A Interferência do Estado na Vida Privada: O Casamento

Li um artigo de capa interessante sobre o divórcio na revista semanal Newsweek que está nas bancas dos Estados Unidos esta semana. No que segue vou tecer algumas considerações sobre a interferência no estado na vida privada, especificamente, no casamento (e no seu término mediante o divórcio). O artigo da Newsweek serve apenas de pretexto (mas é interessante: recomendo a leitura, e espero que ele apareça na edição internacional que é vendida nas bancas brasileiras).

Antes de o divórcio ser legal no Brasil — foi parcialmente legalizado em 1977, em decorrência dos esforços do senador Nelson Carneiro e de um clima de opinião mais liberal — era complicado se separar legalmente do cônjuge e mais complicado ainda casar-se, legalmente, em novas núpcias, com outro. Para falar a verdade, o novo casamento, do ponto de vista legal, mais do que complicado, era impossível. Havia a instituição do desquite, que era uma dissolução da sociedade conjugal. Mas o desquite impedia que os desquitados se casassem de novo.

Fico imaginando qual teria sido a justificativa de quem criou essa instituição de permitir a dissolução legal do casamento mas de impedir que aqueles que tiveram seu casamento dissolvido se casassem de novo. Parece pura maldade, sadismo. Provavelmente a justificativa deve ser buscada nos livros de direito canônico da Igreja Católica, que, a despeito do que digam as leis do país, considera o casamento indissolúvel (num plano quase metafísico), de modo que um novo casamento, mesmo que admitido pela lei local, seria, para a igreja, sempre adúltero. (Lembram-se do Evangelho? Se alguém casou várias vezes nesta vida, com quem ficará casado na vida futura? Grande dilema para quem acredita na existência de uma outra vida depois desta…)

Houve tempo, aqui no Brasil, em que, para obter o desquite, uma das partes (a “insatisfeita”) tinha de provar que a outra havia faltado com seus deveres conjugais — ou por infidelidade [fato que, uma vez comprovado, não pode ser corrigido], ou por se recusar a manter relações sexuais [fato que, aparentemente, pode ser corrigido a qualquer momento pelo retorno ao cumprimento desse presumido “dever conjugal”], ou por violência doméstica, ou seja, maltratos físicos ou psicológicos que tornavam a continuidade da convivência no matrimônio inviável. Nessa época não havia a possibilidade de os cônjuges, consensualmente, concluírem que, tudo bem, foi bom enquanto durou, mas daqui para frente cada um de nós quer voltar a ser livre. O “desquite por mútuo consentimento” não existia ainda (veio, evidentemente, a existir depois).

Como não havia “desquite por mútuo consentimento”, a iniciativa do desquite era sempre, unilateralmente, de um dos cônjuges (o cônjuge “insatisfeito”, ou, digamos, mais insatisfeito), que “pedia” o desquite ao outro. A decisão de separar era, portanto, em geral, unilateral. O outro podia decidir conceder o desquite, admitindo a culpa, ou, então, negar a culpa, recusando-se a conceder o desquite, assim complicando a vida do parceiro insatisfeito. Todo desquite, nessa época, era judicial, mesmo que nem todos fossem exatamente litigiosos.

Quando, no Brasil, surgiu o “desquite por mútuo consentimento”, mediante simples decisão das partes, as coisas se simplificaram consideravelmente — embora a restrição ao segundo casamento houvesse sido mantida. Agora não era mais necessário provar que o outro cônjuge havia descumprido seus deveres conjugais caso ele (o outro cônjuge) se resignasse a não contestar o pedido. Mesmo que, na realidade, não houvesse consenso, e apenas um dos dois desejasse o desquite, a decisão do cônjuge não solicitante de não contestar o pedido do outro tornava o desquite consensual (ou “amigável”, como era geralmente chamado no dia-a-dia).

Se o cônjuge não solicitante decidisse contestar o pedido de desquite, isto é, não concordar com ele, o desquite só aconteceria de fosse litigioso. Neste caso, cada uma das partes tentaria convencer o juízo da justeza de seu pleito.

