Itinerários de Aprendizagem e Trajetórias Intelectuais

O décimo sétimo artigo meu no Blog das Editoras Ática e Scipione foi publicado ontem. Vide a URL original: http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/itinerarios-de-aprendizagem-e-trajetorias-intelectuais 

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Li uma vez a história de um avô que passeava carregando a neta nos ombros. Ao encontrar um amigo, este resolveu brincar com a criança e elogiou-lhe o tamanho. Ao elogio a menina respondeu: “Bem, muito obrigado, mas nem tudo disso que o senhor vê sou eu”.

(Peguei essa história de terceira mão. Ela é mencionada no livro The Schools our Children Deserve: Moving Beyond Traditional Classrooms and “Tougher Standards”, de Alfie Kohn [Houghton Mifflin Company, New York, 1999, 2000], p. 333. O autor afirma que a ouviu contada pelo antropólogo Lionel Tiger, que dizia que o caso se passara com um não identificado professor e sua neta…).

Ao chegar perto de vinte artigos neste blog, lembrei-me da observação da menina, e concluí que ela é relevante aqui. Pouca coisa do que discuti aqui é ideia original minha. Ao especialista na área, isso ficará imediatamente evidente. Para o leigo no assunto, porém, isso deve ser clara e formalmente declarado – muito embora tenha, nos diversos artigos, feito referência a vários autores que me serviram de fonte e inspiração.

Nenhum trabalho intelectual é uma produção totalmente individual. Há dívidas com pessoas que já morreram, em alguns casos há muito tempo. E dívidas com pessoas ainda vivas.

Minha formação pessoal se deu, formalmente, na teologia e na filosofia. Tenho dívidas intelectuais enormes com alguns filósofos famosos, aos quais dediquei mais atenção em minha formação. Com nenhum deles concordo inteiramente, mas todos os que vou citar deixaram em mim influências marcantes.

Procurarei, aqui, fazer um breve relato de meu itinerário de aprendizagem, que define a minha trajetória intelectual. Primeiro falarei das influências de alguns grandes nomes da filosofia, todos eles já falecidos. Depois falarei dos vivos.

Comecemos no começo.

Sócrates, o mestre de Platão, sempre chamou minha atenção para os seguintes fatos:

Primeiro, como crianças, ideias são sempre concebidas em interação humana. Não nascem por geração espontânea.

Em segundo lugar, da mesma forma que a mulher que dá à luz uma criança frequentemente precisa da ajuda de um parteiro (ou obstetra), nós também precisamos de parteiros e obstetras intelectuais que nos ajudem a dar à luz as ideias que concebemos.

Em terceiro lugar, como a criança que nasce, nossas ideias precisam se desenvolver, o que novamente se dá através da interação humana, do diálogo, do embate de ideias, da discussão crítica.

O legado de Sócrates pode, portanto, ser resumido na seguinte frase: o foco da educação deve estar no aprendente: é sobre ele que deve brilhar a spotlight. A melhor metáfora a descrever a função do professor é “parteiro de ideias” – de ideias dos outros, bem entendido.

Aristóteles, aluno de Platão (por sua vez, discípulo de Sócrates), me marcou pela ênfase que deu ao fato de que as ideias que concebemos devem estar ancoradas na experiência e à necessidade de que, ao tratar essas ideias, respeitemos a lógica e razão. (Entendo a razão com o conjunto de procedimentos e métodos, que certamente incluem a lógica e o respeito à evidência, que impedem que nossos conceitos, juízos e decisões sejam totalmente arbitrários).

Aristóteles também me convenceu de que algumas de nossas ideias são objetivamente verdadeiras, e que o relativismo e o ceticismo se destroem a si próprios (são self-defeating, como se diz em inglês).

David Hume, o grande cético (não-radical, convenhamos) da época do Iluminismo, sobre quem escrevi minha tese de doutoramento em 1970-72, me ajudou a evitar o dogmatismo ao insistir que tudo, até mesmo nossa experiência sensorial, a lógica, a racionalidade e a crença na posse da verdade, deve ser encarado com certa dose de ceticismo.

