As 95 Teses de Lutero

Debate para o esclarecimento do valor das indulgências

pelo Dr. Martin Luther, 1517 (31 de Outubro)

Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.


1 Ao dizer: “Fazei penitência”, etc. [Mt 4.17], o nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.

2 Esta penitência não pode ser entendida como penitência sacramental (isto é, da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).

3 No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula, se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.

4 Por conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada do reino dos céus.

5 O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.

6 O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.

7 Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário.

8 Os cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos.

9 Por isso, o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seus decretos, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.

10 Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório.

11 Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiam.

12 Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.

13 Através da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.

14 Saúde ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.

15 Este temor e horror por si sós já bastam (para não falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.

16 Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.

17 Parece desnecessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na medida em que cresce o amor.

18 Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.

19 Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.

20 Portanto, sob remissão plena de todas as penas, o papa não entende simplesmente todas, mas somente aquelas que ele mesmo impôs.

21 Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda pena e salva pelas indulgências do papa.

22 Com efeito, ele não dispensa as almas no purgatório de uma única pena que, segundo os cânones, elas deveriam ter pago nesta vida.

23 Se é que se pode dar algum perdão de todas as penas a alguém, ele, certamente, só é dado aos mais perfeitos, isto é, pouquíssimos.

24 Por isso, a maior parte do povo está sendo necessariamente ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena.

25 O mesmo poder que o papa tem sobre o purgatório de modo geral, qualquer bispo e cura tem em sua diocese e paróquia em particular.

26 O papa faz muito bem ao dar remissão às almas não pelo poder das chaves (que ele não tem), mas por meio de intercessão.

27 Pregam doutrina humana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu].

28 Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.

29 E quem é que sabe se todas as almas no purgatório querem ser resgatadas? Dizem que este não foi o caso com S. Severino e S. Pascoal.

30 Ninguém tem certeza da veracidade de sua contrição, muito menos de haver conseguido plena remissão.

31 Tão raro como quem é penitente de verdade é quem adquire autenticamente as indulgências, ou seja, é raríssimo.

32 Serão condenados em eternidade, juntamente com seus mestres, aqueles que se julgam seguros de sua salvação através de carta de indulgência.

33 Deve-se ter muita cautela com aqueles que dizem serem as indulgências do papa aquela inestimável dádiva de Deus através da qual a pessoa é reconciliada com Deus.

34 Pois aquelas graças das indulgências se referem somente às penas de satisfação sacramental, determinadas por seres humanos.

35 Não pregam cristãmente os que ensinam não ser necessária a contrição àqueles que querem resgatar ou adquirir breves confessionais.

36 Qualquer cristão verdadeiramente arrependido tem direito à remissão pela de pena e culpa, mesmo sem carta de indulgência.

37 Qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência.

38 Mesmo assim, a remissão e participação do papa de forma alguma devem ser desprezadas, porque (como disse) constituem declaração do perdão divino.

39 Até mesmo para os mais doutos teólogos é dificílimo exaltar perante o povo ao mesmo tempo, a liberdade das indulgências e a verdadeira contrição.

40 A verdadeira contrição procura e ama as penas, ao passo que a abundância das indulgências as afrouxa e faz odiá-las, pelo menos dando ocasião para tanto.

41 Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor.

42 Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que a compra de indulgências possa, de alguma forma, ser comparada com as obras de misericórdia.

43 Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.

44 Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se torna melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena.

45 Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus.

46 Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância, devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma alguma desperdiçar dinheiro com indulgência.

47 Deve-se ensinar aos cristãos que a compra de indulgências é livre e não constitui obrigação.

48 Deve-se ensinar aos cristãos que, ao conceder indulgências, o papa, assim como mais necessita, da mesma forma mais deseja uma oração devota a seu favor do que o dinheiro que se está pronto a pagar.

49 Deve-se ensinar aos cristãos que as indulgências do papa são úteis se não depositam sua confiança nelas, porém, extremamente prejudiciais se perdem o temor de Deus por causa delas.

50 Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.

51 Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.

52 Vã é a confiança na salvação por meio de cartas de indulgências, mesmo que o comissário ou até mesmo o próprio papa desse sua alma como garantia pelas mesmas.

53 São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas demais igrejas.

54 Ofende-se a palavra de Deus quando, em um mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que a ela.

55 A atitude do papa é necessariamente esta: se as indulgências (que são o menos importante) são celebradas com um toque de sino, uma procissão e uma cerimônia, o Evangelho (que é o mais importante) deve ser anunciado com uma centena de sinos, procissões e cerimônias.

56 Os tesouros da Igreja, dos quais o papa concede as indulgências, não são suficientemente mencionados nem conhecidos entre o povo de Cristo.

57 É evidente que eles, certamente, não são de natureza temporal, visto que muitos pregadores não os distribuem tão facilmente, mas apenas os ajuntam.

58 Eles tampouco são os méritos de Cristo e dos santos, pois estes sempre operam, sem o papa, a graça do ser humano interior e a cruz, a morte e o inferno do ser humano exterior.

59 S. Lourenço disse que os pobres da Igreja são os tesouros da mesma, empregando, no entanto, a palavra como era usada em sua época.

60 É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.

61 Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos, o poder do papa por si só é suficiente.

62 O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.

63 Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.

64 Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os primeiros.

65 Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de riquezas.

66 Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.

67 As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.

68 Entretanto, na verdade, elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade na cruz.

69 Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências apostólicas.

70 Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.

71 Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.

72 Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador de indulgências.

73 Assim como o papa, com razão, fulmina aqueles que, de qualquer forma, procuram defraudar o comércio de indulgências,

74 muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade.

75 A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.

76 Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere à sua culpa.

77 A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o papa.

78 Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam, o Evangelho, os poderes, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.

79 É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente erguida, equivale à cruz de Cristo.

80 Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.

81 Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para os homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.

82 Por exemplo: por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?

83 Do mesmo modo: por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, visto que já não é justo orar pelos redimidos?

84 Do mesmo modo: que nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por amor gratuito?

85 Do mesmo modo: por que os cânones penitenciais – de fato e por desuso já há muito revogados e mortos – ainda assim são redimidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?

86 Do mesmo modo: por que o papa, cuja fortuna hoje é maior do que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?

87 Do mesmo modo: o que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito à remissão e participação plenária?

88 Do mesmo modo: que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?

89 Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?

90 Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.

91 Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.

92 Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: “Paz, paz!” sem que haja paz!93 Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “Cruz! Cruz!” sem que haja cruz!

93 Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “Cruz! Cruz!” sem que haja cruz!

94 Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através das penas, da morte e do inferno;

95 E, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da paz.

31 de Outubro de 1517 A.D.

[Transcrito de http://www.luteranos.com.br/lutero/95_teses.html]

Em São Paulo, 2 de Dezembro de 2014

Dez Anos deste Blog

Hoje, dia 2/12, faz dez anos que iniciei este blog — ainda no My Spaces, da Microsoft. 2004 era o ano e eu estava em Redmond, WA, sede da Microsoft, com minha amiga Ana Teresa Ralston, quando minha outra amiga (mais antiga ainda), Márcia Teixeira, me mandou uma mensagem pelo MSN Messenger peguntando se eu havia visto o Blog da Microsoft que acabava de ser lançado. Não tinha. Fui ver, criei uma conta e abri o blog, publicando uma primeira nota naquele mesmo dia.

Hoje, com dez anos, este blog está com quase mil mensagens. Dá perto de 100 mensagens por ano.

Festejo com meus leitores e amigos.

Em São Paulo, 2 de Dezembro de 2014

Como se comportar em um encontro familiar de fim de ano: dicas e sugestões

Nas festas de fim de ano muita gente vai participar de almoços e jantares familiares, em que encontrará um monte de parentes que nunca viu antes.

Aqui vão algumas recomendações que retirei e adaptei de um interessante artigo que encontrei referenciado no Facebook. Brasileiro é mais relaxado, e tende a chamar todos os que não são avós, pais, irmãos e filhos de tios ou primos. Por isso, simplifiquei e tupiniquizei as recomendações, eliminando a complexa tabela de relações de parentesco que o texto original em Inglês possuía. Se estiver interessado nela, clique no link ao final.

Antes de ir ao almoço ou ao jantar, tente conhecer os ramos básicos de sua família.

  1. Você provavelmente já conhece bem os seus avós — os pais de seus pais. Nenhum problema aqui.
  2. Você também provavelmente já conhece bem os irmãos (de forma politicamente incorreta, uso os termos no sentido genérico de “irmãos e irmãs”) de seus pais — os seus tios. Eles são, naturalmente, como os seus pais, filhos de seus avós.
  3. Você também provavelmente já conhece bem os filhos de seus tios — os seus primos.

Agora começa a área complicada.

  1. Primeiro problema. Quem são os cônjuges, companheiros ou namorados de seus tios. O negócio é desafiante, hoje em dia, em que as pessoas trocam de cônjuges, companheiros e namorados com razoável frequência — e esses cônjuges, companheiros e namorados nem sempre são de sexo diferente da pessoa com quem estão.
  2. Segundo problema. O fato de haver uma criança de cor ou feição bem diferente da sua entre os presentes não quer dizer que não seja seu primo: pode ser adotado. Pode também ser um filho avulso, fora de contrato, de algum tio seu. Isso hoje é também frequente.
  3. Terceiro problema: A complicação maior está nos tios de seus pais – aqueles filhos de seus avós que não são seus pais. Eles são seus tios–avós — mas chame-os de tios, ok? Tente descobrir seus nomes, os nomes de seus cônjuges, companheiros e namorados (pouco provável essa última hipótese, porque essa turma é mais velha — mas não é impossível), e os nomes de seus filhos. Chame essas pessoas de primos, esquecendo as tecnicalidades das árvores genealógicas.

Agora, recomendações de outro tipo.

  • Faça amizade com a pessoa mais velha do grupo. Ela provavelmente conhece todo mundo, sabe quem é casado (etc.) com quem, quem é filho (ou equivalente) de quem, e conhece histórias deliciosas sobre cada um. Algumas picantes.
  • Convença-se de que você não é o centro do universo e que a maioria das pessoas com quem você vai ter de conversar está interessada apenas em si mesma e não em você. Se você tentar falar de você, em poucos minutos a notícia correrá o encontro e ninguém mais vai quer falar com você. Se você for bom ouvinte, porém, todos vão estar interessados em contar sua história para você — e pode haver até mesmo disputa para decidir quem vai sentar do seu lado na hora de se assentar à mesa. E você aumentará o seu repertório de informações e histórias sobre os seus parentes. Isso sempre é útil. Believe me.
  • Com o conhecimento adquirido, ajude os outros a descobrir quem são as pessoas que eles não conhecem. Eles lhes ficarão eternamente gratos — e concluirão que sua memória é uma coisa incrível, e sua gentileza, idem.
  • Não converse sobre política, esporte ou religião. Se alguém falar mal da Dilma perto de você, dê um leve sorriso que não compromete — pode haver um importante parente petista prestando atenção que pode ser útil quando você precisar de um empréstimo na Caixa Econômica. O mesmo vale se alguém fizer uma gozação com um corintiano ou um pobre palmeirense. Se houver um corintiano ou palmeirense por perto olhe para eles com um sorriso solidário que faça com que eles fiquem achando que você também é corintiano ou palmeirense. Quando alguém começar a falar sobre religião, faça de conta que você vai acudir uma criança que está com problema e saia de perto.
  • Ao final, pegue um papel e anote os e-mails ou endereços do Facebook de todo mundo. Não custa nada e eles vão achar que você gostou deles e quer se corresponder. Você sai ganhando (mesmo que não se corresponda com eles e não faça um pedido de amizade no Face.
  • Divirta-se. Todo mundo gosta de divertir-se e, se você não estiver se divertindo, todo mundo imediatamente percebe — e ninguém gosta de gente que não se diverte e não é divertido.

