;
    • Embora a educação seja um bem que, em tese, todos deveriam perseguir, ninguém deve ser obrigado a buscar nem mesmo o seu próprio bem, tese essa que tem como corolário a não-obrigatoriedade da educação;
    • Dada a diversidade que existe entre as necessidades, os interesses e os desejos dos seres humanos, e dado o respeito que o Liberalismo tem pela liberdade individual, é sob todos os aspectos conveniente que as pessoas e instituições que se dedicam a educar respeitem essa diversidade e essa liberdade, sendo, portanto, incompatível com os princípios liberais a existência de um só tipo de escola, um só tipo de currículo, uma só metodologia de aprendizagem, um só ritmo a que todos os aprendentes devem se adequar.

Na área educacional o Liberalismo defende a tese de que o governo deve se abster de toda e qualquer tentativa de atuar diretamente, ministrando educação, ou de regular ou de qualquer forma intervir na educação.

O Liberalismo se opõe ainda a que o governo obrigue os cidadãos a freqüentar a escola, não se opondo a que as famílias eduquem seus filhos em casa ou através de tutores, ou mesmo não os eduquem, se assim hão por bem.

Como medida de temporária e de transição, alguns liberais, como Milton e Rose Friedman, têm proposto que o governo dê “vouchers” (vales) às famílias que permitam que estas escolham a escola em que desejam colocar seus filhos, mesmo que particular. George W. Bush hoje favorece esta medida nos Estados Unidos.

No que diz respeito à educação, pode-se perceber, por esse breve resumo, que o Liberalismo é, em princípio, contrário a teses como a da obrigatoriedade da educação e a do dever do estado de oferecer educação (mesmo que não gratuita). Para o Liberalismo, não é função do estado oferecer nem mesmo regulamentar a educação, que só deve ser regulada pelo mercado. Por aí se vê que o Liberalismo se contrapõe a alguns dos principais movimentos e tendências da educação atual. O Progressivismo e o chamado Movimento da Escola Nova, por exemplo, embora compatíveis com o Liberalismo em vários aspectos, não são liberais na medida em que encampa(ra)m a luta pela escola pública.

11. Liberalismo e Anarquismo

Poder-se-ia imaginar, porém, que o ordenamento social mais compatível com a preservação da maior liberdade possível do indivíduo fosse aquele em que não existisse estado – ou seja, o ordenamento social em que as pessoas se auto-governassem sem necessidade de instituições políticas (governos). Os liberais afirmam que o melhor governo é aquele que governa menos; os anarquistas vão além e afirmam que o melhor governo é aquele que não governa. A alternativa anarquista tem sempre tido uma atração especial para os liberais. A única razão pela qual os liberais rejeitam a alternativa anarquista é que o Liberalismo tem uma visão razoavelmente pessimista da natureza humana (em relação à visão da natureza humana pressuposta pelos anarquistas). Os liberais acreditam que, sendo a natureza humana o que é, não é possível preservar a liberdade dos indivíduos sem um estado que defenda o indivíduo contra violações de sua liberdade por outros indivíduos, que sirva de árbitro para julgar desavenças entre indivíduos, e que se ocupe em defender a liberdade dos seus cidadãos contra agressões externas.

Essas funções do estado, relacionadas com a proteção dos indivíduos uns contra os outros (função policial), com a arbitragem de desavenças (função judicial) e com a proteção dos indivíduos contra agressão externa (função militar), tudo isso com base em regras básicas e mínimas de convivência, são, portanto, para os liberais, necessárias e legítimas, indispensáveis para a preservação do máximo de liberdade possível para os indivíduos no ordenamento social. Sem um estado que as desempenhe, os indivíduos ficarão presa fácil dos mais fortes ou mais espertos, tanto dentro como fora da comunidade em que vivem.

Mas não sendo otimista em relação à natureza humana, o liberal também não o é em relação ao estado, que é gerido por seres humanos, e, assim, ao mesmo tempo que reconhece a necessidade do estado, procura limitar drasticamente as suas funções e colocar um freio aos seus poderes (através de uma constituição que basicamente garanta os direitos básicos do indivíduo, que são constitutivos de sua liberdade, e terminantemente proíba o estado de, através de legislação, revogar, suspender, violar, transigir ou restringir esses direitos).

Tendo definido aquelas três como funções necessárias e legítimas do estado, os liberais vão, portanto, além e sustentam que elas são as únicas funções que o estado deve exercer.

É preciso registrar, aqui, que, na relação indivíduo-estado, tanto o Liberalismo como o Anarquismo são implacáveis defensores da liberdade do indivíduo. Para ambos a liberdade do indivíduo é o bem supremo. Ambos estão unidos, portanto, em relação ao objetivo final: a maximização da liberdade do indivíduo. Divergem, entretanto, quanto aos meios de alcançar esse objetivo maior. Os anarquistas acreditam que a não existência do estado é a melhor forma de maximizar a liberdade do indivíduo, visto que consideram possível a vida social regulada apenas pelos próprios indivíduos, voluntariamente, sem necessidade de um poder maior que os coaja ou submeta a coerção. Os liberais, menos otimistas (ou mais realistas) em relação à natureza humana, acreditam que, sem um estado que garanta a liberdade de todos os indivíduos, essa liberdade tende, facilmente, a se reduzir e, eventualmente, a desaparecer. Liberais e anarquistas concordam, portanto, em relação ao fim: divergem apenas em relação aos meios. Na luta contra as outras filosofias políticas tendem a ficar do mesmo lado.

Nada impede, porém, que indivíduos possam livremente se associar para a consecução de objetivos comuns, e que, com esse propósito, resolvam juntar seus esforços e suas propriedades, no que poderia ser chamado, por não estar o estado de modo algum envolvido, de “Socialismo Anarco-Comunitário”. Essa forma de convivência e organização social é perfeitamente compatível com os princípios liberais aqui descritos.

12. O Liberalismo e a Questão da Segurança

Mas se Liberalismo defende que o atendimento a carentes e necessitados deve ser feito pela iniciativa privada, porque não, também, a segurança interna e externa? Por que atribuir ao estado essa função?

Alguns críticos do Liberalismo têm procurado demonstrar que há uma incongruência na posição do liberal. Para ser coerente, afirmam, o Liberalismo não deveria defender a tese de que é função do estado prover segurança aos seus cidadãos: deveria, isto sim, defender a tese de que também a segurança pode e deve ser prestada através de agentes privados.

A aceitação dessa sugestão acabaria reduzindo o Liberalismo ao Anarquismo. Não resta dúvida de que a tese é, de certo modo, atraente para o liberal. Todo liberal suspeita do estado, e, portanto, se conseguisse se convencer de que até mesmo o estado mínimo pode ser dispensado, o faria – e se tornaria um anarquista.

Para o liberal, os anarquistas, de um lado, e, de outro lado, em menor ou maior grau, os social-democratas e socialistas, têm algo em comum: a confiança na bondade natural do ser humano.

Os anarquistas acham que todo ser humano possui essa inclinação natural para o bem, e que, deixados sós, sem estado, os seres humanos conseguirão resolver suas divergências pacificamente, sem recurso à força.

Os social-democratas e os socialistas, por outro lado, não acreditam na bondade natural de todos: acreditam apenas que aqueles no poder são dotados de inclinações altruístas e de maior perspicácia, combinação que os tornam capazes de agir em benefício alheio com recursos de terceiros. Por isso, confiam-lhes seu dinheiro (recolhido por impostos e taxas) para que os burocratas do estado previdenciário ou socialista o distribuam pelos carentes (sem embolsar nada…).

O liberal não acredita na bondade natural do ser humano. Acredita, sim, que, para que os seres humanos vivam em sociedade, é necessário que se submetam a normas consensualmente aceitas (leis) que viabilizem a vida em sociedade e que alguma instituição detenha o monopólio do uso da força para prevenir e punir a violação dessas normas [26]. O liberal acha que esse órgão que tem o monopólio do uso da força não pode ser privado, porque, se o fosse, poderia haver vários deles, concorrendo entre si, e o que teríamos é uma série de milícias particulares que poderiam até mesmo chegar ao confronto. Por isso o liberal acredita que o estado deve existir, mas ser mínimo: deve prover segurança (função judicial, policial e militar) e nada mais. Sem segurança, não há convivência social livre – e é a liberdade que o liberal preza acima de tudo.

Por isso, é errado atribuir ao Liberalismo a tese de que o estado é um mal necessário (como até mesmo um grande liberal como Roberto Campos de vez em quando faz). Para o liberal o estado, desde que corretamente concebido e dimensionado, é um bem necessário.

13. Liberalismo, Social-Democracia e Socialismo

Assim, se o Liberalismo se distingue, de um lado, do Anarquismo, por defender a necessidade do estado, distingue-se, de outro, tanto da Social-Democracia como do Socialismo, por negar, contra a primeira (Social-Democracia), que o estado deva ter funções sociais (na área da educação, saúde, trabalho, seguridade social, infra-estrutura, meio ambiente, etc.) ou funções reguladoras da atividade econômica (definindo normas que restrinjam ou ordenem a liberdade dos agentes econômicos), e, contra o segundo (Socialismo), que o estado deva, ou possa, ter participação direta e ativa na economia (como detentor, total ou mesmo parcial, dos meios de produção). Assim, os liberais sustentam que o estado não deve ter funções sociais nem, muito menos, funções econômicas, na sociedade, restringindo-se suas funções às três apontadas atrás: a função policial, a função judicial e a função militar.

Os grandes inimigos do Liberalismo são as filosofias políticas que procuram aumentar as funções do estado. Dentre estas, as duas principais são a Social-Democracia e o Socialismo (já mencionados).

Na verdade, é plausível argumentar que, do outro lado das trincheiras, o Socialismo representa, em relação à Social-Democracia, a mesma função que o Anarquismo representa em relação ao Liberalismo. Do lado do Anarquismo o estado é reduzido a nada – do lado do Socialismo sua função é inflada de tal forma que o estado passa a ser tudo (nada do que acontece na sociedade está fora da esfera de alcance do estado). Didaticamente, portanto, é mais fácil entender a Social-Democracia depois de compreender o Socialismo.

O Socialismo, como o Liberalismo, é uma filosofia política que se tornou popular principalmente no século XIX, embora tenha importantes antecedentes no século XVIII e mesmo antes. O Socialismo defende a tese de que o estado deve controlar ao máximo a sociedade (“governar o máximo possível”), planejando, de forma centralizada, toda a atividade econômica, chegando até mesmo ao ponto de ser proprietário de todos os meios de produção, e, portanto, ficando na posição não só de planejador, mas, também, de executor da atividade econômica. Nesta formulação radical, a propriedade privada dos meios de produção seria terminantemente proibida num regime socialista: todo trabalhador seria, em princípio, um funcionário público que faria apenas aquilo que o estado determinasse. A remuneração dos trabalhadores seria fixada levando em conta as necessidades do indivíduo, não a sua capacidade, produtividade, ou mesmo o número de horas que dedicasse ao trabalho. O princípio consagrado na Crítica do Programa Gotha (já citado [27]) é: “De cada um segundo as suas habilidades; a cada um segundo as suas necessidades”. Como se supõe que as necessidades dos indivíduos sejam basicamente semelhantes, não haveria maiores diferenciais na escala salarial, não importa que trabalho o indivíduo fizesse nem qual fosse a sua habilidade ou produtividade ao realizá-lo [28].

Colocado, assim, nesta forma crua, o Socialismo dificilmente seria atraente, porque parece plausível imaginar que, quanto mais se aumentem as funções do estado, tanto menor se torna o espaço reservado à liberdade dos indivíduos – e, normalmente, os indivíduos prezam a sua liberdade. A estratégia usada pelo Socialismo para enfrentar essa dificuldade tem sido argumentar que há bens maiores do que a liberdade. Entre esses bens maiores destacam-se as assim chamadas igualdade e justiça social (que, na verdade, em última instância acabam sendo a mesma coisa para os socialistas [29]). Argumentam os socialistas que o Liberalismo, ao enfatizar a liberdade, inclusive na área econômica, deixa a porta aberta para o surgimento de desigualdades econômicas e, conseqüentemente, sociais (algo que, de resto, nenhum verdadeiro liberal jamais negou). Sustentam, ainda, que essas desigualdades são injustas [30] – colocando-se, portando, como defensores da justiça (que freqüentemente qualificam denominam de justiça social, para distingui-la da “velha justiça”, segundo a qual o justo seria dar a cada um o que lhe é devido em função de que fez).

Os liberais, embora admitam que sistemas políticos liberais produzam grandes desigualdades econômicas e sociais, negam que essas desigualdades sejam, por isso, necessariamente injustas – segundo o conceito tradicional de justiça. Assim, dourando a pílula, o Socialismo defende a tese de que o estado, como detentor de todos os meios de produção, não poderia deixar de ser, também, o grande agente na área social, provendo aos cidadãos (gratuitamente) os serviços e bens necessários nas áreas da educação, da saúde, da seguridade social, do transporte, da moradia, da infra-estrutura, etc. Assim todos os indivíduos teriam, basicamente, acesso aos mesmos serviços e bens na área social, havendo, portanto, além de igualdade econômica, igualdade social.

Exceto pelo uso da força bruta, a única forma que o Socialismo encontrou de persuadir os indivíduos a abrirem mão de suas liberdades, assim permitindo a implantação do ideário socialista, foi prometendo-lhes um bem supostamente maior: a igualdade (econômica e social) e, com ela, a justiça (qualificada de social). Historicamente, porém, todas as vezes que se tentou implantar o Socialismo, a liberdade individual não foi apenas reduzida: foi totalmente eliminada (União Soviética a partir de 1917, Leste Europeu depois da Segunda Guerra Mundial, Cuba, a partir de 1960, etc.). A sede de liberdade, entretanto, parece ser maior, nos indivíduos, do que o desejo de igualdade. Os últimos quinze anos parecem ter provado isso (escrevo em 2002).

