Crianças ou Adultos: Quem Está Desaparecendo?

Em 1982 Neil Postman escreveu um livro chamado The Disapperance of Childhood. A tentação é traduzir o título do livro como O Deparecimento da Infância. Mas Postman faz uma distinção importante entre infancy e childhood, que é difícil preservar em Português. Se infancy (que ele considera uma categoria biológica) é traduzido por infância, como traduzir childhood (que ele considera uma categoria sócio- cultural)?

Para esclarecer o que Postman tem em mente, a infancy é uma fase (biológica) da nossa vida que vai, basicamente, do nascimento até (segundo ele) por volta dos sete anos. Todos passam por essa fase. Em outras palavras, não há ninguém que não tenha tido infância (no sentido de infancy). A infância, nesse sentido, sempre existiu e é universal. A childhood, por sua vez, é outra coisa. Para começo de história, é uma criação sócio-cultural: algo inventado pela sociedade. Nas sociedades em que se procurou cria-la e implanta-la, ela se tornou uma fase que viria depois da infância (infancy) e antes que a criança (não mais o “infante“) se tornasse adulto. (A adolescência e a juventude também seriam invenções sócio-culturais do mesmo tipo, mas Postman considera a childhood como uma fase, social e cultural, não biológica, que vai basicamente dos sete aos dezessete anos – depois disso a pessoa passa a ser adulto (um adulto jovem, talvez, mas um adulto: uma pessoa “de maior”).

Segundo o Postman, a infância, agora entendida como childhood, não infancy, foi uma invenção relativamente recente. Antigamente (digamos, na Idade Média), as crianças, ao sair da infância (infancy), por volta dos sete anos, entravam logo na idade adulta. Eram vestidas como pequenos adultos (algo que em muitos casos acontecia até antes), esperava-se delas que se comportassem como adultos. Boa parte delas não ia à escola, porque esta inexistia: a escolarização universal é um fenômeno recente, que muitos em muitos lugares, até mesmo aqui no nosso “país do futuro”, é algo que está no futuro. Uma parte menor das crianças tinha uma escolarização mínima (eram funcionalmente alfabetizadas e recebiam os rudimentos da aritmética necessários para a vida prática). Muitas crianças (children, não infants) começavam trabalhar muito cedo: primeiro em casa e no negócio da família (campo, indústria artesanal ou comércio), ou mesmo fora, nas fábricas que surgiram na era industrial, por exemplo. O início da civilização industrial viu crianças muito novas trabalhando (não raro em serviços pesados e insalubres) na indústria. Hoje isso parece um escândalo absoluto – ou, como pretendem os esquerdistas, algo que só pode ser produto de um sistema econômico imoral como o capitalismo. Mas não: isso acontecia porque a infância (no sentido de childhood, um interregno entre infancy e adulthood) ainda não havia sido inventada. Ponto final. Também não era incomum que as crianças se casassem e tivessem seus próprios filhos logo depois de alcançar a puberdade (em alguns casos, especialmente de meninas, até impúberes se casavam). Nossas avós (de gente que tem mais ou menos a minha idade) se casavam ao redor dos treze anos. Novamente, isto se dava porque, ao sair da infância (infancy), a criança passava quase direto para a idade adulta. O ser humano se adultizava cedo. Como Dom Fulgêncio, a maior parte das pessoas, por um bom tempo, não teve infância (childhood).

Mas, a partir de um dado momento, se inventou a infância (no sentido de childhood). O termo “inventar” é usado deliberada e conscientemente por Postman – mesmo que a sociedade em que a childhood tenha sido inventada não estivesse plenamente consciente do processo e pudesse até achar que fosse natural (biológico).

A invenção e a rápida popularização do livro impresso (algo que o mundo deve a Gutenberg) tiveram seu papel (com perdão do trocadilho) no processo, podendo a imprensa ser considerada uma das causas remotas da invenção da infância (childhood). Mais que o livro, talvez, a invenção e a popularização da escola obrigatória (algo que o mundo deve à Reforma Protestante) tornaram necessário “inventar” uma fase em que o recém desinfantizado se preparasse para a vida adulta. Inicialmente, talvez quatro anos fossem suficientes. Depois, a fase se estendeu para seis, oito, nove, doze anos – trazendo o ex-infante para o limiar da juventude. Para muitos, a fase da infância (infancy) passou a ser vista como sendo a idade até os seis anos, a infância (childhood) a fase que vai dos sete aos onze anos, a fase da adolescência a fase que vai dos doze aos dezessete anos. Daí vem a idade adulta jovem (que, segundo a Organização Mundial da Saúde, vai dos dezoito até a beira dos trinta).

Enfim: criou-se para o ex-infante e futuro adulto um interregno, o que os tecnocratas chamam de um buffer, durante o qual ele deveria se preparar para as demandas da vida adulta.

O interessante do livro de Postman não é que ele foca o aparecimento (por invenção) da infância (childhood), mas seu desaparecimento (sua desinvenção) – algo que, segundo ele, talvez tenha começado por volta dos anos sessenta nos países desenvolvidos. As crianças (children) começaram a ser de novo consideradas como adultos – não mais porque precisavam trabalhar ou deviam se casar, mas porque passaram a reivindicar (o mais das vezes simplesmente tomar, com a anuência passiva dos adultos) direitos que até ali haviam pertencido exclusivamente aos adultos: vestir-se do jeito que quisessem (não mais como os adultos se vestiam, mas como elas, as interregnas, queriam); falar nome feio (profanity, em Inglês), fumar, beber, usar drogas, transar (casar não, transar, sim), envolver-se em causas políticas e culturais, manifestar-se, demonstrar, protestar, cometer crimes, brigar com a polícia, etc. E muitas simplesmente abandonavam a escola antes do tempo previsto. Em suma: quando Postman escreveu o livro, parecia que a infância (childhood), inventada a tão duras penas, estava simplesmente sumindo do mapa.

Estou lendo agora um livro de Diana West chamado The Death of the Grown-up. Como traduzir: A Morte do Adulto? O original poderia ter usado adult, mas usou grown-up, crescido… Enfim. A sugestão de West é que não foram as crianças (children) que desapareceram, mas, sim, os adultos que se criancizaram. Encolheram os adultos.

Não vou aqui discutir as evidências apresentadas por West. A referência ao livro dela fica como appetizer.

Em São Paulo, 10 de Março de 2014

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