Agora que você tem essas sugestões todas, seja um sucesso na festa. Você será lembrado sempre que houver uma.

[Adaptado de http://www.ijreview.com/2014/11/208819-chart-explains-2nd-cousins-removed/]

Em São Paulo, 1 de Dezembro de 2014

Gracias por la Vida

Gosto muito da canção “Gracias a la Vida”, de Violeta Parra, imortalizada, para nós latinos, na voz de Mercedes Sosa, e, para nós brasileiros, na voz de Elis Regina.

Se estivesse escrevendo em Espanhol teria começado dizendo “A mí me gusta muchísimo la canción…”.

Acho interessante as construções linguísticas, consagradas pela língua ou criadas intencionalmente, porque há sempre algo por detrás dela que não há explicitado.

“A mí me gusta mucho la canción ‘Gracias a la Vida’” a gente expressa, numa ordem mais direta e explícita, dizendo “Gosto muito mesmo da canção Graças à Vida”. Por que será que os hispanofones dizem “A mí me gusta la canción” em vez “gosto da canção”… Por que será que soa mal aos ouvidos dos hermanos dizer “Yo gusto (de) la canción”? Não sou especialista em Espanhol, mas parece-me “Yo tengo mucho gusto en la canción” é aceitável. Não sei…

Preocupa-me mais a letra da canção em si. “Gracias a la vida”. Dou graças à vida? Se estou numa atitude de ação de graças, como, ontem, Dia de Ação de Graças, muitos estiveram, meu primeiro movimento é dizer “Gracias por la vida”. Não dou graças à vida por ter dois olhos. Dou, primeiro, graças por la vida. Mas graças a quem? Já escrevi aqui neste blog e no Facebook, sobre essa questão. Acho possível dizer “Dou graças pela vida” (ou por qualquer outra coisa), sem explicitar a quem. A frase seria equivalente a “Sou muito grato por ter vivido”, ou “Sou muito grato por estar vivo até esta idade” (quando tantos morrem tão mais cedo, por exemplo).

Os cricas — e eles podem ser crentes tentando fustigar um ateu ou podem ser ateus tentando cutucar um crente — sempre irão perguntar: “Mas a quem?” E a resposta mais apropriada me parece: “A quem — ou a que — quer que seja que é responsável por eu ter nascido e estar vivo até agora…”. Mas isso raramente vai ser suficiente. Os cricas sempre querem que a gente explicite.

A gente poderia tentar sair pela tangente e dizer “A Deus — considerando Deus a força ou o poder que nos trouxe à vida e que a sustém, e que, quando deixa de a suster, nós morremos”. Deus, afinal, na tradição cristã, é isso, não é? Pelo menos isso. Essa seria uma concepção minimalista — vale dizer, liberal — de Deus: a força ou o poder responsável por nos trazer à vida, ou nos dar a vida, e por sustê-la, por sustenta-la, por mantê-la (por um tempo limitado). Se nossa vida é boa, damos graças por ela, especialmente se ela nos dura bastante. Se nossa vida é ruim, e, vez de dar graças, esperamos que ela nos seja abreviada. Nossa tendência é hipostatizar e antropomorfizar essa força ou esse poder, humaniza-lo, faze-lo como nós, transforma-lo em nossa imagem e semelhança, para que possamos falar com ele, pedir-lhe que nos faça feliz, dar-lhe graças quando assim nos faz, pedir-lhe saúde quando estamos doentes, rogar-lhe que nos prolongue a felicidade e a vida sem a qual a felicidade desapareceria . .

Mas a canção de Violeta Parra opta por não enfrentar essas questões difíceis. Nela se dá graças à vida, hipostatizando-a, antropomorfizando-a, personalizando-a, como se fosse ela, a vida, que nos deu dois olhos, dois ouvidos, para não falar no implausível alfabeto (este, claramente, uma criação humana). E a vida? Quem nô-la deu e a sustenta? Eu sou grato a quem ou a o que fez e faz isso.

Em Salto, 28 de Novembro de 2014, dia em que faz quatro anos em que a Paloma e eu nos tornamos membros da Catedral Evangélica, em ambos os casos por arrolamento, a nosso pedido, um dia depois do Dia de Ação de Graças de 2014.

Casamento Homossexual, Poligamia / Poliandria, Casamento Poliafetivo, Casamento Incestuoso (Entre Pessoas Relacionadas por Parentesco)

Aos Evangélicos, em especial àqueles que se opõem ao Casamento Entre Homossexuais, recomendo a leitura do artigo abaixo de Roger E. Olson, Professor de Teologia e Pastor Batista, em seu blog.

O artigo é acompanhado de 35 comentários, com resposta de Olson à maioria dos comentários, e um follow-up do autor.

Na verdade, o artigo vai bem além do Casamento Entre Homossexuais (que ele considera um fait accompli no plano civil) e levanta a questão “What Now?” acerca de outras possíveis (e prováveis) variantes de casamento.

Olson faz uma referência histórica e sociológica da questão do divórcio. Primeiro era proibido, depois se permitiu em circunstâncias bastante controladas (adultério, abandono, maus tratos), depois se incluiu o simples “desamor” (ainda que de apenas um dos cônjuges) como causa legítima para divórcio, e, finalmente, se instituiu o “no fault divorce”, ou divórcio sob demanda (de comum acordo ou unilateral, sem nenhum direito de contestação por parte do outro cônjuge).

Olson então dirige uma pergunta aos defensores (sejam eles gays ou não) do Casamento Entre Homossexuais, que é a seguinte:

Aprovado no plano civil o Casamento Entre Homossexuais (como inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, o será, em todos os países ocidentais, mesmo que não seja chamado de “casamento”), o que obstará, do ponto de vista racional e jurídico, que se aprove também a Poligamia ou Poliandria (casamento de uma pessoa com várias outras do outro ou do mesmo sexo), o Casamento Poliafetivo (casamento de muitos com muitos, o sexo dos cônjuges sendo irrelevante ou imaterial), e Casamento Incestuoso (Casamento entre Parentes Diretos, desde que, sendo os dois de sexos diferentes, um ou ambos se esterilizem para evitar prole com problemas)?

Vale a pena ler o artigo, os comentários dos leitores e o follow-up do autor.

Artigo Inicial:

Why Not Polygamy? A Question to Advocates of Gay Marriage

Comentários no mesmo URL

Follow-up:

Follow Up to My Immediately Preceding Post (Re: Marriage)

Em São Paulo, 19 de Novembro de 2014.

O Papel dos Sonhos e da Invenção: Uma Discussão da Realidade e da Ficção, da Verdade e da Mentira

Manoel de Barros morreu esta semana (13/11/14), aos 97 anos. Pipocaram na imprensa diversas frases lindas e inspiradoras dele, embora à primeira vista meio enigmáticas, das quais pinço duas:

“Só 10% do que falo é mentira, o resto eu invento.”

“Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.”

A primeira frase me faz lembrar de uma frase do grande Voltaire:

“Nunca contei nenhuma mentira. Mas já inventei muitas verdades”.

A segunda me faz lembrar de uma frase da grande Ayn Rand:

“Há na natureza coisas tão lindas que parecem ser artificiais”.

o O o

Frases como essas são tão geniais que parece impossível analisa-las sem que elas percam sua beleza e a análise pareça trivial e sem sentido. Mas, sendo filósofo, não consigo resistir. E vou me guiar, em parte, pelo mestre Mario Vargas Llosa, em seu livro La Verdad de las Mentiras (primeira edição: 1990; edição expandida: 2002). Ele, por sua vez, foi, como eu também, parcialmente inspirado pela obra Ayn Rand (passim).

Mas tenho tido experiências que me mostraram, ao longo dos últimos quase 50 anos, que é preciso procurar a verdade nas mentiras.

o O o

Nos meses de Março e Abril de 1966 escrevi, quanto tinha meros 22 anos, uma série de artigos provocada por um sermão sobre o livro de Jonas do Velho Testamento, que acabou provocando uma crise no seminário que eu então frequentava e a expulsão de cinco professores (inclusive o Reitor) e 39 alunos.

O sermão foi um sermão de prova pregado por meu colega Floramonte Gonçalves. Ele interpretou o livro de Jonas como se fosse, não literatura, mas história. . . Para ele, o protagonista era de fato Jonas, um profeta israelita, que nasceu, fez (entre outras coisas) aquilo que o livro descreve, e morreu. Uma pessoa real, em outras palavras. E as ações e acontecimentos que o livro de Jonas descreve devem ser interpretados literalmente, sem tirar nem pôr, nos menores detalhes. Jonas recebeu uma ordem de Deus, tentou não executa-la fugindo para um lugar diferente daquele para o qual Deus o havia enviado, o navio em que estava naufragou, Jonas foi engolido inteiro por uma baleia (ou um peixe grande, não faz grande diferença), passou três dias na barriga do peixe, e, ao final do terceiro dia, foi vomitado na praia de Nínive, local para onde havia sido enviado por Deus.

Quando o livro de Jonas é interpretado literalmente, como história, não como literatura, o que sobressaem são os milagres, em especial os alegados fatos de que ele foi engolido inteiro por um peixe, passou três dias vivos na barriga do peixe, e foi vomitado pelo peixe exatamente na praia da localidade para a qual deveria ter ido mas da qual tentara (em vão fugir).

Interpretado livro literalmente, a lição teológica que sobressai é que não adianta tentar fugir de Deus e tentar não cumprir as suas ordens. Essas tentativas humanas de enfrentar a Deus são todas vãs e Deus, com sua vontade soberana, sempre prevalece.

Minhas tese, nos meus artigos, era de que o livro deveria ser interpretado como literatura, como poema — na verdade, como uma parábola. Eis o que disse no primeiro artigo, de 17/3/1966, em O CAOS em Revista:

“O livro de Jonas é um poema didático, podemos mesmo dizer que um poema parabólico, escrito para mostrar que Deus se compadece mesmo dos ímpios quando eles se arrependem (3:10; 4:10). Este poema foi escrito com uma moral dirigida contra a intolerância dos Judeus e sua arrogância para com as nações pagãs, resultantes da doutrina da eleição mal interpretada em um sentido particularista.”

Interpretado o livro de Jonas como literatura, não sobressaem nele nem os milagres nem a doutrina de que a vontade soberana de Deus inevitavelmente se impõe à nossa vontade, de modo que, quer queiramos, quer não, é a vontade de Deus que é feita, tanto na Terra como nos Céus. Se fosse assim, nem precisaríamos orar, no “Pai Nosso”, “seja feita a tua vontade, assim na Terra como nos Céus”. Ela seria sempre feita, quer orássemos, quer não… Interpretado o livro como literatura, sobressaem, de um lado, o amor, a misericórdia, o compadecimento de Deus, mesmo para com os supostamente não-escolhidos, e, de outro lado, a condenação divina à estreiteza da visão dos judeus que, considerando-se nação eleita, desprezavam os gentios e a eles dirigiam sua intolerância. . .