A Social-Democracia pretende ser uma forma mais branda de Socialismo: um Socialismo parcial e democrático, que, como tal, mantém uma quantidade módica de liberdade. A Social-Democracia abre mão da propriedade de todos os meios de produção pelo estado e mesmo da tese do planejamento centralizado de toda a economia. A Social-Democracia alega que deixa a produção, tanto quanto possível, nas mãos da iniciativa privada, só intervindo no setor produtivo para regulamentá-lo, em especial em seus aspectos distributivos, e para suprir lacunas ou omissões (áreas em que a iniciativa privada não teria interesse). O que realmente interessa à Social-Democracia é a chamada distribuição das riquezas produzidas pela atividade econômica, ainda que privada, algo que ela se propõe fazer através de legislação tributária que rotula de “progressista”. (É interessante notar que os social-democratas geralmente falam em “redistribuição das riquezas”, como se o mercado houvesse feito uma primeira distribuição que agora, em nome da justiça social, é preciso corrigir).

O ideário da Social-Democracia inventou um sem número de conceitos e mecanismos para convencer os indivíduos de que devem, democraticamente (isto é, sem que seja necessário fazer uso da força bruta), concordar em abrir mão de parte de seus bens (dinheiro) em benefício dos “desfavorecidos”, das vítimas das “injustiças sociais”, assim colaborando para a criação de uma sociedade mais igualitária e menos injusta. A democracia social inventou a tese de que ninguém é realmente livre enquanto é pobre e criou um sem número de “direitos sociais”: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à seguridade social, ao transporte, à moradia, etc.

Registre-se, aqui, que a aceitação da Social-Democracia pode até se fazer sem força bruta (tanques, fuzis, “Gulags”, “paredóns”, etc.), mas certamente não se faz sem força – como qualquer cidadão que decidir não pagar impostos destinados a funções estatais que ele considera indefensáveis facilmente descobrirá, como o fez Henry David Thoreau, no século passado, nos Estados Unidos.

14. O Liberalismo Posicionado

Apresento a seguir um esquema de como posiciono o Liberalismo em relação a outras tendências de filosofia política que com ele concorrem: Anarquismo, Social-Democracia, Socialismo e Comunismo.

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Chamo de esquerda as posições ou tendências que estão à esquerda do centro nessa linha, e de direita as que se situam do lado oposto. A Social-Democracia tenta, a meu ver, ficar com um pé na esquerda e outro na direita, sendo centrista. Se acrescentarmos o Neo-Liberalismo à direita da Social-Democracia, colocaremos a Social-Democracia na centro-esquerda e o Neo-Liberalismo na centro-direita.

O critério básico que determina o posicionamento de uma tendência à esquerda, à direita ou ao centro é, a meu ver, o seguinte: Quem tem mais – ou mais importantes – funções na sociedade: o estado (governo) ou a iniciativa privada? O posicionamento das várias tendências de filosofia política mais à esquerda ou mais à direita nesse espectro depende exclusivamente de como cada tendência se posiciona diante dessa questão. Na extrema direita está a tendência que atribui maior importância à iniciativa privada, o Anarquismo. Na extrema esquerda está a tendência que atribui mais importância ao estado (governo), o Comunismo. As outras três tendências estão distribuídas entre essas duas.

15. Implicações do Posicionamento Sugerido

A. Liberalismo e Totalitarismo (Nazismo, Fascismo, Comunismo)

Marxistas vão certamente estranhar e refugar o critério usado no posicionamento, especialmente em função dos “parentescos” que ele produz. Regimes ditatoriais que aumentaram consideravelmente a presença do estado na sociedade, como é o caso da Alemanha nazista e da Itália fascista, certamente ficarão bem à esquerda no espectro proposto. Embora os marxistas se recusem a aceitar essa proximidade, apontando, às vezes, para o fato de que foram os comunistas da União Soviética que acabaram tendo papel decisivo na queda do Terceiro Reich, não resta dúvida de que a Hitler e Stalin assinaram pacto de não-agressão (violado por Hitler e não por Stalin) e controlavam estados em que o governo se intrometia em quase todos os aspectos da vida social.

B. Liberalismo e Autoritarismo (Ditadura Militar Brasileira)

Marxistas brasileiros também vão refugar a conclusão, embutida no esquema, de que o governo militar brasileiro, no período de 1964 a 1984, por eles considerado como de direita, fica, no espectro, à esquerda, visto que o governo, durante o regime militar, se intrometia em quase todos os aspectos da vida social brasileira. Considerando o Liberalismo, como consideram, uma tendência de direita na filosofia política, e considerando o governo militar como também de direita, os marxistas tendem a concluir, erroneamente, que o governo militar estaria mais próximo do Liberalismo do que do Socialismo.

Equivocam-se os marxistas neste caso (como em outros). O Liberalismo, como já observado, tem na liberdade o seu conceito essencial e mais importante.

Na área política, nenhum governo brasileiro foi menos liberal do que o governo militar (com exceção, talvez, do governo Vargas durante os anos do Estado Novo). Os direitos individuais foram sistematicamente violados durante o governo militar, a liberdade de expressão, associação, locomoção e ação política foi drasticamente reduzida, a integridade (física e emocional) e a segurança das pessoas foram desrespeitadas ao extremo – tudo isso fazendo com que o governo militar dos anos 1964 a 1984 seja classificado como, no plano político e social, o menos liberal dos governos que o Brasil já teve (repito, com a possível exceção do governo Vargas no Estado Novo).

Na área econômica, o governo militar foi um governo que interveio diretamente na economia, agindo como empresário, decretando monopólios e áreas estratégicas, fazendo reservas de mercado, controlando e manipulando taxas de câmbio e inflação, procurando seduzir, quando não subornar, o empresariado para parcerias que basicamente eliminavam o livre funcionamento do mercado. Embora a retórica do governo militar fosse, no plano político, anti-comunista, em nenhum período da história do Brasil a presença do estado na economia cresceu tanto quanto durante o governo militar. Também na área econômica, portanto, é impossível considerar o governo militar como liberal.

Na área social, a presença do estado nas áreas da educação, da cultura, da saúde, da seguridade social, da infra-estrutura (minas e energia, transporte, moradia, comunicações, etc.), só cresceu durante o governo militar. Os espaços reservados para a livre iniciativa privada diminuíram consideravelmente. Assim, também aqui é impossível considerar o governo militar como liberal.

Por fim, na área da educação, o governo baixou, de forma autoritária, uma reforma da educação superior (Lei nº 5540/68) e da educação básica (Lei nº 5692/91). Através de Atos Institucionais e vários decretos restringiu a liberdade de professores e estudantes, aposentou arbitrariamente professores, e expulsou alunos das escolas. Também aumentou consideravelmente o número de universidades federais, expandiu o ensino público na área da educação básica, criou programas governamentais de alfabetização de adultos (MOBRAL, por exemplo) e de ensino supletivo. Estendeu a faixa etária em que a escolaridade era obrigatória para oito anos (sete a quatorze anos). Se permitiu o crescimento do ensino superior privado, fê-lo às custas da autonomia deste, que ficou atrelado ao Ministério da Educação e ao então Conselho Federal da Educação. Nenhuma dessas medidas é de natureza liberal.

É forçoso concluir, portanto, que a ditadura militar brasileira nos anos de 1964 a 1984 era qualquer coisa menos liberal. Se o Liberalismo fica à direita do espectro que definimos, o governo militar brasileiro precisa ficar no extremo oposto. Na realidade, o controle que ele exerceu sobre a política, a economia e a sociedade brasileira foi de tal monta que ele fica em boa companhia ao lado de regimes totalitários como o nazista, na Alemanha, o fascista, na Itália, e o comunista, na União Soviética, no Leste Europeu e em outros países de menor importância (Coréia do Norte, Cuba, Vietnam, etc.) – que, no entanto, foram muito mais violentos.

C. Liberalismo e Social-Democracia Brasileira (Governo de FHC)

O Presidente Fernando Henrique Cardoso (escrevo em 2002), ex-socialista, hoje social-democrata, têm sido rotulado de neo-liberal pela esquerda brasileira. Ele próprio fez uma tímida tentativa de negar, dizendo-se neo-social, não neo-liberal. Esta é uma das poucas afirmações do Presidente com a qual concordo. As iniciativas que lhe valeram o ódio da esquerda socializante foram, principalmente, as que envolveram a venda de empresas estatais. Ora, se a conceituação que fizemos está correta, o governo FHC, ao vender as estatais, está, na realidade, procurando dizer ao povo que o Presidente, anteriormente socialista, está vindo mais para o centro, na direção da Social-Democracia, em que a participação do estado na setor produtivo não é considerada essencial. Em nenhum momento, porém, o governo FHC deixou de propugnar por um ativo envolvimento do estado na área social e por sua ativa participação na distribuição das riquezas produzidas e na regulamentação do setor produtivo. Por isso, o rótulo de “neo-social” é muito mais apropriado do que o de “neo-liberal”. Liberal, sem qualificativos, é algo que o Presidente Fernando Henrique Cardoso absolutamente não é.  (Muito menos o Presidente Lula – digo-o revisando o texto em 2006).

D. Liberalismo e Conservadorismo

O Liberalismo é sempre identificado, pela esquerda, com o Conservadorismo. Especialmente nos Estados Unidos, o Liberalismo tem sido associado, por seus oponentes, com o fundamentalismo religioso protestante de muitos estados do Sul, com sua visão teocrática da sociedade e seu moralismo autoritário.

Dois comentários breves são necessários sobre essa questão.

Primeiro, o Liberalismo, ao defender a liberdade e o direito de as pessoas buscarem sua felicidade como o desejarem, desde que, naturalmente, respeitem os iguais direitos dos demais, é uma filosofia política laissez-faire e, portanto, não-autoritária e não moralista. Assim, está muito distante dos fundamentalistas religiosos com sua moral sexual rígida e autoritária, com sua oposição ao aborto, com sua crítica ao homossexualismo, com sua negação da liberdade humana.

Segundo, o Liberalismo defende a liberdade e os direitos individuais. Se se trata de um contexto que preza a liberdade e os direitos individuais, então certamente o Liberalismo tem todo interesse em conservá-lo. Mas se o contexto é, como nos Estados Unidos e o Brasil hoje, predominantemente orientado para restringir a liberdade e violar os direitos individuais das pessoas, em nome da igualdade, o Liberalismo, longe de ser uma força conservadora, é uma força revolucionária (da mesma forma que o foi na época das monarquias absolutas que sufocavam a liberdade dos indivíduos por não lhes reconhecer os direitos políticos que dão sustentação à liberdade). Condorcet, na época da Revolução Francesa, afirmou que “a palavra ‘revolucionário’ só pode ser aplicada a revoluções cujo objetivo é a liberdade” [31]. Se ele está certo, não há nada tão revolucionário quanto o Liberalismo.

16. Ensaio Bibliográfico e “Webgráfico”

Como mencionado no início deste trabalho (Nota 5), considero como fazendo parte do “primeiro time do Liberalismo” seis autores: Adam Smith e Thomas Jefferson, entre os clássicos, e Ludwig von Mises, Friedrich August von Hayek, Milton Friedman, e Ayn Rand, entre os contemporâneos (dois dos quais foram agraciados com o Prêmio Nobel de Economia: von Hayek e Friedman, em 1974 e 1976, respectivamente).

Considero como fazendo parte do “segundo time do Liberalismo” (do mesmo nível que o primeiro) mais seis autores: John Locke e John Stuart Mill, entre os clássicos, e Karl Raymund Popper, Murray Newton Rothbard, Robert Nozick, e Charles Murray, entre os contemporâneos.

Doze, ao todo.

Vou procurar aqui fazer referência aos trabalhos de cada um que sejam relevantes ao tema deste artigo. Em seguida, procurarei listar os principais web sites dedicados à obra de cada um (quando houver).

A principal obra de Adam Smith (1723-1790), publicada em 1776, é An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, traduzida para o Português como A Riqueza das Nações. O texto completo desse livro, em Inglês, em formato html, pode ser encontrado na Internet, em mais de um lugar, mas um bom texto é o que se encontra no site http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/smith/wealth/index.html. A data de publicação desse livro coincide com a data da Independência dos Estados Unidos e com a data da morte de David Hume (1711-1776), melhor amigo de Adam Smith e, como ele, escocês. Eu me interessei por Adam Smith a partir da leitura das cartas entre ele e David Hume, filósofo sobre o qual escrevi minha tese de doutoramento.  O outro livro bastante conhecido de Adam Smith, publicado dezessete anos antes, é The Theory of Moral Sentiments (1759). Esse livro pode ser encontrado, em Inglês, em formato html, no mesmo site: http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/smith/moral.html.