A propósito, informa a Folha de S. Paulo de hoje, 17/4: “O Parlamento português aprovou ontem (16/4), graças à maioria socialista da Casa, lei que permite o divórcio mesmo que não haja consentimento mútuo do casal. Com a nova lei será possível pedir o divórcio baseado em alegações de prática de violência doméstica, entre outros casos que, independentemente da culpa dos membros do casal, mostrem a ruptura do matrimônio”. Gozado: depois de instituído o divórcio consensual, o estado regulamenta o divórcio não-consensual…

No Brasil, a mudança constitucional de 1977 instituiu o divórcio consensual, com direito a um novo casamento — mas o tornou aplicável apenas uma vez… Além disso, o divórcio devia ser ser precedido do desquite (agora rebatizado de “separação judicial”, que continuava a ser tanto consensual como litigiosa), ou então da comprovação de uma separação de fato, e, adicionalmente, de um intervalo, fixado em lei, entre o decreto do desquite, ou o início da separação de fato, e o requerimento da conversão do desquite ou da separação de fato em divórcio. Felizmente a atual Constituição Federal veio a remover a maior parte desse besteirol.

Forneço esses detalhes para ilustrar os extremos da interferência do estado na vida privada. A questão que quero levantar é esta: por que o estado imagina ter o direito de se arvorar em árbitro ou, pelo menos, sancionador de decisões que são totalmente privadas, como é o caso da decisão de se casar ou de encerrar o vínculo matrimonial? Não deveria ser o casamento um contrato totalmente privado, já devidamente regulamentado no Código Civil junto com qualquer outro contrato? Neste caso, o contrato conteria provisões sobre as condições em que poderia ser dissolvido.

Quando alguém deseja contratar uma pessoa para trabalhar em sua casa, faz um contrato. Quando dois ou mais querem estabelecer uma sociedade para fins comerciais, fazem um contrato (que estipula em que condições um dos signatários pode sair, sem que a sociedade se dissolva, ou em que condições a sociedade pode ser dissolvida). Por que não podemos fazer contratos conjugais sem que o estado meta o bedelho?

Alega-se que, como o casamento pode produzir união de bens (total ou parcial) e pode produzir filhos, que se tornam herdeiros desses bens, o casamento é uma instituição social em que o estado deve interferir, regulamentando as condições em que pode ocorrer e em que pode ser dissolvido. O argumento não me convence nem um pouco. Sociedades comerciais também interferem com a propriedade e sua propriedade pode ser transmitida a herdeiros, e nem por isso se defende a tese de que devam ser regulamentadas pelo estado como o é o casamento (mesmo que, também aqui, o estado já tenha metido o seu indesejável bedelho em um grau considerável).

Por que o estado tem de defender a monogamia? Estive nos Estados Unidos há poucos dias e na televisão de lá não se fala em outra coisa além da eleição presidencial e do grupo polígamo que foi descoberto no Texas. Por que é que o estado tem o direito de considerar como crime um acordo perfeitamente aceitável entre as partes e do qual ninguém está reclamando (e, se vier a reclamar, pode fazê-lo com base na legislação de contratos e não numa legislação matrimonial específica?)

Por que o estado deve impedir que pessoas que claramente já são capazes de dar seu consentimento, mas estão abaixo de uma certa idade, se casem? A idade, no caso, parece ser hoje dezoito anos em quase todo lugar, mas já chegou a ser até mesmo 21 anos. Como, no episódio do Texas, aparentemente havia casos em que, com pleno consentimento dos pais, mas não do estado, moças menores de dezoito anos haviam se casado, e, o que é pior, se casado com quem já tinha esposa(s), agora os pais dessas moças menores estão todos perdendo a guarda de seus filhos (das próprias e de outros), porque haviam concordado com sua “exploração sexual” como menores”… Come on!