Interpretado literalmente (i.e., como história), o livro de Jonas pende para o calvinismo mais radical; interpretado literariamente (i.e., como parábola), o livro de Jonas pende para o tipo de arminianismo que enfatiza o caráter de Deus como amor inclusivo. . .

Em suma (e aqui revelo algumas preferencias hermenêuticas e teológicas minhas): interpretado como parábola, isto é, como ficção, como invenção, como “mentira”, o livro contém mais verdades, e verdades mais importantes, do que quando interpretado como verdade histórica literal. . .

o O o

A realidade raramente é exatamente como a desejamos.

Nossa vida, como ela de fato é, por melhor que seja, raramente é a vida que, no nosso mais profundo, gostaríamos de ter. Sempre falta — ou sobra — alguma coisa. Falta dinheiro, falta tempo, sobram obrigações, sobram doenças. . . Por isso, o ser humano recria a realidade no plano virtual, no plano da ficção, para que a realidade, agora inventada, incorpore seus sonhos, seus desejos, seus quereres, seus valores, seus ideais. . . Na realidade, nossos planos muitas vezes não são executados, nossos amores são frustrados e não dão certo, não convivemos bem com alguns membros de nossa família, no todo o mal parece prevalecer sobre o bem, os injustos sobre os justos. Na ficção podemos recriar a realidade de acordo com nossos sonhos, desejos, quereres, valores e ideais. Nela os planos ao final são executados como havia sido planejado, os amores, mesmo que tenham um momento inicial difícil, dão certo e os amantes vivem seus amores para sempre, nem a morte tendo o poder de totalmente os separar. . . Nela, se a morte sobrevier a um dos amantes, o espírito dele sobrevive e se comunica com o que sobreviveu. Haja vista Ghost. Como diz Mario Vargas Llosa (Jorge Mario Pedro Vargas Llosa):

“Los hombres no están contentos con su suerte, y casi todos — ricos o pobres, geniales o mediocres, célebres u oscuros – quisieran una vida distinta de la que viven. Para aplacar – tramposamente – ese apetite nacieron las ficciones. Ellas se escriben y se leen para que los seres humanos tengan las vidas que no se resignan a no tener. En el embrión de toda novela bulle una inconformidad, late un deseo insatisfecho.” [p. 16; ênfase acrescentada]

“A ficção existe para que os seres humanos tenham as vidas que não se resignam a não ter.” Frase fantástica.

o O o

A arte existe porque a vida não basta“, complementou e generalizou nosso grande poeta Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira), ao completar seus 80 anos.

(Vide a entrevista: http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-gullar.html; ênfase acrescentada.)

o O o

Eis o que Ayn Rand (Alyssa Zinovievna Rosenbaum) disse e que influenciou Vargas Llosa:

“The most important principle of the esthetics of literature was formulated by Aristotle, who said that fiction is of greater philosophical importance than history, because ‘history represents things as they are, while fiction represents them as they might be and ought to be.’

This applies to all forms of literature and most particularly to a form that did not come into existence until twenty-three centuries later: the novel.

A novel is a long, fictional story about human beings and the events of their lives. The four essential attributes of a novel are: Theme—Plot—Characterization—Style.

These are attributes, not separable parts. They can be isolated conceptually for purposes of study, but one must always remember that they are interrelated and that a novel is their sum. (If it is a good novel, it is an indivisible sum.)

These four attributes pertain to all forms of literature, i.e., of fiction, with one exception. They pertain to novels, plays, scenarios, librettos, short stories. The single exception is poems. A poem does not have to tell a story; its basic attributes are theme and style.

A novel is the major literary form—in respect to its scope, its inexhaustible potentiality, its almost unlimited freedom (including the freedom from physical limitations of the kind that restrict a stage play) and, most importantly, in respect to the fact that a novel is a purely literary form of art which does not require the intermediary of the performing arts to achieve its ultimate effect.” (“Basic Principles of Literature”, in The Romantic Manifesto, p. 80; ênfase acrescentada).

“A história representa as coisas como elas são, enquanto a ficção as representam como elas poderiam e deveriam ser”.

o O o

A verdade é, em geral, entendida como correspondência entre o que pensamos e a realidade. O que dizemos acerca da realidade, como a descrevemos, como explicamos a sua operação, tudo isso é verdade se a realidade for como dizemos, como a descrevemos, como a explicamos.

Os cientistas (entre eles os historiadores de hoje) descrevem e explicam a realidade, aquilo que existe e acontece.

Os criativos imaginam coisas e estados de coisas que não existem e acontecem e se perguntam: por que não? E inventam novas realidades, que não são menos realidades porque foram criadas pela mente humana e satisfazem uma necessidade imperiosa de mostrar que um outro mundo é possível.

Aquilo que é inventado não é necessariamente mentira (embora seja possível inventar mentiras — na realidade, mentiras são sempre invenções). Mas muito daquilo que se inventa é verdade – algumas vezes mais verdadeiro do que as verdades não inventadas.

Por que não?

Foi por isso que Manoel de Barros disse que 10% do que ele falava era mentira, mas que o resto não era mentira: era invenção sua — era literatura, era poesia!

Foi por isso que Voltaire, antes dele, disse que não tinha o hábito de mentir, mas tinha, isto sim, o hábito de inventar verdades (muitas vezes inconvenientes).

o O o

As verdades contidas nas “mentiras” da ficção muitas vezes incomodam. A escola em que Mario Vargas Llosa estudou o processou por causa de um de seus romances. Sua primeira mulher tentou se vingar dele pelo que havia num de seus romances escrevendo outro romance. . .

Graham Greene, um dos maiores romancistas ingleses, chegou a ser processado quando o marido de uma mulher de uma das histórias que ele escreveu (End of the Affair) leu o livro . . .

A ficção é sempre mentira, não é nunca verdade? O inventado e o virtual estão fora realidade? Pobre de quem pensa isso.

Em São Paulo, 15 de Novembro de 2014.

Esquerda e Direita

Post retirado de um comentário feito hoje no Facebook…  Já bati muito nessa tecla aqui.

Os termos esquerda e direita refletem, hoje, no meu entender, uma posição num continuum que indica, do lado esquerdo, atribuições do estado, e, do lado direito, direitos e liberdades do indivíduo. Assim:

Esquerda-Direita

Quando mais atribuições você der ao estado, mais à esquerda você está.

O comunista, para o qual tudo fica à mercê da decisão do estado, é o mais esquerdista de todos. Depois vem o socialista, e o social democrata.

Quanto mais liberdade você admitir para o indivíduo, mais à direita você está.

Para o libertário anarquista, na extrema direita, não deve haver estado: tudo fica à mercê da decisão dos indivíduos. À esquerda dele está o liberal classic (que admite a existência do estado mas o quer mínimo), depois o por vezes chamado de liberal-social, que é o liberal que faz concessões à ação do estado na área social (em especial nas áreas de saúde e educação).

O social-democrata, à esquerda do centro, o liberal-social, à direita, basicamente se equivalem.

Acho o esquema basicamente sensato e “helpful”

Em São Paulo, 13 de Novembro de 2014.

Todo Esquerdista Precisa ser um Franciscano?

[ Transcrevo aqui artigo de Rodrigo Constantino que é totalmente coerente com vários posts meus aqui. O original está em
http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/economia/todo-esquerdista-precisa-ser-um-franciscano/ ]

“O vício intrínseco do capitalismo é a partilha desigual do sucesso; o vício intrínseco do socialismo é a partilha equitativa do fracasso.” (Winston Churchill)

A expressão “esquerda caviar”, que não inventei mas ajudei a popularizar, pegou e tem incomodado muita gente. Afinal, expõe a hipocrisia daqueles que defendem o socialismo de suas coberturas luxuosas, que pregam a igualdade material de cima de seus helicópteros, que defendem até o modelo cubano de Nova York ou Paris, que condenam a ganância enquanto juntam mais e mais dinheiro. Tamanha incoerência incomoda mesmo, quando exposta.

Pegos na contradição, vários desses ícones da esquerda caviar têm se defendido da seguinte maneira: então é preciso ser um franciscano para defender os mais pobres? Segundo eles, o que querem é distribuir melhor a riqueza, que todos se tornem igualmente ricos, tenham acesso aos mesmos bens materiais. Implícito nesse discurso está o monopólio da virtude típico da esquerda, e uma enorme falácia.

Para essas pessoas, ser de esquerda significa automaticamente se preocupar com os pobres. Ou seja, eles estão dizendo que os liberais capitalistas ou os conservadores de direita não ligam para os pobres, querem mantê-los na pobreza. Reparem que são as supostas intenções que eles atacam, justamente para não debater quais meios ajudariam, de fato, os mais pobres a sair da pobreza. O esquerdismo não seria, então, uma ideologia sobre meios de produção ou organização social, mas sim uma seita religiosa que concede de imediato o status de sensível abnegado ao membro.

Claro que não é nada disso. Claro que é possível ter tanto esquerdistas como direitistas legitimamente preocupados com os mais pobres. Por isso mesmo o debate sério, honesto, será voltado para quais meios devem ser adotados para mitigar a pobreza. Foi o capitalismo liberal americano ou o socialismo real cubano que beneficiou os mais pobres? Foi o livre comércio da globalização ou o protecionismo dos países fechados que melhorou a vida dos mais pobres?

Quando colocamos a coisa desta forma, fica claro o motivo pelo qual a esquerda caviar foge do debate. O problema não é ser mais rico e defender a esquerda, e sim ser um usuário de todas as benesses que só o capitalismo pode oferecer enquanto defende o socialismo, que jamais permitiu aos mais pobres algo parecido. Por essa falha de argumentos, a esquerda caviar precisa monopolizar os fins nobres: querem os pobres mais ricos, e ponto! Mas… como?

Criticando o livre mercado, o lucro, até mesmo a ganância, enquanto na prática foram sempre o livre mercado, o lucro e a ganância que possibilitaram o enriquecimento das sociedades capitalistas? Onde foi que a simples distribuição de riqueza melhorou de fato a vida dos mais pobres de forma sustentável? Qual modelo podem oferecer como exemplo disso?

A desigualdade material é indissociável da liberdade individual. Afinal, somos diferentes em muitas coisas, em nossas vocações, dons, habilidades, sorte, mérito, etc. Se pegarmos um milhão de reais e distribuirmos igualmente entre mil pessoas numa comunidade, em poucos meses haverá gente com muito mais dinheiro do que os outros. A única forma de preservar a igualdade é abolindo de vez a liberdade, impedindo as trocas voluntárias.

No mais, riqueza não é jogo de soma zero, onde João precisa tirar de Pedro para ficar rico. A história do capitalismo é a história do enriquecimento geral, só que com desigualdade. O ganho de produtividade permitiu a melhoria na qualidade de vida de praticamente todos, mas uns mais do que os outros. Quando Steve Jobs cria a Apple, beneficia a vida de milhões de pessoas, mas fica bem mais rico no processo, como deve ser.

A esquerda caviar ignora tudo isso, fala apenas em distribuir melhor as riquezas, como se caíssem do céu ou brotassem do solo, como se não houvesse escassez, como se bastasse o estado distribuir recursos para todos comprarem seu iPhone. Não funciona assim. Quem não sabe, é vítima de desconhecimento. Quem sabe e mesmo assim insiste na falácia, não tem honestidade intelectual.