Thomas Jefferson (1743-1826), autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e terceiro presidente daquele país, deixou um importante legado liberal. Embora ele tenha alcançado fama mais como uma figura pública do que como um filósofo político, deixou um livro (Notes on the State of Virginia [32]) e uma grande quantidade de documentos (panfletos, cartas, projetos de lei e anotações) que revelam suas idéias – dos quais a Declaração de Independência é apenas o mais famoso [33]. Entre os panfletos (na verdade uma conjunto de instruções destinadas aos representantes de Virginia à primeira reunião do Congresso Continental que iria ter lugar em Filadélfia em Setembro daquele ano – e que se reuniu, na verdade, de 5 de Setembro a 26 de Outubro) se encontra A Summary View of the Rights of British America (1774 [34]), o primeiro trabalho publicado de Jefferson e geralmente considerado um precursor da Declaração de Independência. Como membro do Congresso de Virginia Jefferson apresentou vários projetos de lei, em especial o Bill for Establishing Religious Freedom (apresentado em 1779 e adotado em 1786 [35]) e o Bill for the More General Diffusion of Knowledge (apresentado também em 1779, mas nunca adotado [36]). Jefferson, que além de Presidente dos Estados Unidos, foi Embaixador na França, Secretário de Estado (de George Washington, primeiro Presidente dos Estados Unidos), e Senador da República, teve grande participação política em seu estado natal, Virginia, onde foi Governador e membro da Assembléia Estadual. Quando era, em 1785, Ministro Plenipotenciário dos Estados Unidos na França, para firmar acordos comerciais com a França e os demais países europeus, Benjamin Franklin, então Embaixador Americano na França, se aposentou e Jefferson assumiu seu lugar, ocupando o cargo até Outubro de 1789, e, portanto, estando na França por ocasião do início da Revolução Francesa [37]. Finalmente, no final de sua vida Jefferson foi o idealizador e fundador (ou, como ele preferia, “o pai”) da Universidade de Virginia, bem como seu primeiro Reitor [38]. A dimensão intelectual de Jefferson pode ser aquilatada pela observação, certamente jocosa, mas nem por isso menos verdadeira, de John Kennedy, quando disse, em um jantar que a Casa Branca ofereceu a ganhadores do Prêmio Nobel, que ali estava “a coleção mais extraordinária de talento e conhecimento humano que jamais foi possível reunir na Casa Branca – com a possível exceção das ocasiões em que Thomas Jefferson ali jantou sozinho” [39]. Pode-se dizer que ele foi, além de estadista e filósofo, advogado, jurista, biólogo, astrônomo, arquiteto, desenhista, agrimensor, e músico [40].

A obra de Ludwig von Mises (1881-1973), hoje tido como a principal figura da chamada Escola Austríaca de Economia, é vastíssima. Destaco, neste contexto, o incomparável Human Action: A Treatise on Economics (Yale University Press, New Haven, 1949; a 3ª edição, revista e definitiva, foi publicada em 1966, por Henry Regnery Co., e reimpressa por Contemporary Books, Chicago) e as duas obras mais didáticas, Socialism: An Economic and Sociological Analysis (originalmente publicado em Alemão em 1922, sob o título Die Gemeinwirtschaft: Untersuchungen über den Sozialismus; segunda edição, revista, em 1932, tradução para o Inglês de J. Kahane, distribuída por Liberty Classics, Indianapolis, 1979) e Liberalism – in the Classical Tradition (originalmente publicado em Alemão em 1927, sob o título Liberalismus, traduzido para o Inglês por Ralph Raico, publicada em 1962; a terceira edição é distribuída pelo Institute of Humane Studies, New York; a tradução brasileira é de Haydn Coutinho Pimenta e tem o título de Liberalismo Segundo a Tradição Clássica, e foi publicada pela José Olympio Editora em convênio com o Instituto Liberal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987). O texto de Human Action, em Inglês, no formato pdf, pode ser encontrado no site http://www.mises.org/humanaction/pdf/humanaction.pdf. O texto de Socialism, em Inglês, no formato html, pode ser encontrado no site http://www.econlib.org/library/Mises/msSContents.html. O texto de Liberalism, em Inglês, no formato pdf, pode ser encontrado no site http://www.mises.org/liberal/liberalism.pdf. É uma injustiça que Ludwig von Mises não tenha ganho um Prêmio Nobel de Economia, como aconteceu com os dois outros (Friedrich August von Hayek e Milton Friedman).

De Friedrich August von Hayek (1899-1992), Prêmio Nobel de Economia em 1974 (vide  http://www.nobel.se/economics/laureates/1974/hayek-cv.html), aluno de Ludwig von Mises, destaco, para a finalidade presente, The Road to Serfdom (1944, The University of Chicago Press, Chicago, reimpresso inúmeras vezes, com um novo Prefácio do autor em 1976; a edição brasileira, traduzida por Anna Maria Copovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro, foi publicada, com o título O Caminho da Servidão, pelo Instituto Liberal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1990), The Constitution of Liberty (1960, The University of Chicago Press, Chicago; a edição brasileira, traduzida por Anna Maria Copovilla e José Ítalo Stelle, foi publicada, com o título Os Fundamentos da Liberdade, pela Editora Universidade de Brasília, em convênio com a Editora da Revista Visão, Brasília e São Paulo, 1983), e Law, Legislation and Liberty: A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy, em três volumes: I – Rules and Order; II – The Mirage of Social Justice; III – The Political Order of a Free People (The University of Chicago Press, Chicago, 1973; a edição brasileira, traduzida por Anna Maria Copovilla, José Ítalo Stelle, Manoel Paulo Ferreira e Maria Luiza X. de A. Borges, foi publicada, com o título Direito, Legislação e Liberdade: Vol. I – Normas e Ordem, Vol. II – A Miragem da Justiça Social, Vol. III – A Ordem Política de um Povo Livre, pela Editora da Revista Visão, São Paulo, 1985).

Milton Friedman (1912- ), também Prêmio Nobel de Economia, em 1976 (vide http://www.nobel.se/economics/laureates/1976/friedman-autobio.html), comemora 90 anos no momento em que estou escrevendo este trabalho (2002). Dele destaco, para a finalidade presente, Capitalism and Freedom (The University of Chicago Press, Chicago, 1962, 1982), (com sua mulher, Rose D. Friedman) Free to Choose: A Personal Statement (Harcourt, Brace & Co., New York, 1980), traduzido para o Português como Liberdade de Escolher (Editora Record, Rio de Janeiro, s.d.), e (também com sua mulher, Rose D. Friedman) Tyranny of the Status Quo (Harcourt Brace Jovanovich, New York, 1983, 1984). Vale a pena também consultar Milton e Rose D. Friedman, Two Lucky People: Memoirs (The University of Chicago Press, Chicago, 1998, 1999), que é a autobiografia do casal.

Ayn Rand (1905-1981) é uma romancista-filósofa nascida na Rússia, mas que escreveu toda sua obra literária e filosófica nos Estados Unidos. Vide, a respeito dela, meu site http://www.aynrand.com.br. Ela se tornou famosa, nos Estados Unidos e, depois, mundialmente, com seus romances The Fountainhead (Macmillan Publishing Company, New York, 1943) e Atlas Shrugged (Random House, New York, 1957) – traduções brasileiras, respectivamente, de Beatriz Viégas-Faria, sob o título A Nascente (Editora Ortiz e Ateneu Objetivista, Porto Alegre, 1993), e de Paulo Henriques Britto, sob o título Quem é John Galt? (Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1987). O título do primeiro livro em Espanhol é mais sugestivo do conteúdo da obra: El Manancial. Na área de Filosofia Política seus principais livros são coletâneas de artigos: The Virtue of Selfishness e Capitalism: The Unknown Ideal. O primeiro está traduzido para o Português como A Virtude do Egoísmo (tradução de Online-Assessoria em Idiomas, revisão de Winston Ling e Cândido Mendes Prunes, Editora Ortiz, Porto Alegre, 1991). Os dois romances de Ayn Rand já venderam mais de 50 milhões de cópias. O primeiro foi transformado em filme em 1949, estrelado por Gary Cooper e Patricia Neal. O segundo deve ser transformado em mini-série de TV, mas as negociações aparentemente andam complicadas.

Na perspectiva clássica, dois outros nomes importantes na história do Liberalismo precisam ser mencionados, um do século XVII, outro século XIX, para contrabalançar os dois do século XVIII já mencionados (Adam Smith e Thomas Jefferson): John Locke e John Stuart Mill.

John Locke (1632-1704) é, de certo modo, o pai do Liberalismo. Seus principais livros, neste contexto, são The Second Treatise on Civil Government (The Library of Liberal Arts, Indianapolis, 1952), originalmente publicado em 1690, e A Letter Concerning Toleration, originalmente publicada em 1689. O texto do primeiro livro, em Inglês, junto com o do primeiro tratado, pode ser encontrado, em formato pdf, no site http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/locke/government.pdf. O texto do segundo livro, em Inglês, pode ser encontrado, também em formato pdf, no site http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/locke/toleration.pdf.

John Stuart Mill (1806-1873) defende teses liberais – junto de outras não tanto… (Von Mises, von Hayek e Rand o castigam como socialista!) Mas eu tenho uma dívida pessoal com ele: minha iniciação ao Liberalismo se deu, em 1966, ao ler o seu famoso On Liberty, hoje distribuído por The Library of Liberal Arts (Indianapolis), originalmente publicado em 1859. Há tradução brasileira desse livro sob o título Da Liberdade (Ibrasa, São Paulo, 1963). O texto desse livro, em Inglês, no formato txt, pode ser encontrado no site http://www.constitution.org/jsm/liberty.txt. Vide também Principles of Political Economy, with Some of their Applications to Social Philosophy, originalmente publicado em 1848, e Considerations on Representative Government, originalmente publicado em 1861, do qual há tradução brasileira sob o título Considerações sobre o Governo Representativo (Editora da Universidade de Brasília, Brasília, 1980). O texto do primeiro livro, em Inglês, no formato html, pode ser encontrado na Internet no site http://socserv2.socsci.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/mill/prin/index.html, e o texto do segundo livro, também em Inglês, no formato txt, pode ser encontrado no site http://eserver.org/philosophy/mill-representative-govt.txt. Também relevante é o texto The Subjection of Women, originalmente publicado em 1869. O texto desse livro, em Inglês, no formato html, pode ser encontrado no site http://etext.library.adelaide.edu.au/m/m645s.

Na perspectiva atual, outros importantes autores liberais são Karl Raymund Popper, Murray Newton Rothbard, Robert Nozick e Charles Murray.

Os principais livros de Karl Popper (1902-1994) neste contexto são The Open Society and Its Enemies (Routledge & Kegan Paul, London, 1945 – 2 vols) e The Poverty of Historicism (Routledge & Kegan Paul, London, 1957 – originalmente publicado em  Economica, 1944-1945). Meu orientador de doutorado, William Warren Bartley III (1934-1990), foi orientando – e discípulo amado – de Popper, tendo ficado como seu testamenteiro intelectual (função que exerceu até sua morte prematura, em 1990). Bartley foi também testamenteiro intelectual de von Hayek.

Os principais livros de Murray Newton Rothbard (1926-1995) neste contexto são Man, Economy, and State: A Treatise on Economic Principles (Ludwig von Mises Institute, Auburn, AL, 11962, 1970, 1993), com quase mil páginas, For a New Liberty: The Libertarian Manifesto (Collier Books, New York, 1973, 1978), e Education: Free and Compulsory (Ludwig von Mises Institute, Auburn, AL, 1999, originalmente publicado em The Individualist, April e July-August de 1971).  Vide também sua provocante coletânea de ensaios, Egalitarism as a Revolt Agains Nature – and Other Essays (2nd Ed., Ludwig von Mises Institute, Auburn, AL, 1974, 2000).

O principal livro de Robert Nozick (1938-2002) neste contexto é Anarchy, State and Utopia (Basic Books, New York, 1974; tradução brasileira de Ruy Jungmann, publicada sob o título Anarquia, Estado e Utopia (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1991). Outros importantes livros de sua autoria são The Nature of Rationality (Princeton University Press, Princeton, NJ, 1993), The Examined Life: Philosophical Meditations (1990) e Invariances: The Structure of the Objective World (2001).

Os principais livros de Charles Murray (1943-  ) neste contexto são What It Means to Be a Libertarian: A Personal Interpretation (Broadway Books, New York, NY, 1997, 1998) e In Pursuit of Happiness and Good Government (1988, 1994).

Há sites na Internet especialmente dedicados a quase todos esses autores.

Para John Locke e Adam Smith vide o site de The LockeSmith Institute at Valmont University (http://www.belmont.edu/lockesmith/index.html).

Para John Locke, em particular, vide o site de The Locke Foundation (http://www.johnlocke.org).

Para Adam Smith, em particular, vide o site de The Adam Smith Institute (http://www.adamsmith.org.uk).

Para Thomas Jefferson, vide o site Thomas Jefferson Digital Archive (http://etext.lib.virginia.edu/jefferson).

Para John Stuart Mill, vide o site de The John Stuart Mill Institute (http://websites.ntl.com/~julian.wates/JSMI_Site).

Para von Mises, vide o site de The Ludwig von Mises Institute (http://www.mises.org) e o da Foundation for Economic Education (http://www.fee.org).

Para von Hayek, vide o site de The Hayek Center for Multidisciplinary Research (http://www.hayekcenter.org).

Para Friedman, vide o site de The Milton & Rose D. Friedman Foundation (http://www.friedmanfoundation.org).

Para Rand vide o site de The Ayn Rand Institute – The Center for the Advancement of Objectivism (http://www.aynrand.org) e o de The Objectivist Center (http://www.theobjectivistcenter.org).

Para Popper, vide The Karl Popper Web (http://www.eeng.dcu.ie/~tkpw/).

Para Rothbard, vide o site de The Center for Libertarian Studies (http://www.libertarianstudies.org), fundado por ele, e o site Murray Rothbard: Archives (http://www.lewrockwell.com/rothbard/rothbard-arch.html).

Para Nozick e Murray, não encontrei nenhum site específico, mas uma busca em http://www.google.com oferece inúmeras referências a eles. Nozick faleceu recentemente. Murray está vivo.

Por fim, o leitor interessado não deve deixar de ver o site de The Mont Pelérin Society, criada por von Hayek, em http://www.montpelerin.org.

