O Novo não é o Velho Disfarçado: Transformando a Educação e Desprivilegiando a Escola e o Ensino

Comecei a ler hoje um livro que comprei, também hoje, na Amazon, em formato e-book Kindle: Overschooled but Undereducated (Super-escolarizados mas Sub-educados), de John Abbott.

Não avancei muito na leitura – mas o que li me pareceu excelente. Vou ressaltar duas razões – e, a seguir, acrescentar um terceiro argumento.

Primeira Razão

John Abbott deixa claro que, na educação, precisamos de transformação, não de reforma — algo que eu venho dizendo há 12 anos, desde que li Education Epidemic, de David H. Hargreaves (livrinho publicado em 2003 e que está disponível gratuitamente na Internet, em formato .pdf: http://demos.co.uk/files/educationepidemic.pdf).

Nesse livrinho (menos de 80 páginas) de Hargreaves há um gráfico muito instrutivo, que transcrevo aqui, e que já usei em muitos artigos e apresentações (palestras):

Change and Innovation

A tese de David H. Hargreaves (defendida por outros autores, como a seguir mostrarei) é de que há dois tipos de mudança: reforma e transformação (mudança reformadora e mudança transformadora). E que o indicador que nos permite determinar se uma mudança (ou em um conjunto de mudanças) envolve reforma ou transformação é o grau de inovação presente nela (ou nele).

Não é difícil entender o gráfico — como, de resto, se verá.

Isso quer dizer que toda inovação envolve mudança, mas nem toda mudança contém, traz ou produz inovação – ou em que a quantidade de inovação é mínima.

Muitos autores convincentemente mostraram, em tempos recentes, a partir da obra seminal de Thomas S. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), que há pelo menos duas modalidades de mudança:

  • Mudança Ordinária, ou mudança que tem lugar dentro de um paradigma estabelecido;
  • Mudança Extraordinária, ou mudança que leva à substituição do paradigma vigente.

No primeiro caso, geralmente temos mudanças pequenas, aos pedaços, incrementais, graduais — melhorias superficiais de um paradigma. As mudanças ou melhorias não questionam o paradigma: elas o dão por pressuposto. Quando elas têm que ver com a prática (e não com a teoria), essas mudanças e melhorias não se distanciam muito da forma convencional, quase universalmente aceita, de fazer as coisas.

No segundo caso, comumente lidamos com mudanças amplas, profundas, sistêmicas (holísticas), radicais, não raro abruptas, que levam à destruição de um paradigma estabelecido e à sua substituição por um outro. As mudanças aqui subvertem o paradigma estabelecido, posto que seu objetivo é substituí-lo por outro. Quando elas têm que ver com a prática (e não com a teoria), essas mudanças se distanciam significativamente da forma convencional, geralmente aceita, de fazer as coisas.

Se estendermos um pouco a analogia política (presente no título do livro de Kuhn), poderíamos dizer que a primeira modalidade de mudança é reformadora, enquanto a segunda é transformadora. Mudança reformadora é “mudança dentro do paradigma“. Mudança transformadora é “mudança de paradigma“. Mudança transformadora é algo equivalente, se não idêntico, a mudança revolucionária. É equivalente, também, se não idêntico, à recriação, refundação, ou reinvenção daquilo que é objeto da mudança.

Como já disse, o principal indicador que diferencia a mudança transformadora da mudança reformadora é o grau de inovação que ela representa em relação àquilo que é atualmente pensado ou feito. Inovação tem que ver com o que é novo. Seu grau pode ser mensurado comparando o que é novo na mudança, seja pensamento ou prática, com o pensamento e a prática atualmente vigentes. Quanto maior for o grau de inovação, tanto maior a distância do pensamento ou da prática atuais, e assim tanto maior a amplitude, a profundidade, a inclusividade, e a radicalidade da mudança.

Mas não nos esqueçamos de que o novo não é o velho disfarçado, simplesmente maquiado para ocultar os defeitos…

John Abbott não tem dúvida de que, na educação, hoje, precisamos de transformação, não de reforma.

Segunda Razão

John Abbott deixa claro que, na transformação que é necessária na educação hoje, devemos deixar para trás o binômio ensino e escola para focar no binômio aprendizagem e sociedade — algo que eu venho dizendo também há também 12 anos, desde que li The Fifth Discipline (A Quinta Disciplina), de Peter Senge. (Considero, aqui, e acredito que Abbott também considera, ensino e instrução como conceitos basicamente equivalentes).

Venho batendo nessa tecla há tempo. Se, em um processo de mudança, privilegiamos o pensamento e a prática existentes, a inovação será a primeira vítima: haverá pouco que é novo nas mudanças e o resultado final não será muito diferente das condições iniciais das quais se partiu.