Portanto, o sujeito não precisa ser um franciscano para ser de esquerda. Mas ele precisa ignorar como a economia funciona. E adotar doses cavalares de hipocrisia para condenar sempre a ganância alheia, o lucro dos outros, enquanto pensa só em acumular mais dinheiro para viver como os magnatas capitalistas, tudo isso enquanto repete que só quer mais igualdade material e ajudar os pobres. Não cola.

Rodrigo Constantino

Transcrito aqui em 13 de Novembro de 2014.

A Filosofia e a Educação no Mundo Antigo e Medieval

Transcrevo aqui revisto e um pouco modificado, um artigo que escrevi, originalmente, em 2008, com base em materiais que havia redigido bem antes (no ano 2000), para servir de Introdução a um curso de História da Filosofia Moderna na UNICAMP. Eduardo Chaves [1]}

o O o

Não pretendo, neste trabalho, abordar o tema elaborando uma crônica de eventos ou pessoas relevantes à educação na Antiguidade e na Idade Média.

Também não pretendo historiar o que pensaram sobre a educação eminentes autores do Mundo Antigo e do Mundo Medieval.

Vou fazer algo, de um lado, mais ambicioso, mas, de outro, menos trabalhoso: tentar capturar a essência da contribuição do era Clássica e do período Medieval (isto é, da Pré-Modernidade) para a educação de hoje. Reconheço que numa época em que se discute ad nauseam a Modernidade e até mesmo a Pós-Modernidade, discutir a Pré-Modernidade pode parecer deslocado. Que seja.

Assim, não farei pesquisa histórica, no sentido estrito, nem exegese e crítica textual. Procurarei me situar no plano filosófico para procurar captar o que me parece ser o aspecto mais importante da contribuição de cada um desses dois períodos para a educação de hoje — sem me preocupar se vivemos ainda na Modernidade ou se já passamos para a Pós-Modernidade.

A primeira parte enfocará a Antiguidade Clássica; a segunda, o Período Medieval.

Numa terceira parte, resumirei o que me parece ser a principal contribuição desses dois períodos, em seu conjunto, para algo que transcende a educação, embora seja extremamente importante para ela: a visão de mundo — a nossa visão de mundo hoje, em pleno Século 21. A Antiguidade e a Idade Média estão de certo modo unidas em uma visão de mundo extremamente importante, e que serviu por muito tempo de alicerce para a cultura e o pensamento ocidental, e que, lamentavelmente, corre o risco de se esvair nos ceticismos e relativismos de nossa época que se pretende multicultural, na qual a razão, como padrão objetivo, perde lugar para modismos intelectuais admitidamente arbitrários.

Antes de entrar na discussão do tema, porém, gostaria de propor a tese geral que pretendo defender.

A grande contribuição do Mundo Antigo para a educação foi no plano conceitual – propondo um referencial teórico que fornece um interessante enquadramento para a educação ainda hoje.

Essa contribuição inclui tanto uma visão extremamente criativa e frutífera do que é a educação (conceito de educação) como sugestões interessantes sobre como, em linhas gerais, essa educação deve se dar (metodologia).

A grande contribuição do Mundo Medieval para a educação, por outro lado, deu-se no plano da prática pedagógica – e continua a ser extremamente relevante nos dias de hoje.

Mais especificamente, o que de mais importante a Idade Média nos legou foi uma proposta curricular para a Educação Fundamental (o chamado Trivium) e uma metodologia de aprendizagem (conhecida como Escolasticismo).

I. O Mundo Antigo e a Educação

Quando falo em Mundo Antigo, tenho em mente a Antiguidade Clássica — o mundo em que predominaram, primeiro, os Gregos e, depois, os Romanos. Esse mundo tem limites cronológicos difíceis de precisar, mas vou estipular, mais ou menos arbitrariamente, que o Mundo Antigo cobre desde a época em que se presume que Homero tenha vivido (por volta do século VIII ou VII antes de Cristo) até o fim oficial do Império Romano (final do século V de nossa era), com a queda de Roma em 476 AD). A influência do Império Romano demorou muito tempo para desaparecer, e depois se criou um novo Império Romano, supostamente Santo, mas a data é útil, porque permite caracterizar como a Antiguidade Clássica um período que dura perto de um milênio. (A Idade Média, como veremos, também vai durar perto de um milênio).

Os períodos mais importantes dentro do milênio clássico são: no caso da Grécia, os séculos V e IV antes de Cristo – época de Sócrates, Platão e Aristóteles; no caso de Roma, o último século antes de Cristo e os dois primeiros da nossa era talvez sejam os mais importantes – época de Cícero, Sêneca, Lucrécio, Marco Aurélio, etc.

Considerar como se fosse uma unidade um período histórico relativamente curto até mesmo dentro de um espaço geográfico pequeno e bem delimitado, e com cultura relativamente homogênea – como, por exemplo, o século XVIII na França – já é problemático. Muito mais problemático ainda é tomar como se fosse uma unidade um período de cerca de mil anos, que abrange espaços geográficos amplos e não bem delimitados, que foi local de origem e de disseminação de duas culturas diferentes, embora com sobreposições significativas: a grega e a romana. Dentro de cada uma dessas culturas já é difícil encontrar significativa unidade de ponto de vista entre dois pensadores. Além disso, alguns dos autores desse período escreveram sobre a educação, e, às vezes, as ênfases principais do que disseram contradizem as ideias aqui apresentadas e são inaceitáveis hoje. Outros, por sua vez, nem tocaram explicitamente no assunto. Mas, ainda assim, acredito ser possível chegar a dois ou três pontos de vista que são essenciais – e que permanecem relevantes até hoje. Esses são os pontos de vista que sobreviveram no tempo, sem perder sua importância e relevância.

A. A Visão da Educação

Parece-me que a noção de “paideia” – aquilo que os alemães do século XIX vieram a chamar de Bildung – está no centro da visão clássica da educação. Embora o termo “paideia” seja geralmente traduzido por educação, e, de vez em quando, até por instrução, talvez a melhor tradução do termo seja, hoje, formação (embora, diferentemente de instrução, educação também seja uma tradução aceitável).

Paideia é o processo mediante o qual um ser pequeno, incompetente, dependente, incapaz de assumir responsabilidade pela sua vida, se torna um adulto competente, autônomo, responsável, capaz de definir seu destino e de controlar sua vida para que o destino visado se torne realidade. Paideia é o processo mediante o qual o homem transforma seu potencial em atualidade, em que ele se realiza como pessoa (individual e única), como cidadão (membro de um grupo), como criador e artífice de seu próprio destino. Paideia é o processo mediante o qual a essência se transforma em existência e o homem encontra sua natureza verdadeira. Paideia é o processo mediante o qual o homem se dá a forma de humano – donde, formação.

Dentro dessa visão, não é um homem que dá a forma de humano ao outro. Cada um se forma, cada um se dá a forma humana – mas, admitidamente, não sozinho, em isolamento. Embora essa formação seja mais autoformação do que heteroformação, ela não acontece em isolamento. Cada um se forma à medida que, interagindo com os demais, se torna capaz de se apropriar dos sentidos existentes na cultura que lhe permitem ressignificar o mundo — e sua própria vida. É nesse processo que as pessoas se tornam competentes, autônomas e responsáveis. Um mundo ressignificado é um mundo recriado por mim: é o meu mundo, o local em que existo, vivo, faço planos, defino projetos de vida — e os vivo.

A vida humana deve ser, para a maior parte dos pensadores desse período, orientada por fins. A teleologia era, em especial para os gregos, uma característica não só de humanos e da vida humana, mas, também, da própria natureza. Não só os humanos devem ter fins – as próprias coisas os têm. A singularidade do ser humano está no fato de que ele pode, curiosamente, diferentemente dos demais seres, tentar renegar o seu fim natural…

Para vários dos pensadores desse período, em especial dentre os gregos, com destaque especial para Aristóteles, o fim natural do homem é a busca de sua própria felicidade.

Hoje em dia, no clima relativista que impera, se argumentaria que cada um entende a felicidade como bem quer: “Liberdade”, por exemplo, “é uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser…”, dizia o jingle da US Top de uns 50 anos atrás, talvez mais. Consequentemente a noção de felicidade, como o fim da vida, não parece ajudar muito… Falta-lhe, pelo que parece, objetividade.

É aqui que os gregos recorrem a uma noção fundamental, que, infelizmente, parece totalmente perdida nos dias de hoje: cada tipo de coisa tem uma natureza própria – e é essa natureza que condiciona a descoberta e determinação de seu fim.

O ser humano tem uma natureza – mas também a têm os diferentes tipos de animais, de plantas, de coisas. A natureza da videira é diferente da natureza da oliveira. É verdade que é parte da natureza de ambas ser plantas frutíferas. Por isso, o fim de uma e de outra tem alguma coisa em comum, em um nível de abstração mais genérico: produzir os frutos que são coerentes com a sua natureza. Mas, num nível de abstração mais específico, a natureza da videira é claramente diferente da natureza da oliveira. Consequentemente, o fim da videira é diferente do fim da oliveira: o daquela é produzir uvas, o desta, olivas. No mundo natural não se dá o caso de, num determinado momento, videiras decidirem que vão produzir olivas e oliveiras, uvas. As coisas no mundo natural obedecem à sua natureza e, assim, sempre operam para alcançar seu fim. Essa operação é automática: não é uma ação, que depende de consciência, intenção e tomada de decisão.

O caso dos humanos, porém, é mais complicado. Humanos têm uma natureza: são animais racionais. Isto é, são animais, mas são animais de um tipo especial: racionais. Como animais, têm corpos e, assim, participam do mundo natural, como tantos outros animais. Como estes, nascem, precisam se alimentar, reproduzem-se, morrem. Compartilham com as plantas alguns desses processos. Compartilham com as coisas não vivas que habitam este mundo outros processos.

Mas como animais racionais participam de um mundo superior, das ideias, um mundo que é conhecido apenas por outros seres racionais – que em geral são incorpóreos, como deuses. A nossa mente é, como se fosse, uma centelha divina que habita a nossa animalidade e deve com ela se reconciliar, fazendo com que sejamos um ser único, que tem uma natureza híbrida, animal e racional, mas unida, fazendo parte, assim, de dois mundos: o natural e o mental, o corpóreo e o incorpóreo, o animal e o divino.

Embora alguns dos antigos, como por exemplo Platão, tendessem a privilegiar o lado de nossa natureza considerado divino e a depreciar o lado animal, e, assim, a elevar a mente e a rebaixar o corpo, para a maioria deles mente e corpo devem se unir e reconciliar, o ideal sendo mens sana in corpore sano – uma mente sã num corpo são. Não é rebaixando ou mortificando o corpo que se fortalece a mente. Pelo contrário: esta só se fortalece num corpo sadio e forte (não debilitado).

Aristóteles, por exemplo, incorpora melhor a tendência greco-romana de valorizar o corpo tanto quanto a mente. A saúde do corpo é vista como essencial para a saúde da mente – mas não era apenas a saúde do corpo que era por ele valorizada: a sua beleza também. É por isso que a arte greco-romana desse período, na parte em que representa o corpo humano, contém algumas das mais belas representações da figura humana jamais produzidas.