Quando pensamos em “estado mínimo” em geral o fazemos no contexto econômico, da interferência do estado na economia. Mas existe uma interferência do estado na vida privada, totalmente pessoal, que é mais indevida ainda.

Por que o estado deve ter o direito de determinar, como determinava no Brasil, que quem se casa uma vez não pode, ainda que se separe legalmente, contrair outro casamento legal?

Por que o estado deve ter o direito de determinar, como determina agora, que eu posso me casar e me separar quantas vezes quiser, desde que seja “em série”, e não “em paralelo”? Se, aqui no Brasil e nos Estados Unidos, em que aparentemente falta homem para tanta mulher, mais de uma mulher concorda em se casar com o mesmo homem, deve o estado ter o direito de decretar que isso é ilegal, taxando de criminosos os que assim procedem?

E se, na China, onde falta mulher para tanto homem (as razões são sobejamente conhecidas), mais de um homem concorda em se casar com a mesma mulher, por que o estado deveria ter o direito de decretar que isso é ilegal? Hoje, com exames de DNA, é perfeitamente possível determinar de quem são os filhos, nesta última hipótese. (Hoje é triste ver a tentativa de arrumar noivas taiwanesas e coreanas para os homens chineses condenados ao celibato por causa da cultura e da lei daquele país, que privilegia o filho homem e ao mesmo tempo fixa o teto de um filho só por casal).

Por que o estado deve ter o direito de determinar que pessoas do mesmo sexo não podem se casar legalmente?

Basta começar a pensar nessas coisas para se verificar o absurdo que é a interferência do estado na vida privada. Nos Estados Unidos houve tempo em que o estado se achava no direito de proibir relações sexuais em posições que não a missionária, e ainda hoje há estados que possuem leis que proíbem sexo oral ou anal mesmo dentro de um casamento legal e ainda que os envolvidos estejam perfeitamente de acordo em se engajarem nessas práticas. (Como sexo em geral é coisa bastante privada, raramente observada por terceiros, as práticas criminosas, nesse caso, em geral só se revelam quando há uma separação, em cujo caso um dos cônjuges, em regra a mulher, acusa o outro de havê-lo obrigado ou constrangido a praticar atos, por hipótese ilegais, contra a sua vontade.)

Enfim… Acredito que me tornei liberal, lá nos idos dos anos sessenta, mais em função dessas intervenções do estado na vida privada do que em decorrência das intervenções do estado na vida econômica (que, hoje não tenho dúvida, deveria também ser totalmente privada). Foi a leitura de “Da Liberdade”, de John Stuart Mill, que me levou a aderir ao liberalismo político. A adesão ao liberalismo econômico (capitalismo) veio um pouquinho mais tarde. E só um pouco mais tarde, lendo Ayn Rand e von Hayek, vim a ter plena consciência de que Mill tergiversou em muitos pontos em sua defesa do liberalismo. Tudo bem: mas minha dívida histórica para com ele permanece.

Campinas, em 17 de Abril de 2008 [com revisão e pequenas alterações em 5 de Maio de 2008]

Uma resposta

  1. E aqui ainda tem outra lei, tio, de "união estável": se um casal, que não é casado, está junto por mais de quatro anos (não importa se eles são namorados ou "ficantes") a lei diz que passa a valer as condições de casados para eles em casos de separação ou morte. Meu tio que faleceu a dois anos estava namorando e vivendo junto com uma moça por uns 3 anos, e ela queria parte dos bens após a morte dele recorrendo a esta lei, mas o período não foi suficiente para o azar dela…

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  2. O problema Eduardo é que, como você diz (e bem) cada vez mais os Estados, laicos ou não, interferem na privacidade e na liberdade dos cidadãos a todos os níveis, invocando normalmente o liberalismo e a necessidade de regulamentar a democracia. Todos eles (ou quase) são, por seu lado amorais, imorais e hipócritas.
    Como é que os cidadãos poderão defender as suas liberdades públicas e privadas?
    Um abraço 

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