Uma curta citação, oriunda de alguém que entende de mudanças, corrobora essa tese:

“A única maneira de mudar drasticamente o mundo é imaginando-o diferente do que ele é hoje. Se, no processo de mudança, fizermos uso demasiado da sabedoria e do conhecimento que nos trouxeram até aqui, terminaremos bem próximos de onde começamos. Se você quer obter resultados diferentes, comece olhando as coisas de novo, só que agora de uma perspectiva totalmente nova”.

A citação vem de Jay Allard, ex-Vice-Presidente da Microsoft (a linguagem foi um pouco alterada para ênfase, sem mudança do sentido; negritos foram acrescentados). Jay Allard foi o criador da linha Xbox/Kinect de plataforma de jogos da Microsoft – que transformou a nossa maneira de ver e de jogar o videogame. Se alguém entende de inovação é ele.

Os últimos setenta anos trouxeram ao nosso mundo mudança ampla, profunda, sistêmica (holística), radical, não raro abrupta e frequentemente não esperada. Essa mudança nos levou a nos distanciar das ideias e das práticas correntes em quase todas as áreas da vida — distanciar-nos o suficiente para que muitos autores importantes passassem a falar em uma nova Renascença, uma nova era, uma nova civilização.

É difícil imaginar que esse nível de mudança pudesse deixar de afetar, e afetar profundamente, a educação. Ele afetou a nossa forma de aceder à informação, de  trata-la, de distribuí-la, de coloca-la a bom uso. Ele afetou a nossa forma de nos comunicar uns com os outros, de interagir, de colaborar, de discutir, de debater. Ele mudou nossas maneiras de trabalhar, de nos divertir, de aprender (haja vista as possibilidades, ainda pouquíssimo exploradas, da educação a distância genuinamente interativa, da aprendizagem verdadeiramente colaborativa). Ele mudou, enfim, nossa maneira de viver. Esperamos ter acesso instantâneo à informação, esteja ela armazenada onde estiver e estejamos nós onde estivermos. Esperamos nos comunicar instantaneamente com qualquer lugar do mundo, estejamos nós onde estivermos. Fazemos parte de equipes em que os demais membros estão esparramados pelo mundo. Hoje temos amigos e familiares esparramados pelo globo. Aprendemos a qualquer momento (anytime), a partr de qualquer lugar (anywhere), no estlo e da forma que nos é mais conveniente (lendo, vendo vídeos, ouvindo clips, conversando, discutindo, debatendo. Nossas principais diversões seriam inconcebíveis sem a tecnologia recente.

No entanto, quando lemos ou ouvimos educadores falar de mudanças na educação, as mudanças são mínimas – na maior parte dos casos nem chegam a merecer o rótulo de reformas, quanto mais de transformações, mudanças revolucionárias, quebras de paradigmas.

A educação foi, e continua a ser, uma notável exceção entre as instituições que o século vinte herdou dos séculos anteriores. Embora seja inegável que tenha havido pequenas mudanças na forma de educar privilegiada nos últimos duzentos e cinquenta anos, mais ou menos, elas foram, em sua maior parte, superficiais e cosméticas, e frequentemente afetaram apenas um só ambiente ou canal da educação – a escola – e, dentro dela, em geral, apenas uma de suas dimensões: currículo, ou metodologia, ou forma de avaliação, ou tipo de tecnologia utilizada, ou os demais recursos empregados, ou o estilo de gestão, ou a relação com o mundo do trabalho, ou a relação com a comunidade do entorno, etc.

Pouquíssimos são os autores que se dedicam à educação que propuseram uma quebra de paradigma, uma mudança total na nossa forma de educar, que tirasse a escola, o currículo, o ensino, o professor, os materiais didáticos, as tecnologias, as provas e os exames, do foco principal de atenção.

No Brasil, o diploma legal que fixa diretrizes e bases para a educação nacional até que começa bem… O caput do artigo primeiro de nossa Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB-EN) diz: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Ótimo. Deixaram de lado os meios de comunicação de massa, mas está ótimo assim. ENTRETANTO, o parágrafo primeiro entorna o caldo: “Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.” O que havia se aberto, inexplicavelmente se fecha.

Essa lei foi promulgada no finzinho de 1996, a cerca de quatro anos do Século 21. E não muda quase nada. Privilegia a educação escolar, negligencia os demais ambientes e canais da educação. Por privilegiar a escola, não pode deixar de privilegiar questões de currículo e metodologia, e, naturalmente, a figura do professor, a autoridade absoluta dentro da sala de aula escolar. Não contempla formas alternativas de educar (como, por exemplo, as envolvidas no mundo do trabalho ou nos ambientes comunitários). Quando a lei foi promulgada já fazia um quarto de século que Ivan Illich havia publicado Deschooling Society (Sociedade sem Escolas). E fazia um pouco mais que Paulo Freire, grande amigo e admirador de Ivan Illich (a admiração era mútua), havia escrito, em seu livro Pedagogia do Oprimido (escrito em 1968, mas publicado no Brasil em 1974), o seguinte (aqui resumido em frases retiradas de vários lugares do livro):

“Ninguém educa ninguém, mas tampouco alguém se educa sozinho. Nós nos educamos uns aos outros através de um diálogo permanente, mediatizado pelo mundo, em que usamos recursos que, na educação tradicional, eram propriedade exclusiva do professor em sala de aula. A educação, portanto, é um processo mútuo, mediado pelo mundo, em que seres não terminados, conscientes de sua incompletude, tentam se tornar mais plenamente humanos”.