Além disso, o corpo é também visto como fonte de prazer. A noção de prazer é admitidamente complexa, porque o prazer frequentemente contém componentes eminentemente mentais. Do ponto de vista meramente corporal o sexo forçado – o estupro – é virtualmente indiferenciável do sexo livremente consentido. A revulsão que um traz e o prazer que envolve o outro são componentes muito mais mentais do que propriamente físicos. No entanto, é forçoso admitir que sem o corpo não haveria esse tipo de prazer. (Sexo puramente mentalizado, sem componentes corporais, parece impossível — mas nunca se sabe…)

É verdade que, quando o prazer é focado no corpo, e dissociado da mente, temos uma distorção – a tentativa de separar, ou desreconciliar, mente e corpo. Essa distorção é bem representada pelas bacanais romanas. Mas é forçoso reconhecer que essa tendência é uma distorção e, como tal, rejeitada pelos principais filósofos da antiguidade. Mais importante, talvez, nesse contexto, se bem que criticável do ponto de vista hoje aceito, é a preferência sexual que os homens gregos tinham por seus congêneres mais novos – os mancebos. A pederastia praticada nas escolas (academias, liceus) decorria do fato de que a maioria dos homens gregos acreditava que as mulheres eram apenas meio humanas, algo entre o homem e os animais. O verdadeiro prazer sexual de um homem, segundo essa visão, não advinha de sua relação sexual com uma mulher, um ser que considerava inferior, com a qual mantinha relações sexuais apenas para finalidades procriadoras. O prazer sexual verdadeiro advinha de seu relacionamento sexual com outro homem — alguém com quem podia manter uma conversação interessante, de igual para igual… Apesar da ideia absurda da inferioridade feminina, essa atitude prova que, para os gregos, o corporal, sem o mental, não traz o prazer a que os humanos têm direito e que, pela sua natureza, têm razão de esperar.

Sexo puramente corporal, dentro dessa visão, é antinatural, contrário à natureza humana. Mas, por outro lado, e contrariando a visão que se atribui a Platão, de que o amor pode ser “platônico” (não envolver sexo, propriamente dito, ou outras interações corporais), o amor sem sexo seria igualmente antinatural — contrário à natureza do ser humano. (Dentre os filósofos contemporâneos Ayn Rand, que é fundamentalmente aristotélica, é a que mais enfaticamente tem batido nessa tecla. Basta ler seus romances para encontrar comprovação. Amor platônico é, para ela, algo tão depravado quanto sexo sem amor.)

A ideia de que somos animais racionais, corpo e mente, de que nosso fim é a felicidade, e de que o prazer é parte legítima da felicidade é uma contribuição especialmente positiva que nos deixa a Antiguidade – especialmente diante da tendência cristã, surgida posteriormente e exacerbada na Idade Média, de flagelar e mortificar o corpo (com açoites, jejuns, abstinências), para enfraquecê-lo e, assim, supunha-se, fortalecer a mente (locus, entre outras coisas, da espiritualidade).

Mas voltemos à educação…

A paideia, com sua concepção de formação integral, é ainda mais rica. A formação integral deve abranger a mente e o corpo, como acabamos de ver. Mas a mente humana não é algo simples. Para os gregos a mente humana possuía pelo menos cinco componentes, ou “faculdades”: pensar, valorar (atribuir valor), sentir, decidir e fazer. É por isso que os gregos, quando falavam da mente, falavam, alternadamente, de pensamento, valoração, emoção, decisão (vontade) e ação.

A formação integral exigida pela paideia precisa, pois, envolver, não apenas os aspectos cognitivos da pessoa, mas também os seus aspectos valorativos, emocionais, volitivos — ou “deciditivos” – e ativos.

A união desses vários aspectos da mente nos permite também imaginar estados de coisas que não existem, deseja-los, e cria-los no plano virtual, que é uma realidade criada pela mente, onde a arte e a sensibilidade encontram seu lugar. A arte é a tentativa de recriar a realidade, ou criar uma realidade virtual, que se conforme aos valores do artista. A finalidade desse exercício é não só permitir que a sensibilidade do artista fale com a sensibilidade dos que admiram a sua obra, mas, também, mostrar possibilidades de vida – potenciais de vida – que os circundantes e conterrâneos não conseguem perceber por si sós.

Além do mais, o ser humano é, para os antigos, um ser gregário, que vive em grupos que, num determinado contexto histórico e geográfico, formam a sociedade daquele tempo e lugar. Isto sendo assim, a formação integral também exige preparo para as relações interpessoais, para o respeito aos direitos dos outros, para o trato das questões morais que regulam a nossa vida.

A filosofia política surgiu entre os gregos e prosperou entre os romanos. Suas perguntas básicas são: Qual a melhor maneira de organizar a nossa vida em sociedade? Qual a função do estado? Quais as leis que devem regular o nosso comportamento? Através de que critérios devemos avaliar as leis da sociedade? Serão esses critérios meramente utilitários ou existem critérios objetivos – um direito natural – que nos permite avaliar o direito positivo? Obviamente, todas essas questões devem fazer parte do processo de formação de qualquer pessoa.

Mas também deve fazer parte dessa formação a ideia de que, embora gregários, somos seres individuais, diferentes um do outro, únicos, na verdade, e que, além do espaço público em que necessariamente vivemos, devemos preservar espaços privados para nós, que, no limite são individuais, que apenas compartilhamos com pessoas de nossa escolha, quando o desejamos e nos termos que especificamos.

Concluindo essa seção, resumo:

  1. A Antiguidade Clássica nos legou a ideia de que a educação, entendida como formação, é um processo de desenvolvimento humano, que se dá traduzindo potenciais em atualidades, transformando seres incompetentes, inautônomos, irresponsáveis, em seres competentes, autônomos e responsáveis, capazes de definir seu próprio projeto de vida e transformá-lo em realidade;
  2. A Antiguidade Clássica também nos legou a ideia de que a formação deve ser integral: abranger não só a mente, como o corpo, e, no caso da mente, incluir o plano cognitivo, valorativo, afetivo (ou emocional), volitivo (ou “deciditivo”), ativo e interpessoal (social).

B. A Forma de Aprender (Metodologia)

Durante milênios os processos de formação foram tipicamente orais – até porque a escrita é uma invenção (tecnologia) relativamente recente, quando comparada com a linguagem oral. Na verdade, nos séculos que imediatamente antecederam a Antiguidade Clássica a fala chegou próximo de tornar-se uma arte. A Odisseia e a Ilíada de Homero foram, inicialmente e por muito tempo depois, transmitidas oralmente (por declamação). Entre os gregos, o teatro, a retórica, a dialética e especialmente a lógica se tornaram objeto do mais sério estudo, mesmo antes da invenção da escrita. Se a fala, em si, já era uma tecnologia, i.e., uma técnica inventada pelo homem para melhor descrever a realidade e se comunicar com outros seres humanos, a declamação, o teatro, a retórica, a dialética e a lógica foram tecnologias assessoriais da fala, que permitiram que o ser humano usasse a fala de forma mais eficaz – em especial nos processos formativos (nas conversas, nas discussões, nos debates).

Talvez a melhor ilustração da filosofia da educação que corresponde a essa fase que está no limiar do nosso período esteja na filosofia de Sócrates – que foi construída quando essa fase já estava chegando ao fim, sendo, portanto, talvez, o seu “Canto de Cisne”. Sócrates já viveu no limiar da importante transição de uma cultura predominantemente oral para uma cultura que iria colocar cada vez mais importância na escrita.

Sócrates é admirável não só como filósofo, mas também como educador. Para ele, a melhor forma de formar (ou educar) é a interação oral, o diálogo, a conversa pessoal, o debate, a discussão racional, em que um diz uma coisa e ou outro analisa e questiona o que foi dito, apresentando contraevidências, contraexemplos e críticas, sugerindo alternativas, provocando seu interlocutor a continuar.

Esse método foi tradicionalmente chamado de “maiêutica” – palavra que vem do termo grego que quer dizer “parteira”. Para Sócrates o formador é, como se fosse, uma parteira para o conhecimento do aluno. Quem dá à luz (constrói?) o conhecimento, quem aprende, é o aluno – mas o formador ajuda, apoia, facilita, por vezes dificulta, complexifica…

No Teeteto [2], Sócrates explica a seu interlocutor que ele era filho de uma parteira, Fenarete, e que, como sua mãe, ele próprio é um parteiro. Sua mãe ajudava as mulheres a dar à luz seus filhos; ele ajuda os homens a dar à luz suas ideias.

Sócrates leva a analogia adiante, explicando que as parteiras, em geral, são mulheres que já passaram, elas mesmas, da idade em que poderiam parir seus filhos – por isso ajudam as outras. De igual modo, ele, Sócrates, já teria passado da idade em que poderia dar à luz ideias próprias – ficando na posição de quem agora só pode ajudar os outros a conceber e dar à luz as suas…

Mas Sócrates aponta também para um contraste importante entre sua função e a das parteiras:

“A tarefa das parteiras é importante – mas não tão importante quanto à minha; pois as mulheres não trazem ao mundo crianças verdadeiras numa hora, falsificadas noutra. Se o fizessem, a arte de diferenciar as crianças verdadeiras das falsificadas seria o ápice da arte da parteira. . . .  A minha arte, conquanto em muitos aspectos semelhante à das parteiras, envolve cuidar da mente, não do corpo. O triunfo de minha arte está no exame exaustivo do pensamento que a mente de um jovem traz ao mundo para determinar se é uma concepção verdadeira – ou um ídolo falso.  Como as parteiras, sou estéril; e a crítica que me fazem – de que faço perguntas que não consigo, eu mesmo, responder – é muito justa.  A razão disso é que os deuses me compelem a ser parteira – mas não me permitem parir. E, por isso, eu mesmo não sou sábio, nem tenho nada a mostrar que seja invenção ou descoberta minha – mas aqueles que conversam comigo se beneficia. . . É claro que não aprendem nada de mim; as muitas ideias que apresentam são geradas por eles próprios – eu só os ajudo a trazê-las ao mundo. . .” [3]

(Será que textos recentes sobre Construtivismo, que parecem sugerir que as raízes mais remotas desse movimento se reportam a Piaget, conseguiriam dar uma idéia mais precisa e sucinta de suas teses fundamentais do que esse parágrafo de Platão? Ou, numa outra vertente, será que nossos professores socialistas, doutrinadores de sala de aula, não se beneficiariam com a sugestão de Sócrates de que eles próprios não deveriam parir ideias próprias, mas ajudar os alunos a parir as deles?)

É interessante que, segundo os relatos que Platão nos legou acerca de Sócrates, este não ia atrás de seus interlocutores, dizendo: “Venha aqui que eu tenho algo para lhe ensinar”. Ele ficava esperando que as pessoas tivessem questões, perguntas, dúvidas e viessem até ele – daí ele procurava ajudá-las, à sua moda.

Digamos que (juntando pedaços de alguns diálogos socráticos), um jovem viesse até Sócrates e dissesse:

“Mestre, o que é a justiça? Quando é que agimos de forma justa?”

Sócrates nunca dava uma resposta direta à pergunta. Ele fazia outra pergunta ao seu interlocutor:

“O que você acha que é a justiça?”

O jovem tentava:

“Ser justo é fazer o que é certo”.

“Ótimo”, dizia Sócrates. “Mas o que quer dizer ‘fazer o que é certo?’. Quando é que fazemos o que é certo, e quando é que fazemos o que é errado?”

O jovem tentava mais uma vez:

“Creio, Mestre, que faz o que é certo aquele que executa a vontade de Deus, aquilo que Deus manda, e faz o que é errado aquele que desobedece a Deus”.