Os livros dos autores do século XX (von Mises, von Hayek, Friedman e Rand) podem ser facilmente adquiridos online na Laissez Faire Books (http://www.laissezfairebooks.com). Os clássicos (Adam Smith e outros) podem ser adquiridos de The Liberty Fund (http://www.libertyfund.org), a preços altamente convidativos, em edições primorosas. O leitor interessado em livros de autores liberais pode também consultar The Libertarian Press (http://libertarianpress.com). Para os livros de Ayn Rand, a consulta obrigatória é The Ayn Rand Bookstore (http://www.aynrandbookstore.com).  Amazon Books (http://www.amazon.com) e Barnes and Noble (http://www.bn.com) têm, naturalmente, todos eles.

Notas

[1] NOTA ACRESCENTADA EM 18/03/2018, quando da publicação deste artigo no blog do autor, intitulado Liberal Space, na URL https://liberal.space. A primeira versão deste artigo foi escrita ao longo do ano 2000 e, em alguns trechos, aproveitou material que eu havia escrito anteriormente. Essa primeira versão foi usada como base para o seminário mencionado Nota 3. Subsequentemente, meus colegas José Claudinei Lombardi e José Luís Sanfelice resolveram publicar em forma de livro as diversas contribuições apresentadas no seminário e me pediram para revisar minha primeira versão, incorporando, tanto quanto possível, questões levantadas na discussão. O resultado é esta versão que aqui apresento e que, sem esta primeira nota, foi publicada no livro, organizado pelos dois professores, com o título Liberalismo e Educação em Debate (Autores Associados, Campinas, 2007), pp.1-60. É para facilitar o acesso a este material que o publico, agora, neste meu blog, que contém vários outros materiais que ampliam e aprofundam algumas das questões aqui discutidas. Neste blog também é possível encontrar os artigos mencionados na Nota 4 e na Nota 29, ambos publicados na revista Pro-Posições, editada pela Faculdade de Educação da UNICAMP, instituição da qual eu tive o privilégio de ser Diretor, primeiro Associado, depois Titular, em seus primórdios, de 1976 a 1984, em dois mandatos de quatro anos. O texto não foi alterado para esta publicação do artigo em meio digital, com a exceção de pequenos acréscimos, colocados entre colchetes, depois da indicação “EC-2018:” e de pequenas correções que removem imperfeições estilísticas e não afetam o conteúdo.

[2] Ph.D., Universidade de Pittsburgh, Pittsburgh, EUA, 1972, Professor Titular (aposentado a partir de 2007) do Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, onde trabalhou desde 1974. Consultor do Instituto Ayrton Senna (IAS), São Paulo, SP, e da Microsoft Corporation, Redmond, WA (EUA).

[3] O artigo procura reconstituir, tanto quanto possível, um seminário que dei, com o mesmo título do artigo, para os membros do Grupo de Pesquisa HISTEDBR, da Faculdade de Educação da UNICAMP, no dia 29 de março de 2001, na Sala da Congregação da Faculdade. O grupo resolveu discutir o Liberalismo em seminários mensais ao longo do ano de 2001 e tive o privilégio de ser o primeiro apresentador, embora não pertença ao grupo.

[4] Pro-Posições, vol. 8, nº 2 [23], Março de 1999, pp. 43-57. Esse artigo foi entregue para publicação cerca de dois antes da data que saiu na capa da revista, Março de 1999 – e mais de quatro anos antes da data em que o número de Março de 1999 efetivamente foi publicado (Junho de 2001).

[5] Nesse sentido, não posso deixar de registrar minha apreciação aos organizadores do seminário mencionado na Nota 3 e deste livro, por terem me convidado a participar. Fazendo isso, impediram que mais um livro sobre o Liberalismo fosse publicado sem que nele estivesse presente a voz de um defensor do Liberalismo. É verdade que me sinto meio assim como (se me perdoam a analogia) negro em festa de branco no sul racista dos Estados Unidos: evidência (“token”) de uma tolerância que é mais simbólica.

[6] Considero esses seis (Adam Smith, Thomas Jefferson, Ludwig von Mises, Friedrich August von Hayek, Milton Friedman, e Ayn Rand) o “primeiro time do Liberalismo”: dois clássicos e quatro contemporâneos (entre os quais, dois Prêmios Nobel de Economia: von Hayek e Friedman). Mas meu elenco tem um “segundo time” (do mesmo nível que o primeiro), também composto de seis membros – de novo, dois clássicos e quatro contemporâneos: entre os clássicos, John Locke e John Stuart Mill; entre os contemporâneos, Karl Raymund Popper, Murray Newton Rothbard, Robert Nozick, e Charles Murray. Doze, ao todo. Vide o Ensaio Bibliográfico e “Webgráfico”, no final deste artigo, para referências à obra desses autores e a sites dedicados a promover essa obra. Incluo Mill apesar de ele haver em muitos aspectos abandonado o Liberalismo – e, por isso, atraído a ira de von Mises, von Hayek e Rand (entre outros).

[7] Muitos vão discordar de minha afirmação de que os “liberais” americanos sejam social-democratas. Há quem argumente até mesmo que a Social-Democracia inexiste nos Estados Unidos. Certamente há diferenças entre a Social-Democracia americana e a Social-Democracia européia. Entre outras razões, porque nos Estados Unidos o Socialismo nunca foi uma opção real – muito menos o Socialismo Marxista-Leninista (Comunismo) e, portanto, a Social-Democracia americana não apareceu como uma alternativa democrática ao Socialismo. Mas, como espero venha a ficar evidente adiante, faz sentido chamar a posição – o Tertium Quid – que fica entre o Liberalismo e o Socialismo de Social-Democracia. Vide, a esse respeito, Sidney Hook, Leszek Kolakowski, Seymour M. Lipset e Michael Harrington, A Social-Democracia nos Estados Unidos (Coleção Pensamento Social-democrata, Instituto Teotônio Vilela, Brasília, 1999), e Seymour Martin Lipset e Gary Marks, Por que não Vingou? História do Socialismo nos Estados Unidos (Coleção Pensamento Social-democrata, Instituto Teotônio Vilela, Brasília, 2000). Vide, também, adiante, minha tentativa de fazer uma distribuição das várias tendências da Filosofia Política num continuum, apresentada adiante neste artigo.

[8] Sobre o Libertarianismo vide o site Libertarian.org (http://www.libertarian.org) e o site do Partido Libertário americano (http://www.lp.org). O candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Libertário nas eleições de 2000 foi Harry Browne (vide http://www.harrybrowne2000.org).

[9] O principal livro de John Rawls é A Theory of Justice (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1971). Outros livros de John Rawls são citados na Nota 22.

[10] O uso dos termos “esquerda” e “direita” é controvertido, mas útil. O termo “esquerda” pode ser tomado, aqui, em seu sentido mais convencional, que abarca posições que vão da Social-Democracia até o Comunismo, passando pelo Socialismo que se pretende democrático, posições essas que dão mais ênfase à igualdade econômica do que à liberdade.

[11] Ao revisar o texto (em 2006) fui forçado a incluir a menção do fato de que o próprio governo Lula vem sendo considerado neo-liberal.

[12] Apesar de Erich Fromm (Escape from Freedom [Rinehart & Co., New York, 1941], tradução brasileira de Octávio Alves Velho, sob o título Medo à Liberdade, [Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1960, 3ª ed., 1964]) dizer que o homem tem medo da liberdade, eu, pessoalmente, tenho plena convicção de que a liberdade é o bem maior que o homem almeja. Por isso coloquei como moto deste artigo a linda passagem de Patrick Henry: “Não sei quanto aos outros, mas no que me diz respeito, ou tenho liberdade, ou prefiro a morte” (“I know not what course others may take; but as for me, give me liberty or give me death!”). Essa passagem vem de seu famoso discurso de 23 de março de 1775, às vésperas da Revolução Americana, e seu texto completo pode ser encontrado em http://libertyonline.hypermall.com/henry-liberty.html. A principal razão pela qual a liberdade é o bem supremo do homem está no fato de que a liberdade é conditio sine qua non para qualquer outra coisa que ele queira fazer. Embora seja inegável que a liberdade seja condição necessária para qualquer coisa que o homem queira fazer, ela certamente não é condição suficiente. Para conseguir fazer o que queremos, precisamos, além de liberdade, motivação, ambição, capacidade, circunstâncias, oportunidades, recursos, sorte… Algumas dessas coisas independem de nós, mas a maioria está, ou pode vir a estar, sob nosso controle. É interessante que, enquanto Patrick Henry disse “Liberdade ou Morte!”, Dom Pedro I, quase 50 anos depois, teria dito “Independência ou Morte!”. Independência, no caso, significava apenas o corte dos laços entre Brasil e Portugal – não significava, necessariamente, liberdade para o povo, que poderia continuar, como continuou, sob um governo que não reconhecia, como o americano, os direitos individuais básicos da pessoa humana.

[13] A máxima de que “melhor é o governo que menos governa” é geralmente atribuída a Thomas Jefferson. Cp. Samuel Eliot Morison, The Oxford History of the American People (Oxford University Press, New York, 1965), p. 313.

[14] Walter Williams, More Liberty Means Less Government: Our Founders Knew This Well (Hoover Institution Press, Stanford, 1999). A despeito do título, esse livro não é uma análise histórica do pensamento dos fundadores da república americana, mas, sim, uma aplicação do princípio a questões da atualidade.

[15] Estou chamando de direitos individuais o que alguns autores chamam de direitos civis e outros de direitos naturais. A terminologia às vezes fica complicada, especialmente depois de a expressão “direitos humanos” (com outro sentido) ter se tornado corrente, mas o que tenho em mente ficará explícito no texto. Cumpre esclarecer aqui que os direitos individuais não devem ser confundidos nem com o que alguns autores chamam de direitos políticos (direito de ser representado politicamente, direito de votar e ser votado, direito de exercer cargos públicos, etc.) nem, muito menos, com os chamados direitos sociais (que serão discutidos adiante e que, como se verá, às vezes são diferenciados em direitos econômicos, direitos sociais [propriamente ditos] e direitos culturais). Os direitos políticos são direitos legítimos, mas já estão incluídos, para o Liberalismo, dentro dos direitos individuais. A expressão direitos humanos geralmente se refere a todo tipo de direito (incluindo os individuais, os políticos, e os sociais). Alguns autores introduzem novos conceitos, que complicam ainda mais a discussão. Ingo Wolfgang Sarlet, em A Eficácia dos Direitos Fundamentais (Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2ª edição revista e atualizada, 2001), fala também em direitos fundamentais, dando o seguinte esclarecimento (que reflete sua ótica de jurista): “Em que pese sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humanos reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)” (p.33).

[16] Há autores que, de forma resumida, reduzem os direitos aqui listados a três. Na Declaração de Independência dos Estados Unidos Thomas Jefferson lista os seguintes: o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade (Life, Liberty and the Pursuit of Happiness). Hanna Arendt menciona o direito à vida (que inclui segurança), à liberdade (que inclui expressão, locomoção, associação e busca da felicidade), e à propriedade. (Vide Hannah Arendt, On Revolution [The Viking Press, New York, 1963, 1965], pp. 24,123). Em outros contextos tenho usado essa formulação mais sucinta. Esses três direitos já haviam sido afirmados pelo Congresso Continental das Colônias americanas, em sua primeira reunião, em Filadélfia, em Setembro/Outubro de 1774 (vide Noble E. Cunningham, Jr, In Pursuit of Reason: The Life of Thomas Jefferson [Ballantine Books, New York, 1987], p. 31). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa lista quatro direitos: à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão (“Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l’oppression”). Obviamente, não se trata de “economizar” na lista de direitos. Se fosse esse o caso, bastaria listar o direito à liberdade, que inclui todos os demais, até mesmo o direito à vida, à busca da felicidade, à propriedade e à resistência à opressão.

[17] Estou aqui usando a expressão para me referir, de forma genérica, a todos os presumidos direitos positivos, incluindo os que a ONU chama de “direitos econômicos, sociais e culturais”, bem como os que na literatura às vezes são chamados de “direitos de segunda, terceira e quarta geração” (ou “dimensão”). Sigo, nesse aspecto, a Constituição Brasileira, que denominou também de sociais os presumidos direitos econômicos e culturais. Para os vários pronunciamentos da ONU e de outros organismos internacionais sobre o assunto, vide Oscar Vieira Vilhena, Organizador, Direitos Humanos: Normativa Internacional (Max Limonad, ILANUD, São Paulo, 2001). Para uma discussão exaustiva das várias gerações de direitos, vide Ingo Wolfgang Sarlet, op.cit., especialmente pp. 48-66.

[18] Oscar Vieira Vilhena, op.cit., p. 282.

[19] Ingo Wolfgang Sarlet, op.cit., p.49.

[20] Ingo Wolfgang Sarlet, op.cit., p.15

[21] Cp. David Kelley, A Life of One’s Own (Cato Institute, Washington, DC, 1998), Cap. 5, pp. 91-118. Para os que assim argumentam, a liberdade não é um direito fundamental que possa se contrapor ao dever ético – e altruístico – da benevolência.