Nada disso afetou a lei promulgada no apagar das luzes do Século 20. Não só se manteve o foco na escola, como a escola, em si, não foi significantemente modificada. Na realidade, a escola não foi transformada, no essencial, pela LDB-EN e pela enorme (e sobrevalorizada) discussão dos educadores em torno dela: ela continuou a ser basicamente a mesma instituição criada cerca de dois séculos e meio atrás, no auge da Civilização Industrial. 

John Abbott defende o curso de ação certo: ele deixa claro que, na transformação que é necessária na educação, devemos deixar para trás o binômio “ensino e escola” para focar no binômio “aprendizagem e sociedade”.

Terceiro Argumento

Mas, sobre isso, mais neste terceiro ponto, que acrescento, sob minha responsabilidade, e que foi retirado de outra linha de leituras, não de John Abbott. É preciso deixar claro também que, nessa transformação, devemos tirar o foco da informação e do conhecimento (da descrição e da explicação) dos fenômenos naturais e passa-lo para a sabedoria e os valores (vale dizer, para a reconstrução imaginativa) que regem a nossa vida em sociedade. Isso, a meu ver, quer dizer que precisamos mudar o foco das Ciências (especialmente das naturais) para as Humanidades. . . Venho dizendo isso há BEM mais de 12 anos — desde que li, em 1974, The Humanities and Humanistic Education, de James Louis Jarrett, publicado no ano anterior.

Concluindo e resumindo, estas são algumas das conclusões a que tenho chegado nos últimos anos… a partir desses postulados.

Primeira: a educação não será transformada se ficarmos preocupados apenas em mudar a escola – e, nela, apenas os professores. Sempre que se fala em transformar a educação se cai na vala comum de propor a mudança da escola e de fazer isso dando ênfase à formação do professor. Isso não funciona — todos nós sabemos, mas, de alguma maneira, continuamos fazendo a mesma coisa na esperança (totalmente irracional) de que, de repente, por milagre, os resultados serão diferentes.

Como disse alguém, “Insanidade é fazer a mesma coisa um dia após o outro e esperar que de repente apareçam resultados diferentes”. Essa frase é atribuída a muitas pessoas, inclusive Benjamin Franklin e Albert Einstein.

Segunda: como bem indica o caput do artigo primeiro da LDB-EN, a educação é um processo social que tem lugar em casa, na rua, na comunidade próxima, nas comunidades estendidas (virtuais) criadas pela tecnologia, através dos meios de comunicação, nos ambientes de lazer, nos ambientes de trabalho, na igreja, através dos jornais, revistas e livros que as pessoas leem, nos debates nas redes sociais. . . Se não conseguirmos mexer da forma desejada nesse mix de ambientes ou canais, a educação continuará a mesma.

Terceiro: o que precisamos fazer é reimaginar criativamente a sociedade, incluindo todas as instituições mencionadas. Só assim seremos capazes de reconstrui-la para que se torne um verdadeiro ambiente de aprendizagem ATIVA, interATIVA, colaborATIVA, significATIVA.

Tweaks”, “fine tunes”, “technofixes” da escola não vão nos levar mais perto disso. É desperdício de dinheiro — e do valioso tempo dos alunos.

Quarto: não adiante enfatizar competências “básicas” como leitura, escrita, matemática, vistas de um ângulo instrumental; nem, para jovens e adultos, o chamado STEM (science, technology, engineering and mathematics) — exceto para pessoas naturalmente interessados nessas coisas. É preciso privilegiar as Humanidades: a Filosofia, as Letras (do ângulo da Literatura), as demais Artes… atividades que ajudam a desenvolver a imaginação, a criatividade, a inovação. Que nos levam a pensar mais no “Por que não?” do que no “Por quê?”

Termino citando Jarret, em The Humanities and Humanistic Education:

“Na verdade, nem o Grego, nem o Romano de modo algum seria cúmplice da confusão moderna que identifica educação e escolaridade. Somos formados pela totalidade de nosso ambiente: segue-se que não temos a menor condição de não dedicar o maior cuidado a qualquer aspecto desse ambiente — arquitetônico, legal, cerimonial, erótico, qualquer que seja” [negrito acrescentado].

É isso.

Em São Paulo, 6 de Abril de 2014

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