Sócrates continuava:

“Interessante sua resposta. Mas responda-me isso: Você acha que um curso de ação se torna certo porque Deus nos manda segui-lo, ou será que Deus nos manda segui-lo porque é o curso certo de ação?  O que você acha?”

E a conversa ia por aí em frente. Através de perguntas bem feitas, Sócrates ia ajudando seus interlocutores a dar à luz uma compreensão mais adequada do que significava ser justo e agir corretamente. Ele nunca dizia. Ele nunca ensinava. Ele ajudava o aluno a pensar por si só, a aprender, a se tornar um aprendente autônomo.

Sócrates não usava nenhuma tecnologia além de sua fala. Não seguia um currículo –  eram as questões dos alunos que lhe colocavam a pauta da conversa. Ele não tinha material didático – era contra materiais escritos (nunca escreveu nada – como Jesus Cristo também não). Não fazia prova para seus alunos, porque ao longo da conversa ele percebia que, ou o aluno tinha entendido (parido a ideia), ou a conversa (o trabalho de parto) não havia ainda terminado. Além disso, a conversa dele não tinha lugar numa escola, mas sim na praça – no lugar em que as pessoas vivem.

Notem bem: um educador sem currículos, sem conteúdos predeterminados, sem materiais didáticos, que não ensinava, que não transmitia informações, que não avaliava se os alunos haviam assimilado o que ele tentara lhes transmitir, porque ele nada tentava lhes transmitir (no sentido em que usamos o termo). E que não usava nem a parca tecnologia da escrita já disponível então. E que era interativo e dialógico, e que ficava o mais próximo possível de seus alunos, onde estes viviam. A educação que ele tornava possível ou propiciava era personalizada. . .

Sócrates valorizava o diálogo – o diálogo entre pessoas que se colocavam num mesmo patamar, não o suposto diálogo entre quem sabe e quem não sabe, entre quem tem o conhecimento e quem o recebe passivamente.

No parto, a mãe faz todo o trabalho. É ela que é ativa. É ela quem trabalha (donde a expressão “trabalho de parto”). A parteira ajuda, apoia, orienta, auxilia, facilita. Na filosofia da educação socrática, quem deve trabalhar são os alunos, não o mestre-parteiro. Quem deve estar ativo e procurar construir suas próprias competências e seu próprio conhecimento são os alunos. São eles os protagonistas da história. O mestre-parteiro fica nos bastidores, apoiando, orientando, ajudando, facilitando, fazendo uma massagem motivadora, quando necessária ou recomendável, passando uma pomada quase milagrosa quando o cansaço nos dá cãibras e nos causa dor, incentivando aqui, desafiando ali, provocando acolá. A educação se processa é na troca, na conversa, no diálogo.

A definição do método mais adequado para o processo formativo se faz dentro da “matética”, não dentro da didática [4].

C. A Tecnologia

A filosofia da educação de Sócrates, como vimos, foi construída quando a tecnologia da fala começava a ser complementada com a tecnologia da escrita alfabética [5].

Depois da invenção da fala, o passo tecnológico mais significativo, na área relevante para a educação, foi o da invenção da escrita alfabética, muitos milênios depois. A escrita é uma tecnologia que nos permite, num primeiro momento, registrar a fala, para que outros possam receber as palavras que a distância e/ou o tempo os impede de escutar. Hoje em dia há tecnologias que gravam a fala em si, ou que a levam a locais remotos, mas antes da invenção de fonógrafos, telefones e de outros meios de telecomunicação sonoros, tínhamos de depender da escrita para levar a fala codificada a locais remotos. Com a escrita temos comunicação verbal remota ou a distância [6].

A escrita foi, portanto, a primeira tecnologia que permitiu que a fala fosse congelada, perpetuada, e transmitida a distância. Com a escrita, deixou de ser necessário capturar a fala de alguém naquele instante passageiro e volátil antes que ela se dissipasse no espaço. A escrita tornou possível o registro da fala e a transmissão da fala para localidades distantes no espaço e remotas no tempo.

Na realidade, com o passar do tempo, a escrita acabou por criar um novo tipo de informação (registros e assentamentos de vários tipos, como escrituras, contratos, etc.) e um novo estilo de comunicação: a linguagem tipicamente escrita, que não é a mera transcrição da fala. Além disso, a escrita também criou um novo estilo de fala. O teatro, por exemplo, é a fala decodificada da escrita [7]. Alguém escreve a peça, ou o roteiro, e outros a representam, falando. Literalmente, não havia teatro antes da escrita – só improvisação (em maior ou menor grau). No teatro, portanto, a comunicação se dá em dois tempos: da fala imaginada pelo autor da peça para o texto escrito, e do texto escrito para a fala interpretada do ator. (Pressupõe-se, aqui, que ler uma peça não é equivalente a assistir a ela representada no teatro).

Muitos expressaram receio, quando a escrita se disseminou, de que ela fosse subverter a memória e, consequentemente a educação, até então calcada na memória e na fala, e de que ela fosse uma forma de comunicação essencialmente inferior à fala.

O primeiro a fazer isso foi, pelo que consta, Sócrates, que nunca escreveu nada. A julgar pelos relatos que dele e de suas ideias nos deixa Platão, isso não se deu por acaso: Sócrates, o defensor por excelência da fala, tinha preconceitos contra a escrita. Pelo menos é isto que fica claro no famoso diálogo Fedro.

No capítulo XXV de Fedro, Sócrates conta a seguinte história, que ele chama de mito, acerca da invenção da escrita, que ele atribui ao deus egípcio Teuto (a quem os Gregos chamavam de Hermes). Teuto, orgulhoso de sua principal invenção (ele também teria sido o inventor do número e do cálculo, da geometria e da astronomia), veio mostrá-la ao rei Tamos, que lhe perguntou qual a utilidade da invenção. Eis o que disse Teuto:

“Aqui, ó rei, está um conhecimento que melhorará a memória do povo egípcio e o fará mais sábio. Minha invenção é uma receita para a memória e um caminho para a sabedoria”.

A isso o rei ceticamente respondeu:

“Ó habilidoso Teuto, a um é dado criar artefatos, a outro julgar em que medida males e benefícios advêm deles para aqueles que os empregam. E assim acontece contigo: em virtude de teu apreço pela escrita, que é tua filha, não vês o seu verdadeiro efeito, que é o oposto daquele que dizes. Se os homens aprenderem a escrita, ela gerará o esquecimento em suas almas, pois eles deixarão de exercitar suas memórias, ficando na dependência do que está escrito. Assim, eles se lembrarão das coisas não por esforço próprio, vindo de dentro de si próprios, mas, sim, em função de apoios externos. O que você inventou não é uma receita para a memória, mas apenas um lembrete. Não é o verdadeiro caminho para a sabedoria que você oferece aos seus discípulos, mas apenas um simulacro, pois dizendo-lhes muitas coisas, sem ensiná-los, você fará com que pareçam saber muito, quando, em sua maior parte, nada sabem. E eles serão um fardo para seus companheiros, pois estarão cheios, não de sabedoria, mas da pretensão da sabedoria.” [8]

Ou seja: Sócrates fez uma importante advertência à vista do surgimento de uma tecnologia. Quando surge uma tecnologia, que nos ajuda a fazer alguma coisa nova, ou nos ajuda a fazer de uma forma nova alguma coisa que já fazíamos, a tendência é que desaprendamos de fazer as coisas velhas, ou de fazer as coisas da maneira antiga. A calculadora nos faz desaprender de fazer contas à moda antiga; o processador de texto nos faz desaprender de escrever bonito (a arte da caligrafia virou peça de museu; por um tempo, ainda ornamentava diplomas; com o surgimento de processadores de texto e impressoras a laser, nem esse uso arcaico sobreviveu).

II. A Idade Média e a Educação

Neste capítulo, analisarei a proposta curricular contida no Trivium Medieval e a metodologia da aprendizagem contida na Escolástica.

A. O Currículo Medieval: O Trivium

O Trivium envolvia o aprendizado da Linguagem, da Lógica e da Retórica e era a base da Educação Fundamental na Idade Média. A ele se acrescentava o Quadrivium, que correspondia mais ou menos à nossa Educação de Nível Médio, e que envolvia o estudo da Matemática [Aritmética e Geometria], das Ciências [Astronomia] e das Artes [Música]. (Entre colchetes estão os nomes das quatro disciplinas que compunham o Quadrivium).

Aqui concentrarei a atenção em especial no Trivium.

a. A Linguagem

Estuda-se a Linguagem, não por pedantismo, mas porque a Linguagem é o veículo através do qual o pensamento se expressa. É verdade que a correção da expressão linguística não garante, por si só, que o pensamento nela veiculado seja de boa qualidade. Isso significa que é possível ter conteúdo sem qualidade em forma correta. Contudo, no caso de pensamento e linguagem, dificilmente ocorre o oposto: conteúdo de boa qualidade em forma inadequada. A relação existente entre pensamento e linguagem é tão íntima que uma linguagem inadequada dificilmente permite que se expresse um pensamento claro e preciso. Na realidade, a inadequação linguística geralmente é sintomática de pensamento obscuro e impreciso, de confusão nos conceitos e enunciados (entidades lógicas) que subjazem aos termos e às orações (entidades linguísticas).

Temos, como seres humanos, necessidade de comunicação constante com nossos semelhantes. Essa necessidade nos coloca diante de um imperativo: ou aprendemos a pensar com clareza e precisão e a comunicar esse pensamento de maneira correta, ou seremos deixados ou passados para trás por aqueles que o sabem. Embora, possivelmente, sempre vá haver semianalfabetos, ou mesmo analfabetos, que alcançam uma certa medida de sucesso, o número destes tende a reduzir-se, no tipo de sociedade em que vivemos, ao nível do estatisticamente desprezível. Por isso, o estudo da linguagem é, geralmente, um primeiro e importante passo para quem deseja ser bem sucedido, pessoal e profissionalmente.

b. A Lógica

O segundo passo é estudar a estrutura Lógica do discurso, isto é, dos conceitos, enunciados e argumentos que subjazem à nossa linguagem. A lógica é que nos ajuda a pensar, a organizar e estruturar o pensamento, a  fazer inferências, a raciocinar, a argumentar. Sem ela, ainda que dominemos as ferramentas linguísticas, nossa linguagem será vazia de conteúdo.

c. A Retórica

O terceiro passo é estudar as técnicas de persuasão e convencimento — aquilo que antigamente se chamava de Retórica. A lógica nos ajuda a organizar e estruturar o discurso. A retórica nos ajuda a apresentar o que temos a dizer de forma a persuadir e a convencer os outros — ou, pelo menos, a chamar sua atenção.

d. O Conjunto

Se em nossa Educação Fundamental (que hoje se estende por nove longos anos) conseguíssemos que nossos alunos se tornassem competentes no manejo da Linguagem (em especial na língua materna), no domínio das formas de pensar, raciocinar, tirar inferências, argumentar (Lógica) e na arte de bem apresentar suas ideias, de modo a se comunicarem bem, serem persuasivos e convincentes (Retórica), nossa tarefa estaria mais do que desempenhada. Sobre essa base qualquer outro edifício pode ser facilmente construído.