Mas Hume não foi capaz de fazer de mim um cético total, nem um relativista, nem um descrente na experiência sensorial, na lógica, na razão e na existência da verdade.

Hume e seu melhor amigo, Adam Smith, foram, porém, capazes de me convencer de que existe algo que é apropriado chamar de natureza humana – que nunca se desrespeita impunemente, isto é, sem pagar um alto preço, especialmente quando se trata da organização da sociedade.

E os dois, mas principalmente Adam Smith, neste caso, me ajudaram a me tornar um liberal estilo clássico (mas nisso tiveram a ajuda de muitos outros, em especial de Ayn Rand).

Karl Popper, crítico de Hume em alguns aspectos, mas seguidor dele em outros, me ajudou a ver o processo de construção do conhecimento humano – incluindo o conhecimento científico – como algo hipotético, conjetural, falível, nunca final e definitivo, mas que não deixa de ser, por isso, objetivo e racional.

Popper ainda me ajudou a entender a continuidade que existe entre a ciência e o senso comum, bem como entre a ciência e a filosofia (ambas dependentes da razão crítica). Popper também me ajudou a entender porque a racionalidade crítica só pode prosperar numa sociedade aberta e livre.

Da mesma forma que Sócrates foi “avô intelectual” de Aristóteles, Popper foi o meu: ele foi orientador de doutorado do meu orientador de doutorado, William Warren Bartley III, falecido prematuramente.

Por fim, a minha influência maior, Ayn Rand, que, além de reforçar – de forma inigualável – os temas aristotélicos na filosofia do século 20, me fez ver algo que Popper já havia me mostrado: que a racionalidade só pode prosperar e frutificar em uma sociedade radicalmente aberta e livre, que valoriza o indivíduo e seus direitos, básicos e fundamentais, quais sejam: o direito à vida, o direito à liberdade (de expressão, locomoção, associação, contrato, e de busca da felicidade como ele a entender), e o direito à propriedade dos frutos do trabalho.

Com sua inestimável ajuda consegui integrar minha metafísica, minha epistemologia, minha ética, e minha filosofia política.

Em 5 de Fevereiro de 2005 o mundo racional e livre comemorou 100 anos do nascimento dessa grande filósofa e insuperável romancista, nascida na Rússia como Alyssa Zinovievna Rosenbaum, mas que cedo percebeu que não seria capaz de manter sua racionalidade numa sociedade sem liberdade, como era a sociedade russa depois da tomada do poder pelos comunistas em 1917, e, por isso, fugiu para os Estados Unidos, onde alcançou fama e sucesso e se tornou profundamente influente.

Esses filósofos são os principais pilares em cima dos quais minhas ideias e minha visão de mundo foram construídas. Mas ainda faltava integrar à minha visão de mundo a minha filosofia da educação.

Aqui, registro apenas uma influência estrangeira digna de nota.

John Dewey é, a meu ver, o maior filósofo da educação do século 20 (embora discorde dele em muitos pontos importantes) – talvez o maior desde Jean Jacques Rousseau, no século 18. Dewey me ajudou a perceber três aspectos essenciais da educação, que estão refletidos claramente nos artigos que escrevo neste blog.

Primeiro, a educação tem que ver com a criança, não com o professor, e, portanto, com a aprendizagem, não com o ensino.

Segundo, a educação é um processo natural de desenvolvimento humano, de “dentro para fora”, por assim dizer, não um processo artificial de imposição à criança, “de fora para dentro”, de um conjunto de informações e conhecimentos.

Terceiro, a forma mais eficaz e eficiente de ajudar a criança a aprender – e, portanto, de ajudá-la a se desenvolver – é respeitando, e não subjugando, seus interesses. Especialmente num contexto escolar, esse respeito se traduz na chamada aprendizagem ativa, que é promovida através da metodologia de projetos de aprendizagem (metodologia que foi introduzida no mundo pedagógico por um discípulo de Dewey, William Heard Kilpatrick).

O meu envolvimento com o Instituto Ayrton Senna a partir de 1999 me ajudou, de certo modo, a “traduzir” John Dewey para o contexto brasileiro atual, sem violar os demais elementos de minha visão filosófica, que acabei de ressaltar.