[22] As discussões mais interessantes dos chamados direitos sociais, na perspectiva de quem acredita neles e está disposto a defendê-los (embora sem sucesso, na minha opinião), se encontram, a meu ver, na obra de John Rawls, Ronald Dworkin e Amartya Sen (este, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998). Para Ralws, vide A Theory of Justice (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1971; tradução brasileira de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves, sob o título Uma Teoria da Justiça [Martins Fontes, São Paulo, 2000]); Political Liberalism (Columbia University Press, New York, 1993; tradução brasileira de Dinah de Abreu Azevedo, com revisão técnica de Álvaro de Vita, sob o título O Liberalismo Político [Editora Ática, São Paulo, 2ª edição, 2000); Justice as Fairness: A Restatement (Harvard University Press, Cambridge, MA, 2001); e a coletânea de artigos, organizada por Catherine Audard, publicada originalmente em Francês, Justice et Démocratie (Editions du Seuil, Paris, 1978; tradução brasileira de Irene A. Paternot, sob o título Justiça e Democracia [Martins Fontes, São Paulo, 2000]). Para Dworking, vide Taking Rights Seriously (Duckworth & Company, London, 1977); A Matter of Principle (Harvard University Press, Cambridge, MA, 1985; tradução brasileira de Luís Carlos Borges, sob o título de Uma Questão de Princípio [Martins Fontes, São Paulo, 2000]); e Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality (Harvard University Press, Cambridge, MA, 2000). E, finalmente, para Sen, vide especialmente Development as Freedom (Random House, New York, 1999; tradução brasileira de Laura Teixeira Motta, revisão técnica de Ricardo Doninelli Mendes, sob o título Desenvolvimento como Liberdade [Companhia das Letras e Instituto Ayrton Senna, São Paulo, SP, 2000, 2001]); On Economic Inequality (Clarendon Press, Oxford, 1973, edição expandida e com um anexo co-autorado por James E. Foster, 1997); Inequality Reexamined (Russell Sage Foundation e Harvard University Press, New York e Cambridge, MA, 1992); e Rationality and Freedom (Harvard University Press, Cambridge, MA, 2002). Mesmo o liberal Charles Murray se sente obrigado a reconhecer o direito à educação: vide What It Means to Be a Libertarian: A Personal Interpretation (Broadway Books, New York, NY, 1997, 1998).

[23] Cp. David Kelley, op.cit., pp. 1-2.

[24] “Se um estranho aparecesse em nossa casa exigindo que lhe déssemos um lugar para morar, ou que pagássemos as suas contas médicas, ou que déssemos uma contribuição para o seu fundo de aposentadoria ou para a educação de seus filhos – se ele exigisse isso como uma questão de direito, independentemente de nós querermos ou podermos ajudá-lo, e sem sentir qualquer obrigação de nos agradecer pela ajuda – nós ficaríamos justificadamente ofendidos. Nós reconheceríamos sua ação como um ato de monumental presunção. No entanto, na vida pública, aceitamos essas exigências naturalmente. Os beneficiários dos programas de bem-estar social, e aqueles que falam por eles, apresentam suas necessidades como se elas fossem um cheque emitido contra a fazenda pública, isto é, contra os membros produtivos da sociedade, que são os que pagam impostos. Às vezes eles não são atendidos porque o governo não tem dinheiro para atendê-los; às vezes, porque o governo não acha que deva atender a essa demanda nesse momento. Mas raramente essa pretensões de direito são contestadas com base em sua ilegitimidade. Nos debates sobre a questão social assume-se, sem questionar, a tese de que as necessidades dos recipientes têm precedência sobre os direitos dos produtores: aqueles com a habilidade de produzir têm o dever de servir, e os que têm necessidade têm o direito de exigir.” Cp. David Kelley, op.cit., p. 2 [minha tradução]. Apesar do enorme fracasso do Comunismo, continuamos a aceitar, sem maiores protestos, o princípio: “De cada um segundo as suas habilidades, a cada um segundo as suas necessidades”. A fórmula se encontra na primeira seção da Crítica do Programa Gotha. Vide “Critique of the Gotha Program”, em Marx & Engels: Basic Writings on Politics and Philosophy, editado por Lewis S. Feuer (Doubleday & Company, Inc., Anchor Books, New York, 1959), p.119. O programa criticado foi o do congresso unido dos dois partidos socialistas alemães que se realizou em Gotha em 1875. A melhor crítica que eu conheço desse princípio marxiano está em Ayn Rand, em seu monumental romance Atlas Shrugged (Random House, New York, 1957), tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, sob o título Quem é John Galt? (Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1987). [EC-2018: Há uma nova tradução no mercado com o título de A Revolta de Atlas (Editora Arqueiro).] O trecho pertinente, baseado na tradução brasileira, está transcrito no meu site sobre Ayn Rand, em https://aynrand.com.br [EC-2018: hoje também em https://aynrand.space], na Seção “Trechos da Obra”. A transcrição é segundo o texto da [EC-2018: primeira] tradução, pp. 510-517, com trechos omitidos.

[25] Ao longo de 2002 houve no Brasil uma briga entre o PFL (Partido da Frente Liberal) e o PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira), que teve reflexos interessantes. Em decorrência dessa briga houve um imposto, a CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira), que ficou, por certo tempo, sem ser renovado e correndo o risco de não ser renovado. O então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e o seu bobo da corte, Arnaldo Jabor, em discursos afinados e sincronizados, foram aos meios de comunicação para dizer quase textualmente a mesma coisa: “Pressionem os seus parlamentares, porque o Brasil está perdendo 400 milhões de reais por semana: esse é um dinheiro que está sendo roubado de você, de mim…”. Ora, ora: de onde saiu essa? Quando, por uma briguinha entre eles, o seu e o meu dinheiro ficam no nosso bolso, é aí que nós estamos sendo roubados? O que é isso? Estamos presenciando mais um caso da Novilíngua de 1984 em sua versão tucana em 2002: quando não sou roubado, então é que sou roubado! O Brasil não estava, naquela ocasião, perdendo 400 milhões de reais por semana. O Brasil, que somos nós, estava ganhando esse dinheiro! Quem o estava perdendo era o governo, que é outra coisa inteiramente. Através de uma lógica orwelliana, o governo acha que, sem mais, tem o direito de meter a mão em nosso bolso toda hora que acha que precisa reforçar seu caixa. Note-se também o procedimento que o governo adotou em relação ao reajuste da tabela do Imposto de Renda. Por cerca de oito anos (de 1994 a 2002) o governo não reajustou essa tabela, embora tenha reajustado os preços de tudo o que é produto e serviço das empresas estatais ou das empresas submetidas a controle de preços, fazendo com que o brasileiro sofresse duas vezes: uma pelo aumento dos preços de produtos e serviços controlados pelo governo, e outra pelo aumento cavalar de impostos que o não-reajuste da tabela do Imposto de Renda acarretou. Quando se tentou corrigir, em parte, a injustiça, o governo tentou meter a mão em outro bolso nosso, aumentando a CSL (Contribuição Social sobre o Lucro) das empresas. O governo se acostumou tanto a roubar que, quando se lhe proíbe (parcialmente) de roubar, quer ser ressarcido “do prejuízo”!!! Seria de rir – se não fosse de chorar… Aproveitando a menção à chamada Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), é interessante registrar que, no Brasil, a Receita Federal chama o pagador de impostos de “contribuinte”, para dar a impressão de que ele paga os impostos de boa vontade, como uma contribuição voluntária ao que ela tenta caracterizar como o bem comum. Nada mais falso. Nos Estados Unidos, usa-se o termo correto, “tax payer”, pagador de impostos, que deixa bem claro quem banca a conta dos gastos governamentais e não procura obnubilar o processo chamando de contribuição o que na realidade é imposto, arrecadado mediante o uso da força. Se imposto fosse contribuição, não precisaria ser imposto: as pessoas o pagariam livre e espontaneamente.

[26] É bom que se registre que para os liberais essa não é uma questão moral: a aceitação dos princípios básicos que regem o estado liberal é, para eles, equivalente à anuência a um contrato social tácito entre todos celebrado.

[27] Marx & Engels: Basic Writings on Politics and Philosophy, op.cit., loc.cit. Vide a Nota 23 aqui neste trabalho.

[28] Como já mencionei (Nota 24), a melhor crítica desse princípio que eu conheço está em Atlas Shrugged, de Ayn Rand, op.cit., que é leitura altamente recomendada para os que realmente querem entender a natureza da oposição liberal ao Socialismo.

[29] Compare-se, neste contexto, meu artigo “Justiça Social, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernández de la Mora”, publicado na revista Pro-Posições, Nº IV, Março de 1991, pp. 26-40. Há uma versão revisada e mais ampla desse artigo em meu site pessoal, no endereço http://chaves.com.br/TEXTSELF/PHILOS/Inveja-new.htm. A versão original também pode ser encontrada nesse site, no endereço http://chaves.com.br/TEXTSELF/PHILOS/Inveja.htm. [EC-2018: esse site não mais existe, tendo sido substituído por um conjunto de blogs. A versão revisada e ampliada está em dois artigos do meu blog Liberal Space, URL https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-1/ e URL https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-2/. A versão original do artigo não está mais disponível.]

[30] Contrário ao Liberalismo, o Socialismo pretende ter uma base moral.

[31] Condorcet, “Sur le Sens du Mot Révolutionnaire”, in Oeuvres, 1847-1849, vol. XII, citado apud Hannah Arendt, op.cit., p. 21.

[32] Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., 76-79, 94-96.

[33] O texto que o Congresso Continental das (ex-) Colônias Americanas aprovou no dia 4 de Julho de 1776 naturalmente não é idêntico ao texto que saiu da pena de Jefferson. Jefferson fazia parte do Comitê nomeado em 11 de Junho para redigir a proposta de Declaração, do qual também faziam parte Benjamin Franklin, John Adams e outros. O Comitê, por sua vez, encarregou Jefferson de redigir a proposta. O texto que saiu de sua pena foi apreciado e emendado, primeiro, por Franklin e Adams (a quem ele, por deferência, submeteu o texto antes de apresentá-lo ao Comitê), depois pelos demais membros do Comitê, agora reunido como um todo, e, por fim, pelo Plenário do Congresso Continental. Jefferson nunca reivindicou originalidade para o documento. Segundo ele, a Declaração de Independência foi escrita com a intenção de representar a “mente americana”, isto é, de expressar idéias que eram geralmente aceitas pelos colonos da “América Britânica” naquela época – antes de se tornar evidente a necessidade da separação e da independência. Cp. Noble E. Cunningham, Jr., op.cit., pp. 46-51. Apesar das alterações, Jefferson é legitimamente considerado o autor da Declaração de Independência.

[34] Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., pp. 27-31.

[35] Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., p. 55.

[36] Esse projeto de lei era uma tentativa de estruturar um sistema de educação para o Estado de Virginia. Nunca foi aprovado como tal, embora alguns de seus elementos tenham sido aproveitados no projeto de criação da University of Virginia, também obra de Jefferson. Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., pp. 58-60. Na verdade, Jefferson foi nomeado presidente de um Comitê encarregado de revisar todas as leis do Estado de Virginia. Alguns dos projetos de lei foram aprovados, outros, como é o caso deste, não. Vide em relação a isso todo o Capítulo V, “Virginia Reformer”, de Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., pp. 52-63.

[37] Na verdade, Jefferson foi mais do que observador dos eventos que tinham lugar na França. Sua amizade com Lafayette o tornou conselheiro do revolucionário francês, especialmente na elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e na elaboração da Constituição Francesa, e sua interferência nos eventos foi a ponto de oferecer almoço a membros da Assembléia Nacional com o intuito de resolver suas diferenças. Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., o capítulo X, “Witness to Revolution in France”, pp. 113-130.

[38] Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., o capítulo XXII, “A Final Legacy”, pp. 336-349. O epitáfio de Jefferson, preparado por ele próprio, diz simplesmente: “Aqui foi enterrado Thomas Jefferson, Autor da Declaração de Independência Americana, do Estatuto sobre Liberdade Religiosa do Estado de Virginia, e Pai da Universidade de Virginia”. Cp. Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., p. 349.

[39] O relato foi feito em The Washington Post, 30 de Abril de 1962, p.B-5, e é aqui citado apud Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., p. xii.

[40] Cp. Noble E. Cunningham, Jr, op.cit., p. 79.

Transcrito aqui neste blog em Salto, 18 de Março de 2018

Ayn Rand e A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged)

Este artigo é uma compilação de três matérias (dois artigos e uma transcrição) publicadas anteriormente aqui neste blog. Para tentar fazer unidade coerente de matérias escritas em diferentes momentos e com distintas finalidades, precisei revisar, adaptar e atualizar as matérias – que podem ser lidas em suas versões originais nas notas ao final de cada seção. 

I. Introdução e Tema Geral (*)

A “Bíblia” do pensamento liberal clássico na segunda metade do Século 20 não foi um livro de economia ou mesmo de filosofia política: foi um romance de mais de mil páginas: Atlas Shrugged. Para quem não tem muita familiaridade com o Inglês, o título, no original, quer dizer “Atlas Deu de Ombros”, isto é, encolheu os ombros nos quais ele sustentava o mundo e deixou que o mundo se arrebentasse.

O livro foi escrito por Ayn Rand (1905-1981), romancista, filósofa e polemicista russo-americana, nascida na Rússia, em 1905, com o nome de Alyssa Zinovievna Rosenbaum. Ela emigrou para os Estados Unidos em 1926, quando tinha 21 anos. O livro, seu opus magnum, foi publicado originalmente nos Estados Unidos em 1957 (vai fazer 60 anos em 2017, o ano que vem). Por admissão dos próprios, o livro influenciou Ronald Reagan e Margareth Thatcher e, através deles, a história do Ocidente. Alan Greenspan, o todo-poderoso chefe do Federal Reserve Bank americano de 1987 a 2006, se incluía entre os discípulos de Ayn Rand.

Essa clássica defesa da liberdade do indivíduo, que na esfera econômica se conhece como capitalismo, ganhou em 2010 nova edição em Português, com título novo: A Revolta de Atlas, numa reedição da Editora Sextante, do Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto Millenium. O novo título segue o título da edição espanhola, La Rebelión de Atlas. A edição brasileira anterior, publicada em 1987, e há muito esgotada, tinha o título de Quem é John Galt? O título anterior corresponde a uma frase frequentemente usada no texto. Mas, para os que não conhecem ainda a obra, é meio obscuro. A tradução usada na presente edição é a mesma, mas ela foi revisada, corrigida e melhorada pela Sextante.