B. A Metodologia da Escolástica

O que geralmente se chama de Escolasticismo é, na realidade, uma metodologia de aprendizagem, que consiste em:

  1. Tomar uma questão;
  2. Analisá-la com cuidado;
  3. Formular uma tese clara acerca da questão;
  4. Apresentar as melhores evidências e os argumentos mais fortes que dão sustentação a essa tese;
  5. Em seguida, formular a antítese, ou contra tese, ou tese oposta;
  6. Buscar as melhores evidências e os argumentos mais fortes que possam lhe dar sustentação à antítese;
  7. Analisar e avaliar os dois lados da questão;
  8. Por fim, chegar a uma conclusão, que pode ser favorável à tese ou à antítese, ou que pode, ainda, ser uma síntese das duas.

Por detrás dessa metodologia está a convicção, tão bem representada por Sócrates, na Antiguidade, de que aprendemos através da interação, do diálogo, da conversa, do debate, da discussão racional, em que um diz uma coisa e ou outro analisa e questiona o que foi dito, apresentando contra-evidências, contraexemplos e críticas, sugerindo alternativas, provocando seu interlocutor a continuar. A escolástica representou a institucionalização desse método.

III. A Contribuição Perene da Pré-Modernidade

Para entender a Filosofia Moderna – período que se sucedeu aos dois que acabei de analisar — é necessário entender (em sua essência) a filosofia que a precedeu: a Medieval e Antiga – a Pré-Modernidade.

Embora haja consideráveis diferenças entre a Filosofia Antiga e a Filosofia Medieval, e mesmo entre as diversas correntes que constituíram uma e outra, é possível detectar uma certa tendência básica naquilo que poderíamos chamar de “Filosofia Pré-Moderna”, e que engloba elementos básicos de uma e de outra.

Para a Filosofia Pré-Moderna, em primeiro lugar, a existência daquilo que na Filosofia Moderna se convencionou chamar de “mundo exterior” (a realidade externa à nossa mente) não é um problema. Para ela, é pacífico que existe um mundo fora de nossa mente, que é objeto de nosso conhecimento. Isso não precisava ser demonstrado, porque não havia se tornado um problema.

Para a Filosofia Pré-Moderna, em segundo lugar, a realidade contém objetos e fatos. Objetos são coisas e fatos são estados de coisas. Tanto objetos como estados de coisas existem, na realidade: eles são descobertos, não constituídos.

Além disso, e em terceiro lugar, para a Filosofia Pré-Moderna o mundo exterior é objetivamente ordenado. A realidade não é composta meramente de objetos e fatos isolados uns dos outros. Objetos e fatos se vinculam uns aos outros, através de várias relações, dentre as quais a principal é a de causalidade.

A relação de causalidade, para a Filosofia Pré-Moderna, existe objetivamente na realidade: um evento realmente causa o outro, e isto é um fato que pode ser constatado. A realidade não é composta apenas por “fatos atômicos” — evento a e evento b, por exemplo — mas também por fatos complexos — evento a causando evento b, por exemplo. A relação de causalidade, portanto, não é redutível à relação de contiguidade espaço-temporal, como diria David Hume, já no período moderno (Século XVIII).  Ela comporta também o nexo causal.

Isto significa que o mundo possui ordem, e que essa ordem existe independentemente do ser humano. Não é o ser humano que impõe ordem à realidade: esta já é ordenada, cumprindo ao ser humano apenas descobrir a ordem que já existe. É esse fato que possibilita o conhecimento.

A realidade, para a Filosofia Pré-Moderna, portanto, contém fatos, atômicos e complexos. Esses fatos, como visto, são estados de coisas que existem, na realidade: são descobertos, não constituídos. Conquanto possam existir estados de coisas imaginários, fictícios, eles não devem ser descritos como “fatos imaginários”. Fatos são coisas reais.

Para a Filosofia Pré-Moderna, em quarto lugar, a verdade é uma relação de correspondência ou adequação entre os juízos de um sujeito e os fatos que são objeto desses juízos. Se o juízo emitido por um sujeito corresponde aos fatos, é verdadeiro; se não existe essa correspondência entre o juízo emitido e a realidade, ele é falso. A realidade não é nem verdadeira nem falsa: ela simplesmente é. São nossos juízos acerca da realidade que podem ser verdadeiros ou falsos.

Para a Filosofia Pré-Moderna, em quinto lugar, temos evidência da verdade ou não de nossos juízos através principalmente dos sentidos, pela percepção sensorial. E aquilo que nos é dado na percepção é nada mais nada menos do que a realidade, propriamente dita, os objetos e os fatos que compõem o mundo externo a nós. Embora seja notório que às vezes nos enganemos em nossa percepção, a essa constatação não se dá importância muito grande na Filosofia Pré-Moderna, porque a mesma realidade que, às vezes, nos leva a juízos errôneos, depois nos ajuda a corrigir os erros cometidos.

Para a Filosofia Pré-Moderna, em sexto lugar, é possível, partindo dos sentidos, descobrir fatos sobre a realidade que transcende os sentidos: a chamada realidade suprassensível (ou o que comumente se chama de “sobrenatural”). Em geral, acreditava-se que era possível descobrir fatos acerca de Deus (por exemplo) pela chamada “via natural”, ou seja, apenas refletindo sobre os fatos descobertos pelos sentidos.

Para a Filosofia Pré-Moderna, em sétimo lugar, o conhecimento é o conjunto de juízos verdadeiros e evidenciados nos fatos que compõem a realidade (sensível ou suprassensível). Para que haja conhecimento é necessário que haja um sujeito, que conhece, e um objeto, que é conhecido.

A Filosofia Pré-Moderna não duvida de que tenhamos conhecimento da realidade: ela é plenamente confiante no conhecimento humano. Na verdade a confiança é tanta que ela pode falar, sem embaraço, em milagres. No Período Pré-Moderno não há maiores problemas no conceito de milagre. Um milagre é um evento que, se ocorrer, viola ou suspende a ordem objetiva existente na realidade. Para a Filosofia Pré-Moderna, milagres, se de fato existem, acontecem no nível da realidade, e não apenas no nível de nosso conhecimento da realidade. Sua definição envolve referência ao plano ontológico e metafísico, não apenas epistemológico. Milagre não é apenas um nome para nossa ignorância da ordem (como diria Spinoza mais tarde): o milagre é uma violação ou suspensão da ordem objetiva existente na realidade. Por isso é que se acreditava que eles eram de sua importância: se de fato existem, eles provam alguma coisa. Falar em milagres, porém, não quer dizer acreditar neles. Se realmente acontecem ou não é outra questão. Nem todos os filósofos pré-modernos acreditavam que milagres aconteciam. Mas não tinham dificuldade com o conceito.

Para a Filosofia Pré-Moderna, por fim, e em oitavo lugar, a pedagogia é o processo através do qual a criança é levada a conhecer e a descobrir fatos, é o processo de condução do sujeito ao objeto.

A filosofia moderna, iniciada por Descartes, e que encontrou seu ponto culminante em Kant e Hegel, passando pelos Racionalistas Continentais (Leibniz e Spinoza) e pelos Empiristas Britânicos (Locke, Berkeley e Hume), infelizmente veio a questionar todos esses oito pontos – e esse questionamento não redundou em progresso, mas, sim, em regressão.

A filosofia era considerada, pelos pré-modernos, como a mais perfeita expressão da racionalidade humana.

Na filosofia moderna, entretanto, a razão é frequentemente utilizada para combater a razão. Dentro da filosofia moderna existe uma corrente irracionalista tão forte que, encontrou no século XXI um terreno fértil para a sua propagação. É a razão que perdeu o rumo, e que tenta agora demonstrar sua própria fragilidade.

As principais armas do irracionalismo são o ceticismo e o relativismo.

O ceticismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento não existem. Só existem pontos de vista, opiniões, crenças, coisas desse tipo. Mas nada disso é verdade, nada disso merece o título de conhecimento. Os pontos de vista que adotamos (se é que adotamos algum) são tão inválidos quanto quaisquer outros.

O relativismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento existem, mas cada época, cada cultura, ou mesmo cada indivíduo, tem a sua verdade e o seu conhecimento. O relativismo, no fundo, afirma que tudo pode ser verdade, dependendo do contexto. Quaisquer outros pontos de vista são tão válidos quanto os que adotamos.

Note-se que tanto o ceticismo como o relativismo apelam para sentimentos nobres.

O ceticismo tem sido o principal crítico do dogmatismo e do fanatismo. Como a verdade e o conhecimento não existem, não devemos nos apegar aos nossos pontos de vista (caso os tenhamos): devemos reconhecer a falibilidade de nossas faculdades de conhecimento, e, portanto, evitar qualquer dogmatismo e fanatismo.

Da mesma forma, o ceticismo tem sido o maior defensor da tolerância. Devemos tolerar os pontos de vista dos outros, mesmo os que nos parecem mais estapafúrdios, porque, embora careçam de fundamento, não estão em pior situação do que nossos próprios pontos de vista.

Igualmente, o ceticismo tem sido um proponente da modéstia, da humildade, da ausência de soberba, da ausência de arrogância: tudo o que sei, dizem Sócrates e o cético, é que nada sei.

Os céticos são simpáticos: haja vista David Hume, talvez o filósofo mais simpático que já pôs os pés sobre a terra. Revestindo-se desse caráter nobre, o ceticismo conquista as pessoas — e espalha o irracionalismo.

O relativismo também é uma filosofia simpática.

O relativismo procura nos convencer as pessoas de que os pontos de vista de outras pessoas (ou as de outras épocas, ou de outras culturas) são tão válidos quanto os nossos próprios (ou quanto os pontos de vista de nossa própria época, ou de nossa própria cultura).

Isso é assim, afirma o relativismo, porque as ideias são geradas em determinados contextos, e adquirem validade somente a partir daquele contexto. É inválido, portanto, criticar um ponto de vista a partir de um contexto que não é o seu próprio.

Assim sendo, não é válido (por exemplo) criticar o budismo a partir do catolicismo romano, ou, na verdade, criticar qualquer religião, a partir de uma outra, ou mesmo a partir de um ponto de vista ateu. Todas religiões são boas, e até o ateísmo é uma forma de religião, às avessas, igualmente válida.

Por isso, também o relativismo propõe a rejeição do dogmatismo e do fanatismo e a adoção de uma postura tolerante. A arrogância, o sentimento de superioridade de nossos pontos de vista, a falta de empatia para com pontos de vista diferentes, tudo isso é pecado mortal para o relativismo.

Os relativistas também são, em regra, simpáticos. Muitos deles se embrenham por florestas quase virgens para estudar pontos de vista e costumes que os demais mortais poderiam considerar primitivos. Para o relativista, não há superior e inferior, quanto se trata de ideias, de pontos de vista, de cultura, enfim.

Revestindo-se desse caráter nobre, o relativismo também conquista as pessoas — e espalha o irracionalismo.

Na verdade, a maior parte das pessoas adota, hoje, um misto de ceticismo e relativismo, sem distinguir bem entre eles.

É por isso que o irracionalismo é hoje moda. Se a verdade e o conhecimento não existem, ou se tudo é verdade e conhecimento, então não há como ser racional. Por que adotar este — e não aquele — ponto de vista? Por que pronunciar este — e não aquele — ponto de vista? Porque preferir esta — e não aquela — obra de arte?

A filosofia pré-moderna (antiga e medieval) sabia como resolver essas questões. A filosofia moderna desaprendeu de fazer isso.