O meu envolvimento com o Instituto Lumiar me permitiu ver que o que penso não é utopia: a Escola Lumiar é, em sua concepção, e, espero, cada vez mais na sua prática, a escola mais próxima das ideias que tenho publicado neste blog que conheço.

Sou devedor a todas as pessoas mencionadas, e a muitas outras. Destaco, entre essas outras, dois amigos pessoais: Rubem Alves e Antonio Carlos Gomes da Costa (este, infelizmente, falecido recentemente, no último 5 de março). Dois magníficos educadores de estilos bastante diferentes.

Conheço Rubem Alves há quase cinquenta anos. Foi a Igreja Presbiteriana que nos aproximou. Estudamos no mesmo Seminário, em Campinas, ele um pouco antes de mim. Sofremos nas mãos das mesmas pessoas na igreja, na época do autoritarismo. Fomos para os Estados Unidos mais ou menos na mesma época, no final da década de sessenta. Estudamos em lugares diferentes, ele em Princeton, eu em Pittsburgh. Finalmente, trabalhamos juntos por longos anos na UNICAMP, no Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação. Foi por influência dele que eu vim para essa universidade, em 1974.

O Antonio Carlos fiquei conhecendo ao me envolver com o Instituto Ayrton Senna, no ano 2000. Ele foi o principal responsável pela construção do referencial teórico do Instituto: a noção de educação para o desenvolvimento humano. Foi também o grande introdutor no Brasil do conceito de protagonismo juvenil, que eu discuti no segundo artigo desta série: Educação centrada no aluno.

As principais ideias de ambos vêm se mesclando de tal forma com as que eu já trazia comigo que não sei o que estaria pensando hoje se, um dia, não tivesse tido o privilégio e a satisfação pessoal de me tornar amigo dos dois, embora com um intervalo de quase quarenta anos.

Há algum tempo escrevi que tinha um projeto pessoal de fazer com que os dois, o Rubem e o Antonio Carlos, se encontrassem pessoalmente. O Antonio Carlos me pregou uma peça. Foi embora antes.

O que apresento nos meus artigos aqui é a minha visão – visão que é fruto de minha ingestão, mastigação e digestão dos pontos de vista dessas muitas pessoas (e, desnecessário frisar, muitas outras). Mas esses pontos de vista, depois de devorados por mim, passaram a circular no meu sangue, e, por conseguinte, passaram a ser parte de mim: integraram-se à minha visão de mundo, ao meu DNA intelectual. O que se encontra aqui é minha opinião.

Encontrei uma referência a essa forma de “antropofagia” na excelente biografia de John Dewey escrita por Jay Martin, sob o títuloThe Education of John Dewey: A Biography (Columbia University Press, New York, 2002). Diz ele na p. 131:

“Sempre aberto às ideias dos outros, Dewey, no entanto, passava essas influências pelo crivo de seu pensamento e sentimento [i.e., de sua experiência] de modo a dar-lhes sentido e a transformá-las em algo seu, muito pessoal. Ele nunca se esqueceu de uma dívida intelectual ou pessoal significativa, em áreas que considerasse realmente importantes. Mas ele nunca permitiu que as várias ideias que o influenciaram ficassem separadas umas das outras, isoladas, como se ele fosse apenas um conjunto de espelhos que refletisse o pensamento dos outros. Ele armazenava tudo o que aprendia, mas, deixando de lado peculiaridades das fontes que o influenciaram, transformava as ideias dos outros em algo tipicamente seu”.

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Em São Paulo, 5 de Julho de 2011

3 responses

  1. Parabéns, por mais que as pessoas brilhem dentro de suas respectivas carreiras, formacão ou funcões que exercem, realmente, são devedoras de conhecimentos dos mestres anteriores e de uma equipe ajudante; tudo isto tão bem expresso na metáfora, que não só cabe aos professores, mas a todas formacões- “Parteiros de Idéias” . Peco, inclusive, desculpas pelo meu humilde comentário, pois não tenho nem formacão universitária, sou apenas alguém que admira e ïnveja”os sábios e o que mais tenho é a ânsia do saber. Obrigada por mais estes ensinamentos. Eunice.

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