Com 1.231 páginas na presente edição brasileira, o livro tem enredo extremamente complexo, bem elaborado e atraente – e surpreendentemente atual, especialmente quando se leva em conta o fato que foi publicado há quase 60 anos (sua preparação, pesquisa e redação tendo custado mais de dez anos da vida de Ayn Rand). Mais detalhes sobre o enredo serão fornecidos adiante, nesta e na seção seguinte. É bom lembrar que em 1957, quando o livro foi publicado, estávamos, aqui no Brasil, no meio do governo Kubitscheck, na euforia da construção de Brasília e da aceleração do nosso desenvolvimento: cinquenta anos em cinco. Clima de “ninguém segura este país”, “este é um país que vai pra frente”, etc.

Os principais personagens da história também são bem definidos e muito interessantes. Eles são a Vice-Presidente Operacional da principal companhia ferroviária dos Estados Unidos, a única que é verdadeiramente transcontinental, fazendo viagem de Nova York a São Francisco; o proprietário da maior siderúrgica americana, que inventa um metal mais resistente, leve e barato do que o aço; o proprietário e líder mundial da indústria de extração, industrialização e comercialização de cobre, chileno de nascimento; e um inventor misterioso, sobre o qual há suspense nos primeiros dois terços do livro, deixando todo mundo, dentro e fora do livro, curioso. Vem daí o “Quem é John Galt?” Vários personagens secundários, todos eles muitíssimo interessantes, completam o quadro. O meu favorito, dentre os secundários, é Hugh Akston, professor de filosofia, dono de uma lanchonete, e sócio de uma fábrica de cigarros (cuja marca é simplesmente $, the dollar sign). 

Nesta seção darei apenas uma breve descrição do tema escolhido por Rand para seu opus magnum, para que o leitor possa ter uma ideia da dimensão (breadth and depth) da obra.

Publicada em 1957, a história se passa nos Estados Unidos, numa época futura em que o país, seguindo o exemplo de países europeus e latino-americanos, caminha para o socialismo não-revolucionário, aquele socialismo supostamente democrático que transforma a sociedade através da legislação e da demagogia. Os países vão se transformando, um a um, especialmente na Europa, que lidera o processo, em “Repúblicas Populares”, que, gradualmente, têm sua economia totalmente regulada, manietada mesmo, e, assim, controlada e socializada. Os Estados Unidos parecem ainda ser capazes de resistir, mas, aparentemente, não por muito tempo. O clima é de guerra contra os empresários, em especial os industriais.

O livro descreve o que acontece quando aqueles que (como Atlas) sustentam o mundo nas costas resolvem fazer greve, assim sacudindo o mundo dos ombros e deixando que ele literalmente “vá para o brejo”. Na verdade, a guerra é contra todos os que têm habilidade e competência e valorizam no limite a sua independência, a sua autonomia, a sua liberdade — em relação ao governo e à sociedade. 

Pela primeira vez na história, as pessoas de habilidade e competência resolvem fazer greve. O título original do livro era The Strike. Em Francês, continua a ser La Grève.

“Vamos ver o que acontece ao mundo quando quem faz greve contra quem” é frase (retirada do livro) que resume o tema da obra.

Entrando em greve, empresários e empreendedores americanos começam a desaparecer, abandonando suas empresas nas mãos de reguladores e controladores estatais. Grandes filósofos, cientistas e artistas também desaparecem, abandonando seus empreendimentos. O lado otimista da história é que o estado pode confiscar os produtos e as produções de empresas e outros empreendimentos, pode até se apropriar das próprias organizações, mas não consegue obrigar empresários e outros empreendedores a lhe arrendar suas mentes, sua inteligência, sua criatividade, sua habilidade, sua competência, seu trabalho… O estado, portanto, que fique com as empresas e os diversos empreendimentos, decidem seus proprietários na história. Mas eles não colocam mais suas mentes a serviço da sustentação de um mundo onde esse tipo de confisco pode acontecer. Na realidade, aquilo que eles deixam para o estado espoliador não passa da carcaça – a imagem é usada no livro – de empresas e empreendimentos cuja alma eles levaram consigo.

A história narra nos mínimos detalhes o caos que resulta dessa inusitada greve em que aqueles que normalmente são vítimas das greves, os empresários e empreendedores, retiram do mercado sua mente e seu trabalho, e, no processo, deixam o mundo sem bens, sem serviços, sem empregos.

Quando Atlas faz greve, o mundo literalmente para e, a seguir, desmorona (mais ou menos como aconteceu com o mundo comunista em 1989-1991, mais de trinta anos depois do livro – com uma pequena colaboração de Reagan e Thatcher, fãs do livro e de sua autora).

O livro coloca o foco na tentativa heroica da principal personagem, a Vice-Presidente da Taggart Transcontinental, de resistir à greve – mas, no final, ela consegue e (no bom sentido) sucumbe (adere à greve).

Ao final da história, quando as luzes do velho mundo se apagam, simbolizando a derrocada que lhe sobrevém quando Atlas deixa de sustenta-lo, a porta está aberta para a construção de um mundo novo: a greve termina e Atlas está pronto para reassumir seu lugar – agora com um exército consciente e bem preparado de aliados pronto para ajuda-lo.

[* Este primeiro capítulo é uma versão revista, levemente ampliada e atualizada, de um artigo que eu escrevi, a pedido do jornal, para a Folha de S. Paulo, seção Cifras & Letras, publicado em 9 de Outubro de 2010, por ocasião do lançamento da reedição de A Revolta de Atlas. O artigo da Folha foi reimpresso aqui neste blog em 09/10/2010, em https://liberal.space/2010/10/09/a-greve-dos-que-sustentam-o-mundo-nas-costas/, e novamente em 22/12/2014, em https://liberal.space/2014/12/22/excerto-de-a-revolta-de-atlas-obra-de-ayn-rand/.%5D

II. 60 Anos de Atlas Shrugged (**)

Atlas Shrugged, publicado quase 60 anos atrás, continua a ser o mais profundo romance de análise política do Século 20. Um romance engajado de uma escritora radicalmente liberal. Surpreendentemente, é também o mais popular. 

Os críticos literários não gostaram — o que não é novidade. A esquerda — em especial a esquerda marxista — detestou. A esquerda mais light, social democrata, também não gostou, mas controlou um pouco o seu ódio. 

O público leitor, entretanto, amou…

Um pouco antes da última virada do século a Random House, editora americana, resolveu elaborar duas listas dos 100 melhores livros de ficção do Século 20. Para a primeira, solicitou a opinião dos seus editores e críticos literários; para a outra, a opinião do público leitor. Não há surpresa no fato de que as duas listas quase não têm sobreposições. Atlas Shrugged ficou no primeiro lugar na lista dos leitores, seguido de The Fountainhead, também de Ayn Rand (publicado em 1943). As duas listas completas estão disponíveis no site da Random House, no endereço:

http://www.randomhouse.com/modernlibrary/100bestnovels.html 

(A propósito, a lista dos editores e críticos tem Ulisses, de James Joyce, em primeiro lugar, e The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, em segundo.) 

O fato de Atlas Shrugged haver ficado em primeiro lugar na lista dos leitores é surpreendente por várias razões. Uma delas é que o livro tem, em sua edição de capa dura, quase 1.200 páginas. Outra, que essas páginas contêm discussões filosóficas bastante densas acerca da natureza humana, do trabalho, do dinheiro, do sexo, da felicidade; da lógica, do conhecimento e da verdade; da ética e dos valores; da liberdade e dos direitos individuais; da política, do estado e do governo; da economia, da livre iniciativa, da propriedade privada. O livro é uma defesa intransigente do liberalismo, sem adjetivos, e do capitalismo, que é sua expressão na área econômica. A defesa do capitalismo tem como base não só o fato de que ele é o único sistema econômico capaz de realmente produzir riqueza e desenvolvimento (econômico, social e humano), mas também o único sistema econômico compatível com um regime político livre e, portanto, justificável moralmente. A defesa do capitalismo é, portanto, não só utilitária, mas também moral, no sentido mais objetivo do termo. 

A natureza filosófica de Atlas Shrugged pode ser percebida na simples leitura do título de suas três partes:

  • “Não-Contradição” (“Non-Contradiction“),
  • “Ou Um Ou Outro” (“Either-Or“), e
  • “A é A” (“A is A“).

Esses três títulos se referem aos três princípios básicos da Lógica, a saber: o princípio da Não-Contradição (nenhum enunciado pode ser verdadeiro e falso), o princípio do Terceiro Excluído (um enunciado tem de ser ou verdadeiro ou falso, não há uma terceira possibilidade), e o princípio da identidade (se um enunciado é verdadeiro, então ele é sempre verdadeiro; se ele é falso, então ele é sempre falso).

É um tributo à habilidade linguística de Ayn Rand, para quem o Inglês não era a língua mãe (ela nasceu na Rússia em 1902 só veio para os Estados Unidos já adulta, em 1926), que ela tenha conseguido tal domínio dessa língua que seu livro é um considerado um clássico da literatura americana. Nas livrarias, é encontrado sempre entre os clássicos da literatura americana.

É um tributo à habilidade literária de Ayn Rand — que inclui as habilidades de construir um enredo fascinante, de definir personagens marcantes, de gerar e manter suspense, de levar o curso dos eventos a um climax — que Atlas Shrugged, apesar do tamanho e da complexidade da trama, tenha vendido vários milhões de cópias em suas várias edições (no original – não incluindo as traduções).

A história, narrada na terceira pessoa, se passa nos Estados Unidos (como se observou na seção anterior), em algum momento depois da guinada daquele país para a esquerda, algo que aconteceu durante o New Deal (década de 1930, começo da década de 1940). Provavelmente a data melhor para situar os eventos seja por volta do final dos anos finais do Século 20. Na história, os vários países europeus já se tornaram “Repúblicas Populares” (“People’s Republics“), isto é, já se tornaram socialistas, e os Estados Unidos caminham rapidamente na mesma direção. O governo americano, “em nome do povo”, interfere aberta a decididamente na economia, com leis e decretos (“diretivos”) que buscam “igualizar as oportunidades empresariais”, mas que tornam cada vez mais difícil para os empreendedores realmente competentes produzirem livremente, isto é, sem involuntariamente descumprirem ou intencionalmente burlarem alguma determinação governamental. A tentativa de “igualizar as oportunidades empresariais” é feita em nome do princípio marxiano de que os que têm habilidade e competência devem obrigatoriamente ajudar os que precisam: “de cada um conforme a sua habilidade, a cada um conforme a sua necessidade”.

A estratégia do governo regulamentador, como cinicamente revelada pelo Dr. Floyd Ferris, um dos diretores do Instituto Nacional de Ciência (State Science Institute – expressão que contém uma contradição de termos, segundo Rand), não é que todos os empresários cumpram essa miríade de normas e regulamentos. A intenção é que todos os empresários se tornem, inevitavelmente, criminosos, por ser impossível produzir sem quebrar alguma norma ou regulamento governamental. Como o poder governamental é, acima de tudo, o poder de punir os criminosos, o governo, assim, adquire um enorme poder de barganha, vendendo favores através de esquemas cada vez mais corruptos. 

(Apesar da distância no tempo e no espaço, qualquer semelhança com o Brasil de hoje é pura coincidência…)

O governo não tem nenhum poder de barganha com o inocente: sua força advém do fato de que ele pode punir — aqueles que quebram suas leis. Se as leis forem mínimas e racionais, pouca gente as descumpre. Se os impostos forem baixos, pouca gente deixa de paga-los. Se existirem, porém, leis e impostos em grande quantidade e formarem um emaranhado indecifrável de normas e regulamentos de interpretação sempre obscura e questionável, todo mundo se torna facilmente criminoso e, portanto, passível de punição por parte do governo. Como é virtualmente impossível punir todo mundo, o governo seleciona aqueles que ele, sob a ameaça de punição, quer “enquadrar”. Faz chantagem com eles, é a expressão correta. 

Nesse quadro, começa a aparecer um desenvolvimento interessante e curioso, que fornece o elemento central do enredo do romance. Quando a pressão se torna perto de insuportável para um grande industrial, ele simplesmente desaparece sem deixar vestígio – tira o time de campo. Às vezes ele deliberadamente destroi sua indústria antes de partir, como o fez Ellis Wyatt, o magnata do petróleo. Outras vezes ele a deixa virtualmente intacta (como o faz Hank Rearden, o dono da siderúrgica), na certeza de que, sem ele, ela não vai durar muito. Gradativamente vai se mostrando que esses desaparecimentos não são atos de covardia individuais, sem coordenação, mas, sim, parte de uma greve muito bem organizada dos empresários realmente competentes e produtivos, dos quais depende a economia nacional — greve inicialmente pequena, mas que ganha momento e começa a preocupar não só os empresários que ainda não aderiram, mas o próprio governo que, pouco a pouco, percebe que a economia está entrando em colapso.

O objetivo da greve é mostrar ao mundo quem sai realmente perdendo quando quem entra em greve… As greves tradicionais, feitas pelos trabalhadores contra os empresários (especialmente do setor industrial), tentam mostrar que os trabalhadores são os reais produtores, a fonte real da riqueza dos empresários industriais, que os exploram, retendo para si a “parte do leão” do preço de venda dos produtos (a “mais valia”). A greve dos empresários industriais procura mostrar que eles são os reais geradores de riquezas, fazendo dinheiro com sua capacidade criativa (suas idéias inovadoras) e produtiva (sua habilidade de transformar essas idéias em realidade, isto é, em produtos e serviços). Sem eles a maior parte dos trabalhadores não teria trabalho e literalmente morreria de fome (como frequentemente acontecia antes da era liberal-capitalista e aconteceu nos regimes comunistas). Os empresários industriais e demais empreendedores são, portanto, o Atlas que segura o mundo nos ombros. Ao entrar em greve, eles estão sacudindo os ombros e deixando o mundo literalmente ir para o brejo.