Ser racionalista é, hoje, ser alvo de críticas, mesmo de ridículo.

A nossa é uma época em que se tornou lugar comum afirmar que a verdade é relativa; em que amplamente se acredita que, se duas pessoas discordam, isso significa apenas que a verdade de uma é diferente da verdade da outra; em que cientistas defendem a tese de que as teorias científicas nada mais são do que “paradigmas” semelhantes a dogmas religiosos (em relação aos quais já é costume dizer que todos são bons, desde que adotados com sinceridade); em que teorias e filosofias políticas são vistas como nada mais do que ideologias em conflito, reflexos superestruturais de infraestruturas econômicas alternativas, acerca das quais não cabe levantar a questão da verdade; em que a moralidade se tornou uma questão de gosto, levando até um homem da estatura moral de Bertrand Russell a afirmar que sua discordância básica com Hitler se reduzia ao fato de que ele não gostava do que Hitler fazia; em que as linhas demarcatórias entre a arte, de um lado, e, de outro, borrões, ferro velho, lixo e outras excrescências desapareceram, porque as pessoas têm medo de emitir um julgamento estético; em que interpretações de um texto, por mais intuitivas e estapafúrdias que sejam, são acolhidas com a mesma seriedade que as decorrentes de trabalho sério e rigoroso; em que auto-expressão se tornou sinônimo de criatividade; em que os contra-sugestionáveis são tidos como espíritos críticos; em que a noção de verdade, por fim, se admitida, é vista apenas em termos da coerência de um conjunto de enunciados, e não de sua correspondência com a realidade.

As chamadas “Leis da Lógica” – andar dos mais importantes do edifício filosófico da antiguidade grega — são hoje desprezadas. Essas leis são as seguintes:

  1. Toda afirmação (inclusive teorias científicas, juízos morais e juízos estéticos), ou é verdadeira ou falsa (Lei do Terceiro Excluído);
  2. Nenhuma afirmação, devidamente qualificada, é verdadeira num contexto (temporal, espacial, social, cultural, econômico) e falsa em outro (Lei da Não-Contradição);
  3. O que é verdadeiro, é sempre verdadeiro; o que é falso, sempre falso (Lei da Identidade).

Também são desprezadas hoje teses metafísicas e epistemológicas fundamentais da filosofia pré-moderna, como, por exemplo:

  1. A primazia da realidade sobre os conceitos. A realidade existe independentemente de nossa percepção e de qualquer conceito que possamos formar sobre ela. Através dos sentidos, o ser humano apreende a realidade, não a constrói (Realismo Metafísico);
  2. A primazia dos conceitos sobre as palavras. É o pensamento que condiciona a linguagem, não vice-versa (Realismo Epistemológico).
  3. A ciência é objetiva e racional (contra os proponentes da sociologia do conhecimento e da ciência);
  4. Existe conhecimento ético: julgamentos morais são verdadeiros ou falsos, e não são meramente emoções e sentimentos disfarçados de conhecimento (contra o emotivismo ético, etc.);
  5. Existe objetividade na arte (contra expressionismo, etc.)

No Período Pré-Moderno havia uma atitude de abertura para com a busca da verdade e uma convicção básica de que a racionalidade é a melhor arma nessa busca. Tanto essa atitude como essa convicção foram perdidas no período moderno. A maior contribuição que a educação atual pode dar ao nosso mundo é recuperar algumas tendências da educação e da visão de mundo da pré-modernidade.

Notas

[1]      Ph.D. em Filosofia pela University of Pittsburgh, 1972. Professor Titular de Filosofia Política e Filosofia da Educação da UNICAMP de 1974 a 2007, hoje aposentado. Atualmente, Professor Colaborador de Filosofia da Educação no Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Campus de Americana, e Professor de História da Igreja da Faculdade de Teologia de São Paulo (FATIPI), da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil.

[2]   Estou usando o texto traduzido para o Inglês  por Benjamin Jowett e publicado, sob o título Theatetus, em The Library of Liberal Arts, por The Bobbs-Merrill Co., Inc. (Chicago, 1949)

[3]   Theatetus, op.cit., pp.10-11.

[4]  Vide o meu site www.mathetics.net. O conceito de matética foi discutido por Seymour Papert em seu livro The Children’s Machine: Rethinking School in the Age of the Computer. New York: Basic Books. 1993. Há um resumo, elaborado por Susan Ehrenfeld, das ideias apresentadas no livro, em http://mathforum.org/~sarah/Discussion.Sessions/Papert.html.

[5]  Vide a esse respeito Eric A. Havelock, The Literate Revolution in Greece and Its Cultural Consequences (Princeton University Press, Princeton, 1982; tradução brasileira de Ordep José Serra, com o título A Revolução da Escrita na Grécia Moderna e Suas Consequências Culturais, publicada por Editora da UNESP e Paz e Terra, São Paulo e Rio de Janeiro, 1996). Cf. também Eric A. Havelock, The Muse Learns to Write: Reflections on Orality and Literacy from Antiquity to the Present (Yale University Press, New Haven and London, 1986).

[6]      Acrescento o qualificativo “verbal” porque é possível comunicar-se remotamente através de sinais não verbais, como, por exemplo, os de fumaça, usados em contextos de comunicação relativamente primitivos.

[7]      Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita: A Tecnologia da Palavra (Campinas, Papirus, 1982, 1998; tradução do original Inglês por Enid Abreu Dobránszky), p.69, aponta para um importante fato, a saber, que numa cultura em que a escrita foi interiorizada a linguagem escrita afeta e modifica a  fala: “Indivíduos que interiorizaram  a escrita não apenas escrevem, mas também falam segundo os padrões da cultura escrita, isto é, organizam, em diferentes graus, até mesmo sua expressão oral em padrões de pensamento e padrões verbais que não conheceriam, a menos que soubessem escrever”.

[8]  Plato, Phaedrus (The Library of Liberal Arts, Bobbs-Merrill Company, Inc., Chicago, tradução do grego por R. Hackforth). Acerca dessa passagem ver “From Internet to Gutenberg”, magnífica conferência apresentada por Umberto Eco na Academia Italiana de Estudos Avançados na América, no dia 12 de Novembro de 1996, disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.italynet.com/columbia/internet.htm.

Revisto e transcrito aqui em 13 de Novembro de 2014, com base em um artigo escrito em 1 Agosto de 2008 (por sua vez redigido com base em material escrito em 2000) e revisado (e publicado aqui) em 3 Março de 2013. O artigo foi revisado mais duas vezes, posteriormente, em 13 de Janeiro de 2016 e em 23/05/2016.

Golpes da Sorte, Bênçãos e os 18 Anos da Bianca

Bianca - 18 anos

Bianca – 18 anos

Sempre tive muita sorte. No dizer popular (meio vulgar) de minha mãe e minha tia (irmã de minha mãe), ambas de mui saudosa memória, “nasci com aquilo virado para a Lua”. Ou sempre fui muito abençoado — sem merecer as muitas bênçãos. Em Inglês se diz: “Someone up there must like me”.

Muitas vezes fui vítima de ações de terceiros que pareciam, na ocasião, destruir meus sonhos e meus planos. Mas as coisas sempre viraram de tal maneira que ficaram ainda melhores do que eram antes.

Uma dessas coisas aconteceu em 1966. Em Agosto fui mandado embora do Seminário Presbiteriano de Campinas, por obra e graça do Rev. Boanerges Ribeiro (amigo do meu pai). Eu estudava lá desde 1964. Pareceu, naquele momento, que minha vida ruía. Um ano depois, porém, em Agosto de 1967, eu estava viajando para Pittsburgh, PA, com bolsa completa do Pittsburgh Theological Seminary, para fazer meu Mestrado (sem mesmo ter terminado o meu curso de Teologia aqui). Não havia solicitado admissão lá, nem, muito menos, bolsa. O presente, de certo modo, caiu do céu. Depois da bolsa de Mestrado, ganhei, lá, ao terminar o Mestrado, do próprio seminário, e novamente sem pedir, uma bolsa completa para fazer o Doutorado na University of Pittsburgh. Perdi o título de Bacharel em Teologia do Seminário Presbiteriano de Campinas e ganhei o título de Doctor of Philosophy pela University of Pittsburgh (que, na época, tinha o melhor Departamento de Filosofia dos Estados Unidos). Saí ganhando, e muito.

Outras vezes, tomei decisões conscientes, com base no que eu desejava e, no meu entender, tinha direito de buscar, que, embora eu tenha alcançado o que pleiteava, complicaram sensivelmente a minha vida, dificultando ou mesmo bloqueando meu relacionamento com pessoas que eu amo (minha filha, meus enteados e meus netos do segundo casamento, por exemplo). Mas, novamente, além de conseguir o que desejava (o que me fez o mais feliz dos homens…), o custo ou o preço de obtê-lo foi sensivelmente compensado e, assim, reduzido, pelas coisas que ganhei e que não esperava vir a ter: um novo gosto pela vida, novos parentes, renovado relacionamento com meus próprios irmãos e sobrinhos, novos amigos, e, destaco e sublinho, duas enteadas lindas, que se tornaram, no processo, filhas de verdade, que eu amo tanto quanto as amaria se fossem minhas filhas biológicas: a Bianca e a Priscilla.

Amanhã, 4 de Novembro, a Bianca, fará 18 anos (a festa, linda e alegre, com quase 50 jovens, de várias igrejas [presbiteriana, adventista, batista] foi ontem, aqui em casa). Quando a Paloma e eu começamos a viver juntos a Bianca tinha meros 11 aninhos (e a Priscilla tinha 9). Eram menininhas. Hoje a Bianca virou uma moça e se tornou uma mulher linda, sensível, carinhosa, fazendo o Curso Superior em Gestão Ambiental.

Parabéns, minha filha, pelo seu aniversário amanhã. Escrevo este artigo para que você, pessoalmente, saiba que considero uma sorte muito grande poder conviver com você, com sua irmã e com sua mãe (a quem tive a sorte de conhecer fez dez anos em 26 de agosto deste ano).

Talvez “sorte” não seja a palavra certa ou mais adequada… “Bênção” certamente é uma palavra melhor.

Minha formação é calvinista. Apesar das dificuldades que as doutrinas calvinistas da predestinação, eleição e providência apresentam, sou muito inclinado a, pelo menos, ver um fundo de verdade nessas doutrinas tão controvertidas.

E, calvinisticamente, tenho certeza de que não mereci e continuo a não merecer tudo de bom que veio para o meu caminho, durante minha vida inteira, mas especialmente nestes últimos seis anos e pouco. Mas eu, humilde e arminiamente, aceito esses presentes, esses “dons gratuitos”, essas bênçãos.

Bi, de novo: Feliz Aniversário nos seus 18 anos. Vamos celebrar o ano inteiro, passando, se Deus quiser, por Colónia del Sacramento e Montevideo, no Uruguai, e Ushuaia, na Argentina, neste final de ano e começo do ano vindouro. São cidades que você ama e que eu sei que eu e a mãe vamos amar também (a mãe já ama as duas do Uruguai, porque esteve lá com vocês duas).

(Neste ano de 2014 a Bi teve, durante um pouquinho mais de 10 meses, 17 anos — e eu, durante quase quatro meses, tive, e, Deus querendo, ainda terei, 71 anos: apenas o mesmo número com os algarismos invertidos. Adoro essas coincidências.)

Em São Paulo, 3 de Novembro de 2014