Resumindo e repetindo, Atlas Shrugged foi publicado pela Random House nos Estados Unidos. O livro foi publicado em Português, no Brasil, em 1987, trinta anos depois de sua publicação nos Estados Unidos, sob o título Quem é John Galt? A tradução é de Paulo Henriques Britto e a publicação foi feita pela Editora Expressão e Cultura, do Rio de Janeiro. Tenho duas cópias dessa tradução, uma em um volume, dentro de uma caixinha de papelão, e outra em dois volumes. Esgotada essa edição brasileira, uma nova edição está sendo preparada pela Editora Sextante, com uma revisão do texto.

[** Este segundo capítulo é uma versão revista e atualizada de um artigo que publiquei neste blog em 05/10/2007, cinco dias antes do quinquagésimo aniversário da publicação do livro em Inglês. Seu endereço é: https://liberal.space/2007/10/05/50-anos-de-atlas-shrugged/%5D

III. Trecho de A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged) (***)

O trecho abaixo é longo. É parte de A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged).

Transcrevo segundo o texto da tradução brasileira de Paulo Henriques Britto (com pequenas modificações minhas), originalmente publicada sob o título Quem é John Galt? e, atualmente, sob o título A Revolta de Atlas. A primeira edição foi publicada em um volume pela Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1987, e a segunda, em três volumes, pela Editora Sextante, São Paulo, 2010. O texto é basicamente o mesmo nas duas edições, com pequenas correções e melhorias.

A maior parte do trecho é uma explicação, por parte de um ex-empregado, do porquê da falência da fábrica (Twentieth-Century Motors / Motores Século Vinte) em que ele trabalhava. Trata-se, naturalmente, de uma obra de ficção.

Como disse, o texto é o da tradução brasileira, com pequenas modificações minhas, e foi retirado das pp. 510-515 da primeira edição e das pp. 343-353 do segundo volume da segunda edição. Forneço a indicação do número das páginas da segunda edição.

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[p.343]

— Bem, foi uma coisa que aconteceu na fábrica onde trabalhei durante 20 anos. Foi quando o velho morreu e os herdeiros tomaram conta. Eles eram três, dois filhos e uma filha, e inventaram um novo plano para administrar a fábrica. Deixaram a gente votar, também, para aceitar ou não o plano, e todo mundo, quase todo mundo, votou a favor. A gente não sabia, pensava que fosse bom. Não, também não é bem isso, não. A gente pensavam que queriam que a gente achasse que era bom. O plano era o seguinte: cada um trabalhava conforme sua capacidade, e recebia conforme sua necessidade.

. . .

— Aprovamos o tal plano numa grande assembleia. Nós éramos 6 mil, todo mundo que trabalhava na fábrica. Os herdeiros do velho Starnes fizeram uns discursos compridos, e ninguém entendeu muito bem, mas ninguém fez nenhuma pergunta. Ninguém sabia como é que o plano ia funcionar, mas cada um achava que o outro

[p.344]

sabia. E quem tinha dúvida se sentia culpado e não dizia nada, porque, do jeito que os herdeiros falavam, quem fosse contra era desumano e assassino de criancinhas. Disseram que esse plano ia concretizar um nobre ideal. Como é que a gente podia saber? Não era isso que a gente ouvia a vida toda dos pais, professores e pastores, em todos os jornais, filmes e discursos políticos? Não diziam sempre que isso era o certo e o justo?

. . .

— Bem, pode ser que a gente tenha alguma desculpa para o que fez naquela assembleia. O fato é que votamos a favor do plano, e o que aconteceu conosco depois foi merecido.

A senhora sabe, nós que trabalhamos lá na Século XX durante aqueles quatro anos, somos homens marcados. O que dizem que o inferno é? O mal, o mal puro, nu, absoluto, não é? Pois foi isso que a gente viu e ajudou a fazer, e acho que todos nós estamos malditos, e talvez nunca mais vamos ter perdão. . .

A senhora quer saber como funcionou o tal plano, e o que aconteceu com as pessoas? É como derramar água dentro de um tanque em que há um cano no fundo puxando mais água do que entra, e cada balde que a senhora derrama lá dentro o cano alarga mais um bocado, e quanto mais a senhor trabalha, mais exigem da senhora, e no fim a senhora está despejando baldes 40 horas por semana, depois 48, depois 56, para o jantar do vizinho, para a operação da mulher dele, para o sarampo do filho dele, para a cadeira de rodas da mãe dele, para a camisa do tio dele, para a escola do sobrinho dele, para o bebê do vizinho, para o bebê que ainda vai nascer, para todo mundo à sua volta, tudo é para eles, desde as fraldas até as dentaduras, e só o trabalho é seu, trabalhar da hora em que o sol nasce até escurecer, mês após mês, ano após ano, ganhando só suor, o prazer só deles, durante toda a sua vida, sem descansar, sem esperança, sem fim. . .

De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade.

. . .

— Nós somos uma grande família, todo mundo, é o que nos diziam, estamos todos no mesmo barco. Mas não é todo mundo que passa 10 horas com um maçarico na mão, nem todo mundo que fica com dor de barriga ao mesmo tempo. Capacidade de quem? Necessidade de quem, quem tem prioridade? Quando é tudo uma coisa só, ninguém pode dizer quais são as suas necessidades, não é? Senão qualquer um pode dizer que necessita de um iate, e se só o que conta são os sentimentos dele, ele acaba até provando que tem razão. Por que não? Se eu só tenho o direito de ter carro depois que eu trabalhei tanto que fui parar no hospital, depois de garantir um carro para todo vagabundo e todo selvagem nu do mundo, por que ele não pode exigir de mim um iate também, se eu ainda tenho a capacidade de trabalhar? Não pode? Então ele não pode exigir que eu tome meu café sem leite até ele conseguir pintar a sala de visitas dele? Pois é. . . .

Mas então decidiram que ninguém tinha o direito de julgar suas próprias

[p.345]

capacidades e necessidades. Tudo era resolvido na base da votação. Sim, senhora, tudo era votado em assembleia duas vezes por ano. Não tinha outro jeito, não é? E a senhora imagina o que acontecia nesses eventos? Bastou a primeira para a gente descobrir que todo mundo tinha virado mendigo — mendigos esfarrapados, humilhados, todos nós, porque nenhum homem podia dizer que fazia jus a seu salário, não tinha direitos nem fazia jus a nada, não era dono de seu trabalho, o trabalho pertencia à ‘família’, e ela não lhe devia nada em troca, a única coisa que cada um tinha era a sua ‘necessidade’, e aí tinha que pedir em público que atendessem às suas necessidades, como qualquer parasita, enumerando todos os seus problemas, até os remendos na calça e os resfriados da esposa, na esperança de que a ‘família’ lhe jogasse uma esmola. O jeito era chorar miséria, porque era a sua miséria, e não o seu trabalho, que agora era a moeda corrente de lá.

Assim, a coisa virou um concurso de misérias disputado por 6 mil pedintes, cada um chorando mais miséria que o outro. Não tinha outro jeito, não é? A senhora imagina o que aconteceu, que tipo de homem ficava calado, com vergonha, e que tipo de homem levava a melhor?

. . .

— Mas tem mais. Mais uma coisa que a gente descobriu na mesma assembleia. A produção da fábrica tinha caído 40 por cento naquele primeiro semestre, e então concluiu-se que alguém não tinha usado toda a sua ‘capacidade’. Quem? Como descobrir? A ‘família’ também decidia isso no voto. Escolhiam no voto quais eram os melhores trabalhadores, e esses eram condenados a trabalhar mais, fazer hora extra todas as noites durante os seis meses seguintes. E sem ganhar nada a mais, porque a gente ganhava não por tempo nem por trabalho, e sim conforme a necessidade.

Será que preciso explicar o que aconteceu depois disso? Explicar que tipo de criaturas nós fomos virando, nós que antes éramos seres humanos? Começamos a esconder toda a nossa capacidade, trabalhar mais devagar, ficar de olho para ter certeza de que a gente não trabalhava mais depressa nem melhor do que o colega ao nosso lado. Tinha que ser assim, pois a gente sabia que quem desse o melhor de si para a ‘família’ não ganhava elogio nem recompensa, mas castigo. Sabíamos que para cada imbecil que estragasse um motor e desse um prejuízo para a fábrica — ou por desleixo, porque não tinha nenhum motivo para caprichar, ou por pura incompetência — quem ia ter que pagar era a gente, trabalhando de noite e no domingo. Por isso, a gente se esforçava o máximo para ser o pior possível.

Tinha um garoto que começou todo empolgado com o nobre ideal, um garoto muito vivo, sem instrução, mas um crânio. No primeiro ano ele inventou um processo que economizava milhares de homens-hora. Deu de mão beijada a descoberta dele para a ‘família’, não pediu nada em troca, nem podia, mas não se incomodava com isso. ‘Era tudo pelo ideal’, dizia ele. Mas, quando foi eleito um dos mais capazes e condenado a trabalhar de noite, ele fechou a boca e o cérebro. No ano seguinte, é claro, não teve nenhuma ideia

[p.346]

brilhante.

A vida inteira nos ensinaram que os lucros e a competição tinham um efeito nefasto, que era terrível um competir com o outro para ver quem era melhor, não é?

. . .

Pois deviam ver o que acontecia quando um competia com o outro para ver quem era o pior.

Não há maneira melhor de destruir um homem do que obrigá-lo a tentar NÃO fazer o melhor de que é capaz, a se esforçar por fazer o pior possível, dia após dia. Isso mata mais depressa do que a bebida, a vadiagem, a vida de crime. Mas para nós a única saída era fingir incompetência. A única acusação que temíamos era a de que tínhamos capacidade. A capacidade era como uma hipoteca que nunca se termina de pagar.

E trabalhar para quê? A gente sabia que o mínimo para a sobrevivência era dado a todo mundo, quer trabalhasse quer não, a chamada ‘ajuda de custo para moradia e alimentação’, e mais do que isso não se tinha como ganhar, por mais que se esforçasse. Não se podia ter certeza de que seria possível comprar uma muda de roupas no ano seguinte — a senhora podia ou não ganhar uma ‘ajuda de custo para vestimentas’, dependendo de quantas pessoas quebrassem a perna, precisassem ser operadas, ou tivessem mais filhos. E, se não havia dinheiro para todo mundo comprar roupas, então a senhora também ficava sem roupa nova.

Havia um homem que tinha passado a vida toda trabalhando até não poder mais, porque queria que seu filho fizesse faculdade. Pois bem, o garoto terminou o secundário no segundo ano de vigência do plano, mas a ‘família’ não quis dar ao homem uma ‘ajuda de custo’ para pagar a faculdade do filho. Disseram que o filho só ia poder entrar para a faculdade quando houvesse dinheiro para os filhos de todos entrarem para a faculdade — e, para isso, era preciso primeiro pagar o ensino médio dos filhos de todos, e não havia dinheiro nem para isso. O homem morreu no ano seguinte, numa briga de faca num bar, uma briga sem motivo. Brigas desse tipo estavam se tornando cada vez mais comum entre nós.

Havia um sujeito mais velho, um viúvo sem família, que tinha um hobby: colecionar discos. Acho que era a única coisa de que ele gostava na vida. Antes, ele costumava ficar sem almoçar para ter dinheiro para comprar mais um disco clássico. Pois não lhe deram nenhuma ‘ajuda de custo’ para comprar discos — disseram que aquilo era ‘luxo pessoal’. Mas, naquela mesma assembleia, votaram a favor de dar para uma tal de Millie Bush, filha de alguém, uma garotinha de oito anos feia e má, um aparelho de ouro para corrigir seus dentes — isto era uma ‘necessidade médica’, porque o psicólogo da empresa disse que a coitadinha ia ficar com complexo de inferioridade se seus dentes não fossem endireitados. O velho que gostava de música passou a beber. Chegou a um ponto em que nunca mais era visto sóbrio. Mas parece que uma coisa ele nunca esqueceu. Uma noite, ele vinha cambaleando pela rua quando viu a tal da Millie Bush, então lhe deu um soco que lhe quebrou todos os dentes da menina. Todos.

. . .

— A bebida, naturalmente, era a solução para a qual todos nós apelávamos, uns

[p.347]

mais, outros menos. Não me pergunte onde é que achávamos dinheiro para isso. Quando todos os prazeres decentes são proibidos, sempre se dá um jeito de gozar os prazeres que não prestam. Ninguém arromba mercearias à noite nem rouba o colega para comprar discos clássicos nem caniços de pesca, mas, se é para tomar um porre e esquecer, faz-se de tudo. Caniços de pesca? Armas para caçar? Máquinas fotográficas? Hobbies? Não havia ‘ajuda de custo de entretenimento’ para ninguém. O lazer foi a primeira coisa que cortaram. Pois a gente não deve ter vergonha de reclamar quando alguém pede para abrirmos mão de uma coisa que nos dá prazer? Até mesmo a nossa ‘ajuda de custo de fumo’ foi racionada a ponto de só recebermos dois maços de cigarro por mês — e isso, diziam eles, porque o dinheiro estava indo para o fundo do leite dos bebês.

Os bebês eram o único produto que havia em quantidades cada vez maiores — porque as pessoas não tinham outra coisa para fazer, imagino, e porque não tinham que se preocupar com os gastos da criação dos bebês, já que eram uma responsabilidade da ‘família’. Aliás, a melhor maneira de conseguir um aumento e poder ficar mais folgado por uns tempos era ganhar uma ‘ajuda de custo para bebês’ — ou isso ou arranjar uma doença séria.

. . .

— Bom, não demorou muito para a gente entender como a coisa funcionava. Todo aquele que resolvia agir certinho tinha que se abster de tudo. Tinha que perder toda a vontade de gozar qualquer prazer, não gostar de fumar um cigarro nem mascar um chiclete, porque alguém podia ter uma necessidade maior do dinheiro gasto naquele cigarro ou chiclete. Sentia vergonha cada vez que engolia uma garfada de comida, pensando em quem tinha tido que trabalhar de noite para pagar aquela garfada, sabendo que o alimento que comia não era seu por direito, sentindo a vontade infame de ser trapaceado ao invés de trapacear, de ser um pato, e não um sanguessuga. Não podia ajudar os pais, para não colocar um fardo mais pesado sobre os ombros da ‘família’. Além disso, se ele tivesse um mínimo de senso de responsabilidade, não podia se casar nem ter filhos, pois não podia planejar nada, prometer nada, contar com nada.

Mas os indolentes e irresponsáveis se deram bem. Arranjaram filhos, seduziram moças, trouxeram todos os parentes imprestáveis que tinham, todas as irmãs solteiras grávidas, para receber uma ‘ajuda de custo de doença’, inventaram todas as doenças possíveis, sem que os médicos pudessem provar a fraude, estragaram suas roupas, seus móveis, suas casas — pois não era a ‘família’ que estava pagando? Descobriram muito mais ‘necessidades’ do que os outros, desenvolvendo um talento especial para isso, a única capacidade que demonstraram.

Deus me livre!

. . .

— A senhora entende? Compreendemos que nos tinham dado uma lei, uma lei MORAL, segundo eles, que punia quem a observava — pelo fato de a observar. Quanto mais a senhora tentava seguir essa lei, mais sofria; quanto mais a violava, mais lucrava.

[p.348]

A sua honestidade era como um instrumento nas mãos da desonestidade do próximo. Os honestos pagavam, e os desonestos lucravam. Os honestos perdiam, os desonestos, ganhavam. Com esse tipo de padrão do que é certo e errado, por quanto tempo os homens poderiam permanecer honestos? No começo éramos pessoas bem honestas, e só havia uns poucos aproveitadores. Éramos competentes, nos orgulhávamos do nosso trabalho, e éramos funcionários da melhor fábrica do país, para a qual o velho Starnes só contratava a nata dos trabalhadores. Um ano depois da implantação do plano não havia mais um homem honesto entre nós. Era ISSO o mal, o horror infernal que os pregadores usavam para assustar os fiéis, mas que a gente nunca imaginava ver em vida. A questão não foi que o plano estimulasse uns poucos corruptos, e sim que ele corrompia pessoas honestas, e o efeito não podia ser outro — e era isso que chamavam de ideia moral!

Queriam que trabalhássemos em nome de quê? Do amor pelos nossos irmãos? Que irmãos? Os parasitas, os sanguessugas que víamos ao redor? E se eles eram desonestos ou se eram incompetentes, se não tinham vontade ou não tinham capacidade de trabalhar — que diferença fazia para nós? Se estávamos presos para o restante da vida àquele nível de incompetência, fosse verdadeiro ou fingido, por quanto tempo nos daríamos ao trabalho de seguir em frente?

. . .

— Não tínhamos como saber qual era a verdadeira capacidade deles, não tínhamos como controlar suas necessidades — só sabíamos que éramos burros de carga lutando às cegas num lugar que era meio hospital, meio curral — um lugar onde só incentivavam a incompetência, as catástrofes, as doenças — burros de carga que só serviam às necessidades que os outros afirmavam ter.

Amor fraternal? Foi então que aprendemos, pela primeira vez na vida, a odiar nossos irmãos. Começamos a odiá-los por cada refeição que faziam, cada pequeno prazer que gozavam, a camisa nova de um, o chapéu da esposa de outro, o passeio que um dava com a família, a reforma que o outro fazia na casa — tudo aquilo era tirado de nós, era pago pelas nossas privações, nossas renúncias, nossa fome.

Um começou a espionar o outro, cada um tentando flagrar o outro em alguma mentira sobre suas necessidades, para cortar sua ‘ajuda de custo’ na assembleia seguinte. Começaram a surgir delatores, que descobriam que alguém tinha comprado às escondidas um peru para a família num domingo qualquer, provavelmente com o dinheiro que ganhara no jogo. Começamos a nos meter um na vida do outro. Provocávamos brigas de família, para conseguir que os parentes de alguém saíssem da lista de beneficiados. Toda vez que víamos algum homem começando a namorar uma moça, tornávamos a vida dele um inferno. Fizemos muitos noivados se romperem. Não queríamos que ninguém se casasse, não queríamos mais dependentes para alimentar.

Antes, comemorávamos quando alguém tinha filho, todo mundo contribuía para ajudar a pagar a conta do hospital, quando os pais estavam sem dinheiro. Nessa época, quando nascia uma criança,

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ficávamos semanas sem falar com os pais. Para nós, os bebês eram o que os gafanhotos são para os fazendeiros: uma praga.

Antes, ajudávamos quem tinha doente na família. Depois . . .

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— Bom, vou contar apenas um caso para a senhora. Era a mãe de um homem que trabalhava conosco havia quinze anos, uma senhora simpática, alegre e sábia, conhecia todos nós pelo primeiro nome, todos nós gostávamos dela antes. Um dia ela escorregou na escada do porão, caiu e quebrou a bacia. Nós sabíamos o que isso representava para uma pessoa daquela idade. O médico disse que ela teria que ser internada, para fazer um tratamento caro e demorado. A velha morreu na véspera do dia em que ia ser levada para o hospital. Ninguém nunca explicou a causa da morte dela. Não, não sei se foi assassinada. Ninguém disse isso. Não se comentava nada sobre o assunto. A única coisa que sei — e disso nunca vou me esquecer — é que eu, também, quando dei por mim, estava rezando para que ela morresse. Que Deus nos perdoe! Eram essas a fraternidade, a segurança, a abundância que nos haviam prometido com a adoção do plano.

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— Bem, quando a gente via isso, entendia qual era a motivação verdadeira de todo mundo que já pregou o princípio ‘de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade’. Esse era o segredo da coisa. De início, eu não entendia como é que os homens instruídos, cultos e famosos do mundo podiam cometer um erro como esse e pregar que esse tipo de abominação era direito quando bastavam cinco minutos de reflexão para verem o que aconteceria quando alguém tentasse pôr em prática essa ideia. Agora sei que eles não defendiam isso por erro. Ninguém comete um erro desse tamanho inocentemente. Quando os homens defendem alguma loucura malévola, quando não têm como fazer essa ideia funcionar na prática e não têm um motivo que possa explicar essa sua escolha, então é porque não querem revelar o verdadeiro motivo.

E nós também não éramos tão inocentes assim, quando votamos a favor daquele plano na primeira assembleia. Não fizemos isso só porque acreditávamos naquelas besteiradas que eles vomitavam. Nós tínhamos outro motivo, mas as besteiradas nos ajudavam a escondê-lo dos outros e de nós mesmos, nos ofereciam uma oportunidade de dar a impressão de que era virtude algo que tínhamos vergonha de assumir. Cada um que aprovou o plano achava que, num sistema assim, conseguiria faturar em cima dos lucros dos homens mais capazes. Cada um, por mais rico e inteligente que fosse, achava que havia alguém mais rico e mais inteligente, e que esse plano lhe daria acesso a uma fatia da riqueza e da inteligência dos que eram melhores que ele. Mas enquanto ele pensava que ia ganhar aquilo que ele não merecia e que cabia aos que lhe eram superiores, ele esquecia os homens que lhe eram inferiores e que também iam ganhar aquilo que não mereciam. Ele esquecia os inferiores que iam querer roubá-lo tanto quanto ele queria roubar seus superiores. O trabalhador que gostava de pensar que suas necessidades lhe davam o direito de ter uma limusine igual à do patrão se esquecia de que todo vagabundo e mendigo do mundo viria gritando que as necessidades deles lhes davam o direito de ter uma geladeira igual à do trabalhador. Era ESSE o nosso motivo para aprovar o plano, na verdade, mas não gostávamos de pensar nisso. E então, quanto mais a ideia nos desagradava, mais alto gritávamos que éramos a favor do bem comum.

Bem, tivemos o que merecíamos. Quando vimos o que havíamos pedido, era tarde demais. Havíamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram aguentar muito

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tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados. E os poucos que ainda valiam alguma coisa eram aqueles que já estavam lá havia muito tempo.

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— Antigamente, ninguém pedia demissão da Século XX, e a gente não conseguia se convencer de que a companhia não existia mais. Depois de algum tempo, não podíamos mais pedir demissão porque nenhum outro empregador nos aceitaria — aliás com razão. Ninguém queria ter qualquer tipo de relacionamento conosco, nenhuma pessoa nem firma respeitável. Todas as pequenas lojas com as quais negociávamos começaram a sair de Starnesville depressa, e no fim só restavam bares, cassinos e salafrários que nos vendiam porcarias a preços exorbitantes. As esmolas que recebíamos eram cada vez menores, mas o custo de vida subia. A lista dos necessitados da fábrica não parava de aumentar, mas a quantidade de fregueses diminuía. Havia cada vez menos renda para dividir entre cada vez mais pessoas.

Antes, dizia-se que a marca da Século XX era tão confiável quanto a marca de quilates num lingote de ouro. Não sei o que pensavam os herdeiros do velho Starnes, se é que pensavam alguma coisa, mas imagino que, como todos os planejadores sociais e selvagens, eles achavam que essa marca era um selo mágico que tinha um poder sobrenatural que os manteria ricos, tal como enriquecera seu pai. Mas quando nossos fregueses começaram a perceber que nunca conseguíamos entregar uma encomenda dentro do prazo, nem produzir um motor que não tivesse algum defeito, o selo mágico passou a ter o valor oposto: as pessoas não queriam um motor, nem se ele fosse dado, se ostentasse o selo da Século XX.

E no final nossos fregueses eram todos do tipo que nunca pagam o que devem, e nunca têm nem mesmo a intenção de pagar.

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— No entanto, Gerald Starnes, dopado por sua própria publicidade, ficava todo empertigado, com ar de superioridade moral, exigindo que os empresários comprassem nossos motores, não porque fossem bons, mas porque tínhamos muita NECESSIDADE de encomendas.

Àquela altura, qualquer imbecil já podia ver o que gerações de professores não haviam conseguido enxergar. De que adiantaria nossa necessidade, para uma usina, quando os geradores paravam porque nossos motores não funcionavam direito? De que ela adiantaria para um paciente sendo operado, quando faltasse luz no hospital? De que adiantaria para os passageiros de um avião, quando as turbinas pifassem em pleno voo? E se eles comprassem nossos produtos não por causa do seu valor, mas por causa de nossa necessidade, isso seria correto, bom, moralmente certo para o dono daquela usina, o cirurgião daquele hospital, o fabricante daquele avião?

Pois essa era a lei moral que os professores e líderes e pensadores queriam estabelecer por todo o mundo. Se era este o resultado quando ela era

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aplicada numa única cidadezinha onde todos se conheciam, a senhora pode imaginar o que aconteceria em escala mundial? Pode imaginar o que aconteceria se a senhora tivesse de viver e trabalhar afetada por todos os desastres e toda a malandragem do mundo? Trabalhar — e quando alguém cometesse um erro em algum lugar, a senhora é que teria de pagar. Trabalhar — sem jamais ter perspectivas de melhorar de vida, sendo que suas refeições, suas roupas, sua casa e seu prazer estariam à mercê de qualquer trapaça, de qualquer problema de fome ou de peste em qualquer parte do mundo. Trabalhar, sem nenhuma perspectiva de ganhar uma ração extra enquanto os cambojanos não tivessem sido alimentados e os patagônios não tivessem todos feito faculdade. Trabalhar, tendo cada criatura no mundo um cheque em branco na mão, gente que a senhora nunca vai conhecer, cujas necessidades a senhora jamais vai saber quais são, cuja capacidade, preguiça, desleixo e desonestidade são coisas de que a senhora jamais vai ter ciência nem terá o direito de questionar — enquanto as Ivys e os Geralds da vida resolvem quem vai consumir o esforço, os sonhos e os dias de sua vida. E é ESSA lei moral que se deve aceitar? ISSO é um ideal moral?

. . .

— Olhe, nós tentamos — e aprendemos. Nossa agonia durou quatro anos, da nossa primeira assembleia à última, e acabou da única maneira que podia acabar: com a falência da companhia. Na nossa última assembleia, foi Ivy Starnes que tentou manter as aparências. Fez um discurso curto, vil e insolente, dizendo que o plano havia fracassado porque o restante do país não aceitara que uma única comunidade poderia ter sucesso no meio de um mundo egoísta e ganancioso, e que o plano era um ideal nobre, mas que a natureza humana não era suficientemente boa para que ele desse certo.

Um rapaz — o mesmo que fora punido por dar uma boa ideia no primeiro ano – se levantou, enquanto todos os outros permaneciam calados, e se dirigiu até Ivy Starnes, que estava no tablado. Sem dizer nada, ele cuspiu na cara dela. Foi assim que acabaram o nobre plano e a Século XX.

[*** Este texto foi originalmente publicado em 1998, em meu site Ayn Rand, no endereço http://aynrand.com.br, que não existe mais. (Atualmente esse endereço remete a este blog, Ayn Rand Space). Depois o texto foi transcrito em meu blog Liberal Space em 17/05/2005, no endereço https://liberal.space/2005/05/17/trecho-de-atlas-shrugged-quem-e-john-galt/. Ele foi ainda republicado, com pequenas correções e revisões, para ficar fiel à segunda edição da obra, no mesmo blog em 22/12/2014 no endereço https://liberal.space/2014/12/22/excerto-de-a-revolta-de-atlas-obra-de-ayn-rand/.]

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O presente artigo, em três seções, foi composto de material pré-existente, mas revisto, já publicado neste blog, e republicado aqui em Salto, 1 de Junho de 2016.